Padre António Vieira
Esse texto é uma sugestão de leitura de O Trato dos Viventes, Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro, um livro muito bom. Mas, não é apenas uma sugestão, e faz-se em formato bastante livre. O que se refere a jesuitismo e reformismo é da conta minha, embora a maior parte da informação tenha sido recolhida na obra, notadamente as transcrições dos padres Barreira e Vieira.
Vieira foi um dos próceres da Sociedade de Jesus nos seiscentos. Realmente, os jesuítas estiveram na liderança ideológica do colonialismo luso até Pombal fartar-se de tanta política, tanto poder e tanta hipocrisia e encontrar a única solução possível: a proscrição que, no entanto, deu errado. Os jesuítas e o jesuitismo ganharam, afinal, e não apenas em Portugal e no mundo lusófono. Se é muito difícil definir concisamente o que é o modelo de pensamento europeu ocidental moderno, quem arriscar uma única palavra pode estar no caminho certo: jesuíta.
Alguém poderá objetar com a reforma e suas resultantes européias e norte-americanas. Todavia, a reforma, que encontrou antagonismo aberto na inquisição e nos carmelitas, encontrou o verdadeiro antagonismo no jesuitismo, que a moldou de fora para dentro. A forma histórica por excelência, o jesuitismo, pôs a forma anti-histórica, o protestantismo, a seu serviço ideológico, por razões fáceis de perceber. A dinâmica não é aprisionada pela estática.
A história não são os fatos, nem as pessoas, isoladamente. São fatos produzidos por pessoas que os querem e precisam justificar, porque são maioritariamente fatos criminosos. Daí, a máxima conformação histórica é a justificação de tudo, consoante acontecem as coisas. Claro que um ambiente em que domine a ideologia reformada tem tantos fatos – e tantos criminosos – quanto qualquer outro ambiente. Porém, nele, a contradição ideológica é permanente e não se socorre da fantástica idéia que é a graça, a maior criação intelectual do cristianismo.
Em um ambiente jesuítico as contradições existem na mesma quantidade – que afinal de homens trata-se – mas elas são constantemente lubrificadas pelo óleo que reduz os atritos das engrenagens cerebrais, a hipocrisia sistematicamente teorizada e praticada.
Nos seiscentos e setecentos, o Brasil, Portugal e Angola formavam um sistema econômico-mercantil. O primeiro produzia, primeiro apenas assúcar e depois minérios e café, o segundo recebia a produção e o terceiro fornecia pretos para as empresas assucareira, mineira e cafeeira. Por isso, ter Salvador, Recife e o Rio de Janeiro sem ter Luanda e Benguela era ter nada e o inverso também era verdadeiro. Sem engenhos, não havia para quê vender escravos e sem escravos não havia como funcionar os engenhos.
A Sociedade de Jesus – SJ estava dos dois lados do Atlântico, como empresa bem estabelecida, prestando contas ao Reino e à cúpula, em Roma. Os escrúpulos da SJ com relação à servidão dos índios brasileiros chamam bastante atenção. Eles rejeitavam veementemente a captura e escravização de indígenas, exceto daqueles a seu serviço. Essa resistência ajudou a construir toda uma mitologia da defesa dos índios brasileiros e de outros mitos laterais, como o da preguiça e da inaptidão essencial do índio para o trabalho servil.
Do outro lado do Atlântico, na Mina, no Congo, na Costa do Ouro, do Marfim e em Angola, os escrúpulos da SJ eram outros, pois articulavam-se muito bem ao próspero negócio do tráfico de africanos para a América do Sul e, residualmente, para o Reino e as conquistas asiáticas. Os jesuítas fizeram mais que fornecer o discurso de justificação do tráfico de negros da África para as Américas, eles tomaram parte ativa no empreendimento.
A parte propriamente comercial é menos interessante que as justificações constantemente renovadas pelos jesuítas, variando entre os pólos extremos do discurso aberto de um Baltazar Barreira e a colecção de eufemismos vertidos em prosa e verso de um António Vieira. Em certa altura, o sistema de captura em prática em Angola é posto em questão, inclusive com argumentos propriamente ideológicos como a legitimidade da posse de um cativo. Questionava-se a legitimidade a partir da cadeia de aquisições, mais ou menos como se faz com imóveis hoje.
Em réplica à objeção, Baltazar Barreira, que foi superior da SJ em Luanda, tem ocasião de lançar a seguinte frase, absolutamente destruidora das aparências e até estranha ao pensar jesuíta: O que em geral se pode dizer por parte dos negros que neste Guiné chamado Cabo Verde se vendem e compram, é que nenhum exame se faz sobre o título do seu cativeiro, nem há quem pergunta por ele.
O padre parece estar enfadado de discutir legitimidade de cativeiro, quando, em um negócio essencialmente ilegítimo, ninguém está realmente preocupado com isso. Sincero, o jesuíta Barreira, como se quisesse deixar claro que negócio sujo começa e termina assim, não se presta a entrar no labirinto das justificações, limitando-se a dizer que as coisas sempre foram daquela maneira.
Ele vai mais além e – no que me parece uma declaração de incompatibilidade com a SJ – utiliza o discurso do tudo ou nada. Instado a falar sobre os negócios negreiros da sociedade – que intermediava a compra e venda de escravos com os aprisionadores angolanos – afirma que, ou se mantém as coisas como vão, ou se suprime o tráfico: No que toca ao cativeiro destes negros, matéria tão cheia de dúvidas pro utroque parte, que não é possível tomar-se outro assento nele senão que, ou corra como até aqui, ou de todo se proíba esse trato.
O padre Baltazar Barreira, depois de décadas a serviço da Sociedade de Jesus, do Reino e do comércio do fator de produção que eram os escravos de África, morreu pobre e esquecido. Era um infame, mas nitidamente pouco jesuíta.
António Vieira adotava a mesma ideologia de Barreira, mas fazia-o com circunlóquios, volteios e alguma poesia. Era, enfim, um jesuíta prototípico. Cuidou de ser coerente com a tese de que o cativeiro era menos ruim que a permanência na ignorância do cristianismo. Ou seja, a escravização de negros africanos era, no fundo, uma oportunidade a eles dada de conhecerem os ensinamentos cristãos, uma benção de agradecer-se a Nossa Senhora do Rosário!
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