Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: julho 2010 (Page 1 of 5)

A campanha de Juscelino Kubitschek.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=FDXUWyXsJu4&rel=0&color1=0xb1b1b1&color2=0xd0d0d0&hl=en_US&feature=player_embedded&fs=1]

O homem que seria eleito em 1965 novamente presidente, se os militares não tivessem imposto ao Brasil 21 anos de exemplos de violências, de desprezo pelas leis e por eleições. Se a nossa democracia sempre fora meramente formal, depois do golpe militar de 1964 deixou de ser qualquer coisa.

Inclusive, a popularidade imensa de Kubitschek, que deixara o governo em 1960, depois de inaugurar Brasília, devia ser lembrada por quantos crêem que haveria um golpe de estado dos partidários de João Goulart e classificam o golpe militar – esse que realmente houve – de contragolpe.

Ora, João Goulart ia cumprir o mandato que herdara por conta do fracassado golpe de Jânio e provavelmente entregaria a presidência a um triunfante Kubitschek.

Realmente, quando se afirma algo, convém indagar-se de suas possibilidades. Na ocasião, havia dois campos políticos conflitantes e dispostos à disputa eleitoral. Um era capitaneado por Carlos Lacerda, prócer do direitismo mais profundo e anti-nacional. Outro era capitaneado por Juscelino Kubitschek, prócer de um direitismo nacionalista.

No âmbito político-partidário pouco ou nada havia fora dessa polarização. Os eleitores brasileiros dividiam-se entre essas duas vertentes e não empenhavam apoio, senão residualmente, a outras inclinações políticas.

Então, se Goulart alinhava-se a uma dessas vertentes, não tinha porque tramar golpe algum. Por outro lado, se perfilhava o entendimento politicamente residual, não tinha como dar golpe algum, porque isso é fadado ao fracasso sem apoio popular ou militar.

Ou seja, a suposição de que Goulart pretendia um golpe de estado – suposição que subjaz à tese de que o golpe de 1964 foi um contragolpe – implica supô-lo, a ele Goulart, burro.

O adjetivo no lugar do advérbio.

Por trás dessa insignificância que é a troca de um adverbio por um adjetivo, pode haver sutilezas psicológicas a serem desveladas. O caso é que essas substituições são relativamente frequentes e apanhei-me a pensar nelas, pois habitualmente detenho-me em imensas bobagens.

A frase, a mais comum e modelar dessa troca de quantas tenho ouvido, é a seguinte: Fulano dirige ruim. Evidentemente está errada, do ponto de vista gramatical, porque ruim não qualifica a ação de dirigir. Mal qualifica a ação de dirigir, assim como outras tantas. Ruim pode qualificar o agente, não a ação.

Minha primeira desconfiança quanto à origem do erro foi que os falantes tomam as categorias advérbio e adjetivo por uma coisa só. Isso implicaria, primeiramente, que a troca ocorresse apenas entre os menos letrados, o que não é o caso. Realmente, a permuta das categorias é extremamente democrática e permeia muitas classes sociais.

Uma possível explicação para essa amplitude social do erro gramatical poderia estar nas diferenças entre a lingua escrita e a falada. Mas, outra circunstância vem alertar para outros motivos: o uso de um pelo outro vê-se, tanto falado, como escrito. Ou seja, não se trata de uma falta de vigilância devida ao à vontade da língua falada.

Se a causa maior estivesse na consideração de identidade das categorias, ou seja, na consideração de adjetivos e advérbios como a mesma e única coisa, seria perceptível que os falantes tomassem, por exemplo, mal e ruim como sinônimos. E isso, todavia, não acontece. Quer dizer que, no fundo, o falante não as reputa iguais e indistintas, mas faz uma escolha que deixa ver uma ponta de sua constituição psicológica.

Ao dizer fulano dirige ruim o falante não está verdadeiramente ocupado em qualificar a forma como fulano dirige. Está, verdadeiramente e coerentemente com o uso do adjetivo, qualificando o próprio fulano, não a ação. É a subjetividade que não se consegue esconder, nem aprisionar pelas normas gramaticais.

No comum dos casos, não se fala genericamente, objetivamente. Fala-se de alguém, transbordam julgamentos pessoais sobre alguém, mais que sobre as ações que esse alguém pratique. Somos muito terra-a-terra, no dia-a-dia; muito contra e favor de alguém e profundamente indiferentes às ações e àlguma enunciação teórica.

A alma da intriga e da fofoca, da cosmologia de botequim, da sociabilidade de casa de pensão é a nossa real substância.

A infame distribuição de rendas no Brasil.

Situação social brasileira.

Foi divulgado o mais recente Relatório sobre Desenvolvimento Humano, da ONU, em que distribuição de rendas é uma variável das mais importantes para compor o índice de Gini. Constata-se que entre os quinze países com as piores distribuições, dez encontram-se na América Latina e Caribe.

E o Brasil tem a terceira pior distribuição de rendas da região latino americana e caribenha. Piores que o Brasil, apenas a Bolívia e o Haiti. E tem a décima pior entre os 126 países considerados para a realização do relatório. Uma situação evidentemente terrível, que precisa ser abordada às claras.

O relatório ajuda a desfazer alguns mitos verdadeiramente pueris que são mais ou menos aceitos. Um deles, parente próximo de outras tolices como a democracia racial brasileira, é aquele da mobilidade social. E uma das resultantes da crença na mobilidade social é a ênfase na detenção de recursos por méritos pessoais.

Isso é negado pelos dados existentes, pois desigualdade na apropriação de rendas e baixa mobilidade social estão fortemente associadas. No caso brasileiro, o nível de renda dos pais influencia no dos filhos em 60% das situações. Isso aproxima-se muito mais de uma rígida sociedade de castas que de algum país que cultive a meritocracia sob qualquer forma.

Apurou-se, ainda, que três fatores influenciam o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – negativamente. São as desigualdades de renda, as desigualdades no acesso à educação e no acesso à saúde, nessa ordem de importância. Assim, percebe-se porque o IDH brasileiro é tão baixo, à vista deste país ter estúpidas desigualdades nos três fatores citados.

O estudo assevera que as políticas de redução de desigualdades – nos três campos apontados – são fundamentais para a elevação da qualidade de vida das populações, quer dizer, para a elevação do desenvolvimento humano.

Políticas de distribuição de rendas vêm avançando no Brasil, notadamente a partir do primeiro governo do Presidente Lula. Todavia, são tímidas frente ao tamanho das desigualdades. Os 10% mais ricos apropriam-se de 70% da renda nacional, em um quadro absolutamente selvagem e desconexo de qualquer variação natural de aptidões das pessoas.

Embora as recentes melhoras, por meio de transferências públicas e garantias de rendas mínimas, sejam modestas, as reações conservadores que se levantam contra essas políticas são violentas. Percebe-se a brutalidade das reações no jogo sujo que se faz contra a candidata do Presidente Lula às eleições presidenciais de outubro próximo.

Bastou que a candidata Dilma Roussef fosse identificada ao intuito de avançar um pouco mais nas políticas redistributivas para que ela se tornasse o alvo de ataques repetidos e infundados por parte de alguns partidos políticos e de grande parcela da imprensa. Realmente, o modelo concentrador assusta-se com a mais pequena possibilidade de perder uma e outra migalha, em benefício de um aumento geral da qualidade de vida.

Chega a ser burrice histérica essa aversão a uma evidência. Burrice porque situações como a brasileira significam níveis de compressão social tão elevados que os donos do poder deviam perceber que a entrega de um ou dois anéis poderia salvar-lhes os dedos. Não percebem…

A farsa de Nurembergue.

Resposta honrada de Goering à farsa.

A vingança não precisa fantasiar-se de jurídico para atuar plenamente e o direito do vencedor só é direito se valer para o futuro. Os vencedores das guerras não têm compromissos jurídicos, evidentemente, pois a guerra essencialmente é diferente deste âmbito. Claro que há normas costumeiras e compromissárias que podem vincular países que venham a entrar em conflito, mas sua real observação é raríssima.

Admitindo-se a existência prévia de tratados sobre vedações na guerra, está-se a admitir acordos celebrados por Estados soberanos. Daí, seu descumprimento, posteriormente verificado, é conduta a impor responsabilidades aos Estados descumpridores das regras que aceitaram. Esse ponto deve ser fixado, para estabelecer a diferença entre responsabilização de Estados e culpa de pessoas naturais.

Esse direito de guerra não é penal, a toda obviedade, porque não trata da responsabilização pessoal de indivíduos, até porque as regras tratadísticas estabeleceram obrigações para os Estados. A partir do segundo pós-guerra do século XX, todavia, criou-se um direito penal de guerra, na ONU, com previsões de responsabilizações individuais. A obra é falha, como se vê adiante.

Há sessenta e cinco anos encenava-se o julgamento de vinte e dois acusados no Tribunal de Nurembergue. Destes, três foram absolvidos, nove condenados à prisão perpétua e dez condenados à pena capital, executada imediatamente. Aquilo que se chamou de julgamento não tinha precedentes históricos, nem normativos. Realmente, a anterior Liga das Nações não oferecia qualquer substrato de direito tratadista que se pudesse aplicar.

O aspecto mais evidente – tão evidente que sugere a desnecessidade de falar a respeito – é que não se tratou de aplicar regra penal. Não se tratou porque essa espécie jurídica obedece, ao menos nos países envolvidos, ao já longevo princípio da anterioridade das leis. Ou seja, não há crimes, nem penas, sem lei anterior que as definam e prevejam.

Essa é uma garantia presente em muitos sistemas legais, para evitar que alguém seja perseguido judicialmente por alguma conduta que não era ilegal e reconhecidamente reprovada. Ou seja, tudo aquilo que pode ensejar uma privação de liberdade, ou mesmo da vida, por sanção do Estado, deve estar anteriormente previsto, senão é apenas punição fora do direito.

No caso dos acusados em Nuremberg, civis e militares alemães que atuaram na Segunda Grande Guerra, não havia qualquer direito a incriminar suas condutas. E, caso houvesse, incriminaria também àquelas dos vencedores, que foram essencialmente as mesmas. O direito que se dizia aplicar era o dos vencedores ou, melhor dizendo, era a vontade deles, os vencedores.

Nurembergue foi a vingança envergonhada, que recorre ao teatro e à simulação. Os crimes que supostamente seriam julgados foram definidos no próprio estatuto do Tribunal, depois de praticadas as ações que se iriam julgar. Ora, nenhum dos países componentes do Tribunal admitia a retroatividade das normas penais, exatamente o que estava a ocorrer naquele julgamento.

A natureza de vingança com tintas de direito fica clara nas observações e comentários feitos mais tarde por gente que esteve naquela guerra. Recentemente, Robert McNamara, o secretário de defesa norte-americano que conduziu grande parte da guerra do Vietnam e que esteve nos planejamentos dos bombardeios do Japão, na segunda guerra, fez as pazes com a sinceridade, de maneira cortante.

No filme documentário As névoas da guerra, indagado sobre a utilidade estratégica dos bombardeios incendiários no Japão e, mais precisamente, sobre as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, McNamara não deixa qualquer traço de hipocrisia: se tivéssemos perdido a guerra seríamos julgados como criminosos de guerra.

Não conheço quem tenha sido mais direto e preciso sobre o tema que o ex-secretário de defesa. Os vencedores julgaram os perdedores por ações que eles também praticaram, donde conclui-se que não julgaram a partir de qualquer direito, mas da vitória. Todavia, a partir de Nurembergue, a idéia da responsabilização criminal individual por condutas em guerras projetou-se na ONU.

Aparentemente, depois desse começo extra-jurídico, parecia que as coisas caminhavam para uma conformação mais sistemática. Ou seja, seriam estabelecidas normas penais internacionais, por meio de acordos, tratados e protocolos entre nações e a ONU, por algum seu órgão, julgaria as condutas que se inserissem nas hipóteses legais.

Todavia, a ONU nasce com uma mácula original a impedir que se tome a sério a própria instituição e seus declarados desígnios de ser uma grande instância jurídica supranacional. Essa mácula é o poder de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, que não precisam abster-se de votações que envolvam suas próprias condutas.

A fórmula implica – sem quaisquer eufemismos – impunidade total dos cinco integrantes permanentes: EUA, Rússia, França, Inglaterra e China. Ou seja, a instituição tem na sua gênese o direito do vencedor!

Se, por exemplo, tropas norte-americanas cometem barbaridades imensas, como as praticadas na Sérvia, os EUA podem votar na reunião que eventualmente discuta as infrações e podem vetar qualquer sanção! É uma piada? É mais que isso, é uma imensa farsa em que muitos acreditam piedosamente, inspirados por massiva propaganda do absurdo.

O Mendigo Maltrapilho da Rua do Mercado.

Texto de André Raboni.

CHOVIA. A rua, deserta e fria, não estava convidativa. Sair era uma provocação ao bom senso. Em verdade, não chovia: gotejavam poucos pingos de umidade repulsiva. Trajei-me apropriadamente como se deve trajar um filósofo experimental: ao modo da ocasião. Enfastiado da ausência de perigo e do conforto de meu aquecido lar, vesti-me ao tom do clima e parti de minha caverna para ter com os outros.

Na rua poucas almas caminhavam. Menos paravam recostadas em postes ou árvores: cálidas de fungos úmidos.

O pedaço de rua, que, aqui, convém-nos saber: asfaltada, com velhos sobrados reformados, postes como pilares de fiações caóticas, canaletas de meio-fio embalsamadas por água e lodo, duas árvores na calçada mal conservada, separadas uma da outra dez metros – os dez metros que serão palco de nossa estória.

Nada nos custa gastar mais algumas linhas na descrição de nossos dez metros de rua e calçada: olhando na direção norte-sul: ao lado direito vêem-se seis sobrados. O primeiro deles, uma pequena venda, com fachada em azulejo português envelhecido; o segundo, em péssimo estado de conservação, cor de verde-nojento: em sua parte baixa habitava um lodo já vivido e caduco, porém não tão decrépito quanto o restante da fachada deste repugnoso sobrado.

Após este, outro sobrado cor-de-rosa murcha: duas janelas e uma imensa porta de madeira (a partir da qual julgava-se que ali deveria viver um gigante!…). Dali até a segunda árvore, mais três sobrados: um azul, outro rosa e o terceiro e sexto e último de nosso cenário, amarelo recém pintado.

Conforme o céu foi clareando, as pessoas foram-se atirando à rua; a umidade, reduzindo pouco a pouco. Passos e vozes movimentavam-se no ar e na calçada turva de acontecimentos.

No pé da árvore em frente à venda, sentou-se um mendigo maltrapilho fumando um filtro de cigarro.

Na venda, homens conversavam sobre o ocaso da puta da esquina, degolada por um cliente desconhecido. Tal conversa era atravessada pela rouca voz do mendigo maltrapilho – que trabalhava e pedia cigarros nos seus minutos de folga.

“Me dá um cigarro!” – Falava penosamente, estas que pareciam ser as únicas palavras conhecidas pelo pedinte. Toda vez que soava esta voz um cachorro sarnento deitado tranqüilamente ao lado dele levantava as orelhas, num gesto de cumplicidade.

Do lado esquerdo da rua, estendia-se toda a parte frontal de um mercado, cuja fachada, cor de vermelho-velho-alaranjado, abrigava diversas lojinhas.

Ao passo que avançavam as horas, mais transeuntes saíam às ruas: mais demanda para o mendigo-maltrapilho… Que fumava e prestava seus serviços de Demiurgo-do-perdão, arauto da caridade piedosa.

Vá lá! uma moedinha para o mendigo-maltrapilho ser um fio de indulgência!

“Aqui se faz, a tu se paga!”

Passavam neste instante seis humanistas pela frente da venda. Sentindo compaixão daquele ser recostado ao pé da árvore, quatro deles se abaixaram para ter com o mendigo:

– “Estás bem, amigo?” Disse um deles, repousando sua mão direita sobre o ombro do mendigo-maltrapilho, que fumava.

– “…!”. Respondeu o mendigo, atirando-lhe um olhar oblíquo, dando o último trago em seu filtro de cigarro e o atirando por cima do braço do humanista pousado sobre seu ombro, em um gesto que afastou assaz a mão do homem.

– “Estamos aqui para lhe ajudar.” Argumentou o segundo.

– “Me dá um cigarro!” Disse-lhe, olhando raso, rápido e sincero, olho no olho, como quem cativa a permanência do outro com a discrição própria de um ser refinado.

Os outros dois humanistas ficaram em pé, alertando aos transeuntes o absurdo de haver um homem naquelas condições, em pleno século XXI.

Da venda, eu, de soslaio, pesquei alguns trechos do discurso dos dois humanistas que estavam em pé: “Vejam como este homem sofre! Isto é fruto do capitalismo!” e, “O sistema corrói a dignidade humana!” ou, ainda, “Temos que destruir o… e implantar uma sociedade…!”

Perdoe-me o leitor pela falta de empenho em transcrever todo o discurso; confesso que a conversa ao lado sobre a degola da puta da esquina estava bem mais interessante.

Aos poucos, a situação em frente à venda foi ganhando proporção intrigante; a ponto de tornar-se mais interessante do que o papo sobre o destino da puta.

Mais e mais pessoas se juntavam aos humanistas em redor do mendigo-maltrapilho. O mendigo, sentado, nada falava, apenas fumava, agradecia algumas indulgências com um breve movimento de cabeça ou piscar de olhos. De quando em quando se ouvia sua voz rouca emitir um diligente “Me dá um cigarro!”.

Pessoas foram se sentando, solidárias ao estado miserável no qual se encontrava o mendigo-maltrapilho. Todos atentos e cegos ao discurso dos humanistas, solidarizavam-se com o estado de miséria surda de toda a situação.

Na esquina, um caminhão acabara de estacionar. O mendigo olhou-o largamente… de tal forma que me pareceu ver sua alma se ausentando do lugar onde se achava seu corpo e indo ter com o caminhão…

Gozando de status elevado, o mendigo-maltrapilho apenas abria a boca e as pessoas em volta lutavam para ver quem conseguiria primeiro lhe meter um cigarro entre os dentes, e outros mais se digladiavam para acendê-lo. Quase sempre, o primeiro humanista conseguia, por estar em posição privilegiada… O que foi, aos poucos, despertando inveja nos demais presentes.

Em poucos minutos a calçada estava lotada de gente piedosa, vinda de todas as partes (até sotaque americano pude identificar!). Todos embriagados de compaixão pelo mendigo-maltrapilho e pelas mazelas do mundo, multiplicavam a dor – supostamente – existenciada pelo silencioso e sofrível mendigo, que pedia cigarros. Até eu tentei (sem sucesso) conceder um cigarro a ele.

Algumas velhinhas choravam, crianças assistiam com olhos esbugalhados de assombro e estranhamento àquele espetáculo inédito na rua. Os homens gritavam enlouquecidos contra o mundo; ouviam-se preces em voz baixa, clamando a Deus que acabasse com aquele sofrimento coletivo…

Uma leve chuva começou a cair como lágrimas de um deus sensivelmente humano e piedoso. De leve, a chuva engrossou em poucos segundos. O mendigo-maltrapilho ergueu-se. As pessoas ao redor se calaram, entreolhando-se interrogativamente como quem espera uma ação – esperavam talvez algum discurso que anunciasse uma fatalidade metafísica e transcendental ?

Um gesto de revolta imanente e revolucionário? Uma convocação para a luta? Mas, para a luta de quem?

Com olhar profético e solene o mendigo disse a todos que ali se achavam:

“Alguém me dá um cigarro!”

E se foi afastando a passos lentos, ultrapassando sobrado a sobrado, até recostar-se sozinho, no pé da outra árvore, dez metros ao sul, aonde contou suas moedas e acendeu seu cigarro. Ergueu a vista e observou a multidão piedosa e intrigada ainda em lágrimas mudas, e viu o cão sarnento vindo em sua direção.

Na esquina, o caminhão ligara seu motor e partiu elegante e soberbo em um movimento ligeiro e preciso diluindo aos poucos todo o cenário e ganhando velocidade rapidamente derrapou na umidade divina da rua subindo a calçada e trucidando 90% daqueles que ali se achavam começando pelos humanistas, depois as velhas, os homens e as mulheres.

As crianças, semelhantes a rodas girando sobre si mesmas, em gestos habilidosos e astutos, salvaram-se para um novo começar.

O mendigo-já-não-tão-maltrapilho (quando comparado àqueles corpos mutilados) parecia divertir-se como nenhum homem jamais se divertira antes! Desde que há homem na Terra! E há tão pouco tempo que existem homens na Terra!

O mendigo passara por entre os homens como por entre os animais!
Assistiu a tudo dez metros ao longe. Dei as costas para o filósofo tentador que eu experimentara e retornei para o minha segura e aquecida caverna cor-de-rosa murcha.

Para despertar saudades em Thiago: cuscuz com porco.

Quando recebemos nosso amigo Thiago em Braga, em setembro de ano passado, quisemos agradá-lo com algo que ele não saboreava há muito, pois estava em terras castelhanas: cuscuz.

Não sabíamos que o cuscuz estava entre as imensas saudades de Thiago, o que valorizou a idéia. Daí, entregamo-nos à comezaina de cuscuz com porco guisado – esse porco não ficou lá grande coisa, obra minha – à noite e, no dia seguinte, cuscuz com ovos mexidos. Um regalo cuscuzeiro!

Fizemos agora uma extravagância gastronômica, o que me lembrou das saudades do cuscuz, de Thiago. Tomamos uma peça de picanha de porco, cortamos-la em fatias e deixamos-la numa marinada com azeite, gengibre, muito alho, cebolinha e coentro. Essa maravilha da anatomia porcina dormiu banhada nesses ingredientes dos deuses, que lhe penetraram as entranhas lentamente, a noite toda.

Hoje, essas fatias de suíno marinado foram ao forno, em lume baixo e lento. Entretanto, a farinha de milho em flocos – o que vem a dar no famoso cuscuz, repousava alguns minutos, depois de levemente humedecida e salgada. Foi à panela – aquela panelinha que faz cuscuz em forma de peitos – e saiu de lá dourada e fumegante.

Cuscuz nos pratos, desenformados e espalhadinhos, pusemos o molho resultante do assado do porco por cima, com os dentes de alho assados dentro da piscina de azeite, ao lado. Mais ao lado, as suculentas fatias da picanha suína cozinhada em líquido e assada em lume baixo.

Na falta de jovens vinhos durienses a preços razoáveis – pois aqui qualquer vinho português é caro – recorremos a um honesto chileno tinto. Um vinhozinho do Vale do Aconcagua, feito só de uvas Syrah, jovem, pouco complicado e pouco agressivo. Uma pechincha de dezenove reais. Por três euros beberíamos vinho melhor, mas estamos no Brasil…

Depois desse repasto delicioso, laranja cravo para a sobremesa. Essa tangerina pequena e doce é coisa bem nossa, como cuscuz. E ajuda a digestão das gorduras suínas. Depois disso, certo de ter despertado grandes saudades culinárias no querido Thiago, um cochilo!

« Older posts