Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: dezembro 2010 (Page 1 of 6)

Campo de Lula: assim será batizado pela Petrobrás.

A Petrobrás decidiu rebatizar o Campo de Tupi – imensa reserva de óleo em águas profundas – Campo de Lula, em homenagem ao Presidente que despede-se do poder amanhã.

Rapidamente, as oposições raivosas e pseudo-democráticas acusaram essa bobagem de ser um grande absurdo.

Especificamente, um dos próceres do oposicionismo neo-fascista, um diligente escravo a serviço de interesses anti-nacionais, ávido por destaque mediático a partir de qualquer tolice, correu a dizer que isso era o sintoma de uma ditadura e uma tentativa de perpetuar o nome de Lula na memória nacional.

Que é uma forma de inserir mais fortemente o nome do maior Presidente que esse país teve na memória nacional, é uma obviedade. Que tenha algo de ditadura, é uma tolice, alias nada estranha ao autor da assertiva.

Sinais de ditadura são precisamente aqueles que gente como o performático acusador querem apagar da memória nacional, quando se insurgem contra a condenação de agentes públicos que mataram, sequestraram, estupraram, espancaram cidadãos nacionais, sem processos, acusações formais ou oportunidades de defesa.

É curiosa uma tal acusação em um país que dá o supremo espetáculo de ridículo consistente em ter, em todas as grandes cidades, alguma avenida batizada de Presidente Kennedy!

Uma sessão espiritista tumultuada, em Anus Mundi.

Por Sidarta

Lamento informar, de antemão, que alterei os nomes de alguns dos personagens dessa estória, que é real, pois penso que ainda não devem estar todos já mortos. Peço perdão às famílias dos personagens, se forem reconhecidos, mas não resisti em não contar esse fato histórico, ilustrador e divertido que ouvi de um conhecido anusmundense. Agradeço também à Sra. Gautama pela ajuda na escolha de alguns nomes para os personagens.

Era um mês de dezembro no fim dos anos 1960’s e fazia um calor de arrombar em Anus Mundi, interior do Piauí, em uma tarde de sábado… e Madame Otília (ex Severina Barracão, na juventude) estava se sentindo muito ocultista.

Ela tinha colocado um vestido branco longo, todo solto e esvoaçante, e a sala da sessão estava iluminada por velas, cada vela cuidadosamente enfiada em uma garrafa de cana. Havia três outras pessoas na sessão de hoje.

Dona Carminha, com um boné verde escuro do já insipiente movimento ambientalista; Seu Otacílio, fino e pálido, com olhos meio embaçados; e Maristela Pereira, de cabelo cortado recentemente em Teresina no estilo “Hoje, na Avenida”, no salão de dois jovens e promissores cabeleireiros, e que era convencida de que ela própria tinha profundidade ocultista ainda não explorada.

A fim de melhorar os aspectos ocultos de si mesma, Maristela tinha começado a usar e abusar de sombras verdes e de bijuterias “de prata legítima” adquiridas em uma tal de “feira do Paraguai”, em uma viagem de iniciação que fez a um grande centro esotérico em Brasília. Ela achava que era sexy e gostava também de ser vista como romântica, e até seria se perdesse uns trinta quilos.

Estava convencida de que era anoréxica porque cada vez que se olhava no espelho ela via uma pessoa gorda.  Como anoréxica, tinha lido que devia sempre comer um pouquinho mais.

“Vocês podem ficar de mãos dadas?” perguntou Madame Otília. “Devemos fazer silêncio. O mundo dos espíritos é muito sensível a vibrações.”

“Pergunta se Ronaldo já está por perto”, disse Dona Carminha.

“Espere um pouquinho, querida, fique tranqüila enquanto eu faça o contato.”

Madame Otília tinha deduzido, através de anos de experiência “nos mistérios” em muitas localidades do Piauí e do Maranhão, que dois minutos era o tempo certo para sentar-se em silêncio, esperando para o “mundo dos espíritos” fazer contato. Mais do que isso e os clientes ficavam indolentes, menos do que isso e eles sentiam que não estavam recebendo pelo que estavam pagando.

Na hora H, Madame Otília jogou a cabeça para trás com os olhos quase fechados.

“Ela agora vai, minha filha,” sussurrou Dona Carminha para Maristela Pereira. “Não fique assustada, ela apenas tá fazendo uma ponte para o outro lado. Seu guia espiritual chegará daqui há pouco”.

Madame Otília ficou meio puta da vida com a interrupção antes da hora e soltou um “Oooooooooh”. Em seguida, disse em uma voz alta: “Estás aí, meu guia?”

Esperou um pouco, para aumentar o suspense, e depois disse: “É você, Jerônimo?”

“Sou eu mesmo”, falou em nome de Jerônimo.

“Temos um novo membro hoje no círculo”, disse ela.

“É Maristela Pereira?” perguntou ela, como Jerônimo.

Ela ouvia no rádio as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão, e gostou do nome para adotar para o seu guia espiritual.

“Oh”, guinchou Maristela. “Prazer em conhecer”.

“Ronaldo tá aí Jerônimo?” foi logo perguntando Dona Carminha.

Madame Otília, a ponto de perder a paciência, disse: “Tem um magote de almas perdidas aqui na porta da minha casa, talvez Ronaldo esteja no meio delas”.

Ela tinha aprendido que nunca deveria trazer Ronaldo no começo da sessão; se trouxesse Dona Carminha ia ocupar o resto da sessão dizendo a Ronaldo tudo o que tinha acontecido em Anus Mundi desde o seu último bate-papo (“… Ronaldo, você se lembra de Lurdinha, filha de Seu Toinho, virou puta e agora só quer ser chamada de Shirley; e Rosinha, filha de Seu Nonô, assumiu de uma vez e foi morar lá prás bandas de São Luis com uma mulher rica de uma família de políticos com um nome complicado”.

Um clarão de um relâmpago, seguido quase imediatamente de um estrondo de trovão fez Madame Otília se sentir bastante importante, como se ela tivesse feito isso sozinha. Foi ainda melhor do que as velas na “criação do clima”.

“Agora”, disse Madame Otília em sua própria voz, “Jerônimo gostaria de saber se existe aqui alguém chamado de Otacílio”?

Os olhos embaçados de Seu Otacílio brilharam. “É, é o meu nome”, disse ele.

“Certo, tem alguém aqui que quer falar com você”.

Seu Otacílio tava vindo às sessões fazia um mês e Madame Otília ainda não tinha conseguido imaginar uma mensagem particular para ele. Sua hora tinha chegado. “Você conhece alguém chamado de, hum, João?”

“Não”, disse Seu Otacílio.

“Bem, há alguma interferência celeste aqui. O nome pode ser José, ou Luis, ou Eraldo”.

“Eu me lembro de um José do tempo que eu tava no seminário,” disse Seu Otacílio.

“Sim, ele tá dizendo que foi do seminário”, disse Madame Otília.

“Mas eu encontrei ele na semana passada na feira de Picos e ele não parecia estar doente,” disse Seu Otacílio, um pouco perplexo.

“Ele tá dizendo prá não se preocupar, e que tá feliz lá em cima,” falou Madame Otília, que já tinha entendido que era sempre melhor dar a seus clientes boas notícias.

“Diz a Ronaldo que eu tenho umas novidades para contar a ele”, falou de novo Dona Carminha.

Aconteceu que, logo em seguida, algo veio mesmo do além e entrou na cabeça de Madame Otília.

“Sprechen sie Deutsch?”, disse “ele”, usando a boca da Madame Otília.

“Parlez-vous français?”

“Do you speak English?”

“É você, Ronaldo? “, perguntou Dona Carminha.

A resposta, quando chegou, foi bastante irritada.

“Não, de jeito nenhum. Uma pergunta tão besta como essa pode apenas ser feita em um país de ignorantes e desesperados, aliás, tenho visto muito isso durante as últimas horas. Minha Senhora, eu não sou Ronaldo”.

“Bem, eu quero falar com Ronaldo,” disse Dona Carminha, um pouco tensa. “Ele é baixinho e careca em cima da cabeça. Você pode chamá-lo, por favor?”

Houve uma pausa.

“Na verdade parece haver pairando por aqui um espírito com a sua descrição. Vou chamá-lo, mas você deve falar rápido. Eu estou tentando evitar a invasão dos Estados Unidos pela União Soviética”.

Dona Carminha e Seu Otacílio olharam um para o outro. Nada disso já tinha acontecido em sessões anteriores.

Maristela Pereira sentiu-se imediatamente como uma participante da ação dos espíritos para evitar uma guerra nuclear. Isso era muito mais do que ela esperava e começou logo a imaginar que Madame Otília fosse começar a manifestar o seu ectoplasma.

“Oi Carminha”, disse Madame Otília em outra voz que soou exatamente como a voz de Ronaldo. Em ocasiões anteriores, Ronaldo falava como Madame Otília.

“Ronaldo, é você?”

“Sim, Carminha”

“Certo. Agora eu tenho umas coisas para lhe contar. Para começar, eu fui ao casamento de Betinha sábado passado, aquela galega sarará que é mais velha do que Ronaldinho..”

“Porra Carminha, você nunca me deixou falar enquanto eu tava vivo. Agora que tou morto eu sei dessas coisas todas e vou lhe dar um recado: tou de saco cheio com essa sua chateação”.

Anteriormente, quando Ronaldo tinha se manifestado, ele dizia que estava feliz no além e que morava em uma casa parecida com uma pousada celestial. Agora ele falou irritado como o velho Ronaldo.

“Ronaldo, lembre-se de que você é doente do coração”.

“Eu não tenho mais coração, eu já tou morto. Cala a boca”, e o espírito de Ronaldo “cortou o papo” e foi embora.

“Você deve é estar morando com alguma rapariga nessa sua tal de pousada celestial. Tá pensando que eu não vou me virar por aqui também?”, ainda disse Dona Carminha.

“Bem, agora agradeço muito, senhoras e senhor, infelizmente estão muito ocupados lá em cima e cortaram a ligação”, disse Madame Otília, completamente baratinada com o que tinha acontecido.

Foi aí que Dona Carminha arrematou: “Severina Barracão, eu lhe conheço, você ainda tá de conluio com Ronaldo, pensa que eu não sei das idas dele prá sua pousada na beira da rodagem antes de você mudar de negócio?”

Seu Otacílio, um sujeito calado e percebedor, procurou em seguida um centro espírita sério e acreditado para tirar as suas dúvidas existenciais, e depois contou o acontecido na casa de Madame Otília ao avô de um conhecido meu de Anus Mundi, que recentemente me repassou as informações que tentei relatar quase sem botar nem tirar.

O Bispo, o padroeiro da cidade e os índios, na procissão em Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi não tinha bispo, mas havia alguns padres de várias tendências políticas e sociais, e até de diferentes opções sexuais.

O padre Almiro, por exemplo, andava de lambreta e quase sempre com uma paroquiana ajudante de secretária do tributo à garupa. Disse certa vez o cronista Leo de Picos, que o referido padre também aparecia de vez em quando, devidamente disfarçado de representante de laboratório farmacêutico, no bordel de Alaíde Macarrão.

Outro reverendo, muito piedoso, adorava as criancinhas.

No dia da festa do santo padroeiro da cidade, invariavelmente, o senhor bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi deslocava-se de carro pela estrada de terra desde a sede da diocese, descia do carro perto da entrada da cidade, lavava o rosto e as mãos em uma bacia dentro de um armazém de secos e molhados, trocava toda a roupa de cima empoeirada e colocava as vestes completas e o chapéu imponente de bispo, tudo isso ao som de cânticos religiosos ensaiados pelas beatas (“ma non troppo”), para iniciar o cortejo solene até a igreja matriz, de onde dirigiria a procissão.

Ao longo do percurso do cortejo do bispo, ao som da banda da Sociedade Musical 20 de Janeiro, a gente, para ver melhor, subia até em postes de luz e nos bustos de concreto de dois notáveis anusmundenses entronados na praça anterior à da igreja matriz.

O evento era tão solene que algumas pessoas tentavam e conseguiam furar a proteção policial do bispo, quebrar o protocolo e tocar as suas vestes.

Era barato subornar um guarda municipal para chegar mais perto do bispo, que era um sujeito alto e magro, elegante mesmo, quase uma reprodução do seu chefe e ídolo em Roma, o papa Pio XII, a quem conseguia imitar nos gestos de concessão de benção, com os três dedos da mão direita em movimento de cruz e com a cabeça voltando-se continuamente da esquerda para a direita, de modo a que o campo magnético divino emitido por seus olhos e suas mãos tivesse uma amplitude de 180 graus e não deixasse ninguém fora do seu alcance.

Como o seu mentor em Roma, tinha sido treinado para olhar para o nariz das pessoas, e não para os olhos, como uma forma de evitar um contato mais revelador das fraquezas de também ser mortal; por conta disso tinha um olhar natural já meio estrábico.

Mentes mais sensíveis alegavam que conseguiam sentir um “arrepio” quando eram atingidas pelo tal campo magnético divino emitido pelos olhos e mãos do bispo, e muitas delas chegaram a ser entrevistadas pelo locutor da estação de rádio da cidade próxima de São Raimundo Nonato, o Grande, também no Piauí, descrevendo sensações parecidas.

A única dissonância nos relatos foi a de Biu de Serafim, ajudante no bordel de Alaíde Macarrão, que tinha tomado umas cervejas antes da chegada do bispo e disse que o impacto do campo magnético divino da benção episcopal lhe pegou da cintura para baixo e provocou uma súbita crise de incontinência urinária, depoimento que foi transmitido pela rádio, pois a transmissão era “ao vivo” e não deu tempo de cortar.

Os padres ficavam de olho nessas pessoas que davam entrevistas à rádio e depois as procuravam para saber se tinha ocorrido mesmo algum milagre digno de divulgação.

O sonho da comunidade e da igreja em Anus Mundi era o de ter um santo local, coisa muito comum em qualquer cidadezinha mais pequena do interior da Itália.

A história dos milagres do desejado santo não precisaria ser escrita e ser um dogma de fé acreditá-la, bastava conversar com alguma testemunha ocular ainda viva e a credibilidade seria total. Se o milagre com o toque no manto do bispo acontecesse perto da fonte de água na praça, aí a fonte se tornaria também milagrosa e o negócio da água benta engarrafada ia ser monumental para a igreja e para a prefeitura.

Lá pelas cinco da tarde, finalmente, o cortejo do bispo chegava à igreja matriz.

Na hora da procissão com a imagem do padroeiro da cidade, São Sebastião, um santo importado do estrangeiro, a comoção era geral, com pessoas pagando promessas por graças conseguidas “in totum” ou “em parte”; se alguém estivesse caminhando com um pé descalço e o outro com uma sandália é que a graça pedida não tinha sido totalmente alcançada. Esse acordo, e o “in tutum” ou “em parte”, tinha sido feito com o pároco de Anus Mundi.

Na saída da igreja matriz, todos se esticavam para ver a imagem do santo sendo martirizado, amarrado a um tronco, com o peito nu e todo crivado de flechas.

Um belo dia, nesse momento dramático da saída da imagem do santo da igreja matriz, o futuro Dr. T, um grande médico anusmundense da atualidade, (… e não aquele ginecologista meio “boiola” do filme “Dr. T e as Mulheres”, o ator americano Richard Gere), que era ainda criança pequena, mas já muito curioso sobre ferimentos e como tratá-los, perguntou a um tio que o tinha levantado nos braços para melhor ver a passagem do andor do santo: “tio, por que ele está todo flechado?”

E o tio respondeu: “veio da Itália para ser santo no Brasil e foi se meter a besta com os índios…”.

Argentina dá exemplo novamente. Videla é condenado à prisão perpétua.

Jorge Rafael Videla, de oitenta e cinco anos, foi o cabeça do golpe militar de 1976, na Argentina. O regime que ele inaugurou foi responsável por 30.000 desaparecimentos. Foram muito longe em torturas – aprendidas com professores brasileiros, inclusive – e em assassinatos vis, como, por exemplo, por meio do lançamento de gente ao mar, desde aviões.

Videla foi condenado à prisão perpétua, pela segunda vez. Desta feita, foi o tribunal de Córdoba que o responsabilizou pelo assassinato de 31 presos, em uma cadeia cordobesa.

O general já fora condenado à prisão perpétua, anteriormente, em 1985. Mas, em 1990, o então presidente Menen o perdoou, por meio de uma lei de anistia julgada inconstitucional pelo tribunal constitucional argentino.

Um país que sabe de onde veio e para onde quer ir é assim. Enquanto isso, no Brasil, juristas esforçam-se na produção de sofismas para defender a iniquidade de uma auto-anistia dada pelos ditadores a eles mesmos e aos agentes públicos criminosos que mataram, torturaram, sequestraram, estupraram, esconderam cadáveres…

O coletor fanhoso. Mais um episódio anus mundense.

Contribuição de Leo de Picos para a coletânea literária de Anus Mundi, Piauí

…corria o final da década de 50. Enquanto o mundo se maravilhava com o sucesso do programa espacial da União Soviética e o Brasil efervescia com a Bossa Nova, a longínqua cidade de Anus Mundi, confins do Piauí, vivia o seu negro isolamento do resto do planeta. Os seus nativos conviviam com aquilo que lhes era disponível, além do trabalho: algumas diversões, como o pequeno cinema da cidade, alguns circos mambembes que vez por outra ali aportavam e, para os homens, os cabarés!

Dentre as casas de orgias da cidade, a mais famosa pertencia à cafetina Alaíde Macarrão que, apesar de viver de uma profissão nada agradável para a maioria das pessoas, principalmente para as madames da sociedade, era amiga e tinha como clientes boa parte dos homens influentes da cidade.

Alaíde freqüentava as missas dominicais e era amiga do Padre Almiro. Como se pagasse penitência, ajudava com bons trocados a paróquia e as línguas ferinas das beatas diziam que por isso era tão amiga do vigário. Algumas chegavam a dizer que o padre também era seu cliente e que vez por outra ia ao seu bordel aumentar o rol dos seus pecados. Essa notícia chegou até ao Bispo, que abafou o caso, mas, em compensação, vetou-lhe a promoção para Monsenhor. Compensações…

O coletor de rendas da cidade era o senhor Otávio Leicam. Homem benquisto, casado, pai de família, educado, que fazia questão de cumprimentar todo mundo, apesar de não ser político. Pertencia a uma das famílias mais tradicionais da cidade. Católico fervoroso, fazia parte da irmandade de São Sebastião, padroeiro do município. Além de chefe da coletoria, era ele, também, Presidente da Sociedade Musical 20 de Janeiro.

Seu Otávio tinha um defeito de nascença: era FANHOSO.

Sempre às quintas-feiras chegavam de Piri-Piri algumas quengas novas para o cabaré de Alaíde Macarrão, que as selecionava uma por uma e separava-as pelo gosto de cada cliente. Feito isso, mandava seu homem de confiança, Biu de Serafim, avisar com muita discrição que havia chegado carne nova no pedaço.

Seu Otávio, homem de meia idade, nunca deixava escapar uma noitada com uma dessas meretrizes, mas também nunca foi homem de dormir fora de casa. Prezava a discrição e as aparências, enfim.

Entrava no cabaré pela porta dos fundos para não ser notado. Não era chegado às bebidas, mas antes de se lambuzar com a rapariga, tomava uma cerveja pilsen natural. Dizia que, gelada, podia prejudicar sua a voz, que não era lá essas coisas.

Um belo dia, saciado da sua fome de sexo, Seu Otávio Leicam ensaiava a sua saída discreta do recinto. Na ocasião, não adiantava sair pela porta dos fundos, pois o ambiente já estava todo tomado pelos seus freqüentadores e por qualquer porta que saísse seria reconhecido.

De repente, Alaíde Macarrão tem uma idéia brilhante, pede licença aos presentes e diz que vai apagar a luz por um instante, para a saída de um homem de bem. Escuro total! Seu Otávio sai tateando com a ajuda do seu velho guarda-chuvas. Ao passar pela sala, com sua voz roufenha, apegado aos bons modos e aos hábitos, diz: BOA NOITE SENHORES, FIQUEM COM DEUS. Todos respondem em uníssono: BOA NOITE SEU OTÁVIO, ATÉ LOGO. PASSE BEM!

Saúde: aqui e algures

Minha mãe esteve por trinta e cinco dias em Montpellier, na casa de uma grande amiga dela. Esta amiga tem cidadania francesa e, recentemente, teve diagnosticado um câncer de mama. Sorte imensa dela que se encontra em França e não nesta selva mal disfarçada que é o Brasil.

À amiga foi assegurado por um médico – ou uma médica, sei lá – que nada tinha, há um ano, por ocasião da realização de uma mamografia, em uma clínica bem conceituada do Recife, daquelas cujos donos frequentam colunas sociais e que, estranhamente, também frequentaram os bancos da faculdade de medicina e fizeram um juramento hipocrático.

O Dr. Pierre Bertrand – cancérologue et chirurgien général – não é o protótipo do sábio monoglota de província, aquele ser cuja única preocupação é o dinheiro que ganha e que ganharia ainda que não se preocupasse. O Dr. Bertrand, cuja frequência em colunas sociais desconheço, embora qualquer um possa conhecer o seu currículo no Google, é daqueles que olham uma imagem radiográfica antes de lerem o laudo do exame.

O médico diagnosticou a doença da amiga da minha mãe imediatamente, na imagem da época em que o profissional estrelado brasileiro disse-lhe que não havia com que se preocupar. E iniciaram-se os tratamentos, em um centro médico de referência, totalmente à custa do Estado Francês, incluindo-se auxílio psicológico e deslocações de casa ao hospital.

O Dr. Bertrand, além de gostar da poesia musicada de Vinicius de Moraes, fez o juramento hipocrático e esteve presente a todas as aulas do curso médico. Um certo dia, às 20:30, depois de muitas horas de cirurgia, ele teve a paciência e o interesse de ver uma mamografia da minha mãe, que acompanhava a amiga a uma das consultas.

Monsieur Pierre não tem qualquer obrigação legal de olhar exames de uma cidadã brasileira sem residência permanente na França, mas fê-lo! E pacientemente, com um cuidado que o cansaço não afastou; com o cuidado de um médico. E, até então, não se sabia que Monsieur Pierre gostava de Vinicius, nem se lhe tinha oferecido um disco do poeta, o que afasta a hipótese de que se tenha corrompido pela música brasileira. Afirmou que está tudo bem.

O nosso Pierre Bertrand – e não foi ele que me autorizou essa intimidade – conversa com os pacientes independentemente de serem eles pobres, ricos, franceses, estrangeiros, pretos, brancos, amarelos. Não lhes cobra qualquer coisa no serviço público, porque recebe do Estado Francês.

Conversa e trata deles, porque não se cuida aqui de fazer elogios da tagarelice, mas do profissionalismo de um médico competente que não pensa somente em dinheiro, algo que ele tem independentemente de ser presunçoso ou de chantagear o governo francês.

O que há de melhor no sistema francês, além das diferenças entre Bertrands e brazucas, são séculos de história e milhões de euros a mais. Dos séculos de história não vou ocupar-me, para não me estender demasiado. Basta lembrar que algumas sociedades separaram a cabeça do corpo do rei, um dia.

Dos milhões de euros convém falar um pouco, porque muita gente reproduz o discurso de que não falta dinheiro para a saúde pública no Brasil. Falta dinheiro, sim, como diz repetidamente o grande médico Adib Jatene. Só não falta para uma saúde pública ruim e de pouca abrangência, como querem as pessoas mais bem aquinhoadas que podem pagar por planos de saúde privada. Essas, vivem a repercutir o discurso de que o problema é de gestão e de salários dos médicos, discursos pueris, ambos.

O dinheiro que falta impede a universalização do atendimento de saúde com qualidade. Impede a expansão da rede, a pesquisa, a utilização de equipamentos adequados e atualizados.

O dinheiro que falta, por outro lado, permite os ganhos imensos de empresas financeiras que vendem seguros de saúde,  de cooperativas de médicos que vendem esses mesmos serviços ruins, permite que os serviços privados sejam um grande negócio e permite que os médicos pensem segundo uma lógica de um serviço mercantil.

A sociedade, mantida em profunda ignorância e refém da urgência de viver e acreditar que a vida é a urgência de ter uma TV, não percebe que a solidariedade por meio de impostos e dispêndios públicos é forma muito mais barata de ter acesso a um serviço essencial que, de resto, é constitucionalmente assegurado a todos.

« Older posts