Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: dezembro 2010 (Page 2 of 6)

A irracionalidade no discurso jurídico. Paulo Otero e os sofismas.

O discurso jurídico é, como tudo que se apresenta mediante linguagem, algo apreensível racionalmente. Ou seja, as conclusões seguem-se das premissas e estas são as normas. Seguem-se de acordo com simples modelo lógico-formal, em que a coerência interna não é coisa obscura ou difícil de buscar.

Problema maior – que geralmente é escamoteado – é a fonte do poder, quer dizer, quem pode ditar regras. Aqui, criou-se uma confusão que, no limite, é contrária ao sistema, como ele está enunciado. O modelo do Estado constitucional democrático representativo confere ao legislativo a preeminência, o poder de fazer regras gerais e abstratas, exercendo o poder soberano por derivação.

O restante, consequentemente, é aplicação da lei, concretamente, seja atuação política no campo aberto pela lei, seja aplicação da lei para resolver um litígio. Essas atuações dependem da lei, seja como fundamento de legitimidade da escolha política, seja como fundamento de validade da decisão judicial.

Nesse tipo de sistema, a contradição é uma ameaça à coerência interna, mas ela existe, como é próprio de qualquer modelo que tente racionalizar-se. Porém, ameaça maior que a contradição é sua negação a partir de sofismas mais ou menos complexos, sofismas que são, eles mesmos, profundamente contraditórios.

A aceitação da contradição é antecedente a qualquer postura epistemológica. Sua negação é tentativa oblíqua de usurpar o poder de fazer as normas ou de aplica-las. No limite, tal espécie de negativa e justificação é uma ação criadora de confusão, no sentido mais próprio desse termo. Ou seja, uma ação que visa a dizer que uma certa falta de identidade de duas coisas não existe e que, no sentido contrário, há uma identidade entre coisas diversas.

O sistema legal é hierarquizado de maneira a que as normas fundamentem-se em outras de grau mais elevado e de maior nível de abstração. Tudo isso vai desaguar, de baixo para cima, na constituição. Assim, uma norma que seja contrária à constituição não vale, se essa contrariedade for descoberta, apontada e declarada.

É óbvio que se essa norma não vale – pressupondo-se que foi dito por quem tem essa atribuição – também não valem as coisas que se fizeram a partir dela, inclusive sentenças judiciais. Ora, se a sentença aplicou uma lei que não vale, ela própria não vale, pois o contrário equivale a assumir que o juiz está acima da constituição.

É também óbvio que essa possibilidade de invalidar normas e decisões posteriormente a feitura delas cria potencialmente enormes problemas. Mas, dizer que eles não existem ou dizer que a supremacia da constituição também não existe não resolve esses problemas.

Um indivíduo lúcido – embora polêmico – como Paulo Otero disse uma obviedade – que é o mais difícil de dizer-se – contra que muitos sofistas cerraram forças. Disse que o modelo queria constitucionalizar o inconstitucional. Disse-o a propósito dos casos julgados e as posteriores declarações de inconstitucionalidade das leis que basearam o julgamento.

Está claro que se uma lei foi julgada inconstitucional, os casos julgados anteriores que a reputaram válida são também inválidos. Se não há a base, tampouco há o julgamento, pois este não tem autonomia em relação à lei, senão seria arbítrio judicial, pura e simplesmente.

Essa proposição não faz mais que assumir a lógica elementar aplicável à interpretação jurídica. O problema existe e está bem diagnosticado, mas estudiosos querem negá-lo, negando a própria lógica, ao invés de negá-lo logicamente.

Poderiam dizer que a decisão de um tribunal constitucional não precisa necessariamente afirmar ou infirmar, assim puramente, a inconstitucionalidade de uma norma. Assim, estar-se-ia assumindo que a decisão é mais legislativa que judicial, ou seja, que é mais uma revogação que uma invalidação. E não há problemas nisso.

Problemas há em dizer que se trata de uma invalidação de uma lei que, por sua vez, não invalida as decisões que foram tomadas com base nela. Aí, mais que contradição, tem-se uma profunda mentira.

E agora, Brasil? Texto de Fábio Konder Comparato.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de decidir que o Brasil descumpriu duas vezes a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por não haver processado e julgado os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na chamada Guerrilha do Araguaia. Em segundo lugar, pelo fato de o nosso Supremo Tribunal Federal haver interpretado a lei de anistia de 1979 como tendo apagado os crimes de homicídio, tortura e estupro de oponentes políticos, a maior parte deles quando já presos pelas autoridades policiais e militares.

O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos.

Além dessa condenação jurídica explícita, porém, o acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contém uma condenação moral implícita.

Com efeito, responsáveis morais por essa condenação judicial, ignominiosa para o país, foram os grupos oligárquicos que dominam a vida nacional, notadamente os empresários que apoiaram o golpe de Estado de 1964 e financiaram a articulação do sistema repressivo durante duas décadas. Foram também eles que, controlando os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão do país, manifestaram-se a favor da anistia aos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar. O próprio autor destas linhas, quando ousou criticar um editorial da Folha de S.Paulo, por haver afirmado que a nossa ditadura fora uma “ditabranda”, foi impunemente qualificado de “cínico e mentiroso” pelo diretor de redação do jornal.

Mas a condenação moral do veredicto pronunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos atingiu também, e lamentavelmente, o atual governo federal, a começar pelo seu chefe, o presidente da República.

Explico-me. A Lei Complementar nº 73, de 1993, que regulamenta a Advocacia-Geral da União, determina, em seu art. 3º, § 1º, que o Advogado-Geral da União é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão” do presidente da República. Pois bem, o presidente Lula deu instruções diretas, pessoais e imediatas ao então Advogado-Geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, para se pronunciar contra a demanda ajuizada pela OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153), no sentido de interpretar a lei de anistia de 1979, como não abrangente dos crimes comuns cometidos pelos agentes públicos, policiais e militares, contra os oponentes políticos ao regime militar.

Mas a condenação moral vai ainda mais além. Ela atinge, em cheio, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se pronunciaram claramente contra o sistema internacional de direitos humanos, ao qual o Brasil deve submeter-se.

E agora, Brasil?

Bem, antes de mais nada, é preciso dizer que se o nosso país não acatar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele ficará como um Estado fora-da-lei no plano internacional.

E como acatar essa decisão condenatória?

Não basta pagar as indenizações determinadas pelo acórdão. É indispensável dar cumprimento ao art. 37, § 6º da Constituição Federal, que obriga o Estado, quando condenado a indenizar alguém por culpa de agente público, a promover de imediato uma ação regressiva contra o causador do dano. E isto, pela boa e simples razão de que toda indenização paga pelo Estado provém de recursos públicos, vale dizer, é feita com dinheiro do povo.

É preciso, também, tal como fizeram todos os países do Cone Sul da América Latina, resolver o problema da anistia mal concedida. Nesse particular, o futuro governo federal poderia utilizar-se do projeto de lei apresentado pela Deputada Luciana Genro à Câmara dos Deputados, dando à Lei nº 6.683 a interpretação que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a dar: ou seja, excluindo da anistia os assassinos e  torturadores de presos políticos. Tradicionalmente, a interpretação autêntica de uma lei é dada pelo próprio Poder Legislativo.

Mas, sobretudo, o que falta e sempre faltou neste país, é abrir de par em par, às novas gerações, as portas do nosso porão histórico, onde escondemos todos os horrores cometidos impunemente pelas nossas classes dirigentes; a começar pela escravidão, durante mais de três séculos, de milhões de africanos e afrodescendentes.

Viva o Povo Brasileiro!

Morte na zona, danação eterna e indulgência papal… no interior do Piauí nos anos 50.

Um conto – ou talvez crônica – de autoria de Sidarta.

Há uma região no estado do Piauí, na fronteira com o Maranhão, conhecida como “caminho do céu”, pois quase todas as localidades na estrada principal possuem nomes de santos católicos.

A última localidade nessa estrada poderia ter qualquer nome, mas achei mais apropriado chamá-la de “Anus Mundi”, uma vez que parece ser isso mesmo e não me lembro, nem mais achei no Google Earth  o nome real do famoso lugar.

Nos anos 1940, saiu de Anus Mundi para ir estudar em Teresina um rapaz de futuro promissor, não tão baixinho, de cabeça tão pequena e sem pescoço como a maioria dos seus conterrâneos, e também dotado de uma boa voz (era locutor esportivo e torcia invariavelmente pelo Anus Mundi Futebol Clube – AMFC do Piauí).

Em Teresina, estudou direito e, nos anos 1950, conseguiu publicar um artigo em um jornal com uma proposta de tese sobre uma questão polêmica: atirar em alguém pelas costas, sem a vítima perceber quem estava atirando, era um crime maior ou menor do que atirar de frente?

O caso é que matava-se e morria-se muito de bala em Anus Mundi e redondezas por aqueles anos e, assim, a tese podia ter interesse prático!

Um advogado experiente do Ceará, aproveitou-se da discussão e passou a insinuar que se o criminoso conseguisse pegar a vítima olhando para um espelho, essa não poderia alegar que o tiro foi dado pelas costas (se escapasse do tiro) pois, para a vítima, ela percebeu o tiro como que vindo de frente pelo espelho.

Os advogados estavam tomando consciência das vantagens de conhecer um pouco da teoria da relatividade de Einstein, além do arsenal comum de lógica elementar.

A tese ganhou discussão e o nobre, jovem e promissor advogado conseguiu uma bolsa de estudos para fazer um estágio na Itália, onde conheceu o papa de Roma e também aproveitou a viagem, e parte do dinheiro economizado da bolsa, e comprou do Vaticano um certificado de indulgência, que supostamente lhe perdoava automaticamente alguns tipos de pecados, sem ter que  os confessar a um padreco qualquer.

Dentre os pecados incluídos no certificado (e aí eu desconfio que houve falcatrua, pois só era mostrada uma cópia heliográfica do certificado… o original o proprietário dizia que o mantinha em um cofre secreto), estava a dispensa da danação eterna se o proprietário do tal certificado emitido pelo Vaticano de Roma morresse, por exemplo, de repente… na zona.

Já no fim dos anos 1950, o bispo da diocese que englobava a localidade de Anus Mundi anunciou uma visita pastoral, um evento de importância monumental para a comunidade anusmundense.

Não há como descrever os preparativos dos moradores para a chegada do bispo, e até pessoas que já tinham deixado Anus Mundi para ir morar em Fortaleza, em São Luis e em Teresina (diziam que havia anusmundense até em São Paulo) vieram para prestigiar a visita do bispo.

Dentre os anusmundenses notáveis, veio o brilhante advogado que foi estudar em Teresina nos anos 1940 (já lidava em Teresina com uma bem conceituada banca), o proprietário da indulgencia papal.

Para não esticar muito a estória, vou rápido aos finalmente.

Na véspera da chegada do bispo, um vereador local muito querido teve o azar de morrer na zona…. e a notícia logo chegou aos ouvidos do bispo, assim que colocou os pés em Anus Mundi.

A pena para a alma do querido e azarado vereador era excomunhão seguida de danação eterna, não havia dúvidas.

Foi aí que o brilhante advogado anusmundense, o criador da idéia que gerou depois a tese da relatividade do caminho da bala diante de um espelho, resolveu oferecer alugar (vender? só por uma fortuna incomensurável) o seu papel de indulgência papal “até para morte na zona”, para que o documento fosse recopiado com o nome do recém falecido político, e apresentado ao bispo para que se conseguisse o perdão para a alma do querido vereador “Zé das Nêgas”.

Iniciada a coleta de donativos para a aquisição “da cópia da cópia” do documento papal, acertou-se com o bispo que “Zé das Negas” não iria para o inferno, mas que a igreja ficaria com todo o dinheiro coletado para alugar e fazer uma cópia do certificado de indulgência para “morte na zona”.

Foi a única vez que eu soube que um advogado esperto não conseguiu fechar um negócio com um cliente “realmente em desespero”; o advogado chefe da banca do concorrente era simplesmente um delegado oficial comissionado de Deus na terra.

Homenagem ao nosso Luiz Gonzaga.

Hoje Luiz Gonzaga faria 98 anos. Natural de Exu, em Pernambuco, o músico morreu em 1989 e deixou um legado riquíssimo para a cultura nordestina.

Se a gente lembra só por lembrar
De um amor que a gente um dia perdeu
Saudade entonce assim é bom pro cabra se convencer
Que é feliz sem saber pois não sofreu

Porém se a gente vive a sonhar
Com alguém que se deseja rever
Saudade entonce assim é ruim eu tiro isso por mim
Que vivo doido a sofrer

Ai quem me dera voltar
Pros braços do meu xodó
Saudade assim faz doer e amarga que nem jiló
Mas ninguém pode dizer
que vivo triste a chorar
Saudade o meu remédio é cantar
Saudade o meu remédio é cantar

Lindo!

Serra e o entreguismo escancarado.

Essa maravilha que são os vazamentos do Wikileaks deixou claro que o entreguismo era a força motora da campanha de José Serra, o corretor do Brasil.

Uma comunicação diplomática de dezembro de 2009, revela que a executiva da Chevron Patricia Pradal conversou com o então candidato José Serra sobre o modelo de exploração do petróleo brasileiro. E que o candidato assegurou-lhe que mudaria o modelo novamente, para diminuir a participação da Petrobrás e, evidentemente, leiloar a festa entre as petroleiras estrangeiras.

A representante da Chevron relatou as conversas ao Cônsul norte-americano no Rio de Janeiro, que as repassou ao Dep. de Estado. A preocupação dessa gente é o modelo de partilha, adotado para a exploração das imensas reservas do pré-sal brasileiro. Eles temiam que a Petrobrás assumisse papel muito destacado na exploração e queriam, como sempre querem, espaço para o saque.

Que José Serra representou os entreguistas, todos sabem, embora nem todos queiram aceitá-lo. Agora, o que sempre se soube está documentado sem eufemismos em uma correspondência oficial da diplomacia norte-americana, com aquela clareza de identificar os nossos e os outros.

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