Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: março 2011 (Page 1 of 5)

É de pesar?

Seu Apolinário tinha um armazém de secos e molhados. Na verdade, um armazenzinho tão pequeno quanto era a cidade dele. Pequenos, armazém e cidade, como podiam ser essas duas coisas na década de 1960, no interior do Nordeste do Brasil.

A única peculiaridade do estabelecimento de Seu Apolinário é que não fechava as portas no horário de almoço, aquele de extremo calor e extrema preguiça. Certamente que isso não se devia à intrepidez comercial dele, mas àlguma mania ou hábito, ou conveniência.

O fato é que Apolinário comia o almoço, que Dona Conceição trazia de casa, ou seja, dos fundos da loja, atrás do balcão. Depois, punha de lado o prato, esticava as pernas e cochilava um sono bem leve, com o botão de cima da camisa aberto. Estava atento, todavia.

Os calores diurnos do agreste nordestino renderiam quilos de papel , tanto em descrição, quanto em poesia. Poupemos essas decrições e esqueçamos da poesia, que ambos seriam longos e eu incapaz da segunda. Fato é que, entre onze horas e três da tarde, quem tem juízo descansa o juízo.

O gato do armazém de Seu Apolinário tinha juízo bom. Quer dizer que o felino dormia nessas horas infernais. E, quer dizer que ele, o gato, ser inteligente, dormia nos locais mais frescos.

Como qualquer armazém, o de Seu Apolinário tinha uma balança, daquelas de dois pratos de metal. De um lado, põe-se o produto comprado a peso, de outro, os pesos de ferro. Ficava em cima do balcão, de madeira velha e alisada pelo tempo. O que havia de menos quente nesse ambiente eram os pratos da balança.

Se alguém vinha até ao armazém nessas horas de almoço, cheio de urgências que levavam àquela única loja aberta, Seu Apolinário abria mais os olhos e perguntava, antes de qualquer boa-tarde: é de pesar?

Sim, porque se o cliente quisesse um produto cuja venda dependesse de pesar-se a quantidade, ele dizia para passar mais tarde. Se o cliente insistisse, ele apontava para o gato deitado no prato da balança.

Justo homem! Acordar um gato para vender algo?

 

Jimmy Carter em Cuba. Apenas para falar de uma lembrança.

 

Lembro-me bem – que eu devia ter uns vinte e poucos anos – de um almoço na casa de meu tio Fernando, em que estava um amigo prezado dele, Camilo Steiner. Camilo, não me lembro se era austríaco há muito no Brasil, ou brasileiro filho de austríacos – era casado com Janet, norte-americana.

Janet era amiga de escola de Rosalynn Carter. Eles eram amigos, os casais Steiner e Carter. Camilo Steiner gostava de Carter, como se gosta de um amigo. Tinham-se hospedado na Casa Branca, quando Carter era Presidente e eles foram visitá-los nos EUA.

Pelas tantas, no almoço em Recife, falava-se das atuações dos EUA no mundo, na época o presidente era o Bush pai, acho. Inaugurava ou aprofundava a indignidade e a falta de honradez que vem caracterizando esses presidentes. Eles falavam, eu escutava, que na época ainda escutava bem.

Conversavam e Fernado disse: Camilo, diz a Andrei, que é novo e anda impressionado com patifarias, o que é Carter e um presidente americano.

Carter – ele disse olhando para mim – é uma pessoa que teu tio receberia em casa e tu sabes que isso depende da pessoa, mais que do presidente ou outra coisa.

Fiquei com isso na cabeça. A situação faz-me parcial, não escapo a julgar de uma forma parcial, os personagens levam-me a isso.

Carter, independentemente daquele amigo de Camilo Steiner, é uma figura muito além de outras que ocuparam a presidência norte-americana, mais real e menos imbecil e menos rude e mais inteligente e mais georgiano e mais civilizado.

 

A obsessão do sangue, de Augusto dos Anjos.

Acordou, vendo sangue… — Horrível! O osso
Frontal em fogo… Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!

Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão …

E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!

Soldados dos EUA brincam com cadáveres de afegãos!

Não feche os olhos, olhe! É feio como nós somos feios internamente. Não é só matar, é divertir-se a matar e ter o cuidado de registrar a diversão. Não é novidade, mas não deixa de ser escandaloso apenas por faltar originalidade.

Eles não compreendem porque são vastamente odiados. Não compreendem que já se percebeu a profunda hipocrisia de seus discursos de direitos humanos ou democracia ou qualquer outra merda destas.

Adiante, o exército norte-americano levando o bem-estar, a democracia, os direitos humanos e uma mensagem de paz aos afegãos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Guerra: o principal por trás dos acessórios.

Não se faz a guerra por interesses alheios. Dos interesses dos outros, cuidam eles e só eles. A guerra por interesses estranhos aos próprios só tem exemplo nos mercenários, mas esse caso não invalida a assertiva inicial. Os mercenários estão a soldo e custam caro; eles não fazem a guerra por interesses alheios, fazem-na por pagamento.

A guerra é instrumento de conquista ou de manutenção: de dinheiro, de território, de recursos naturais, de honradez. Há outra variante das motivações mais evidentes, que com elas se mistura: a geração de despesas para uma nação, a bem de quem vende os instrumentos de guerra.

O evidente é que não se fazem guerras para proteger os outros. Aqui, dois aspectos destacam-se: primeiro, o que se consideram outros; e segundo, a mentira que subjaz à guerra pelos interesses alheios.

Outro é definido por identidade cultural, alem de identidade de interesses econômicos e financeiros. Isso não se devia esquecer, para não se ficar em percepção enviesada e insuficiente do que está em jogo. Para que não se lancem objeções superficiais, outro é muito mais que a diferença entre nacionais de países diferentes.

Mas, não se limita às diferenças, por exemplo, entre muçulmanos e cristãos. Saber o que são os outros implica considerar a história e a cultura como elementos fundamentais das tensões que resultam em guerras. Contra os semelhantes – os não – outros – podem-se fazer violências tremendas, também.

Todavia, as violências entre semelhantes delimitam-se no âmbito não-violento, fisicamente. Delimitam-se no âmbito institucional, jurídico. É questão de embate entre os que detém mais riquezas e os que detém menos. Essa tensão no mesmo grupo resolve-se de forma menos drástica que a guerra, embora possa ser tão ou mais perversa.

O outro é aquele que pode e deve receber bombas na cabeça, porque definido por exclusão. A exclusão do diferente permite que ele seja um fator de justificação, pura e simplesmente, assim mesmo, despersonalizado.

Um exemplo basta, entre muitos. Bombardear a Líbia – ou o Iraque, ou qualquer outro outro – é algo que a opinião pública dos bombardeadores concebe quase abstratamente, com toda confusão que o abstrato pode gerar nas massas. Misturam-se mil e uma impressões, pedaços de conceitos, fragmentos de conhecimentos poucos, para gerar a paixão.

A paixão, tão superficial quanto as lágrimas que substituem uma emoção forte por uma fraca, é cega e torna cegos os que a ela sucumbem. A paixão está a serviço da razão, mas a inclinação emocional de uns a serviço da atividade clara de outros.  Não que uns apoiem estupidamente outros, porque todos sabem a que se visa e o que se ganha.

Todos ganham, uns mais e outros menos, todos são culpados, todos são vencedores ou perdedores. Assim é, porque uns são outros, contra quem tudo é possível, tudo é roubável.

Pára estancar o discurso meio obscuro, lembremos que a gasolina é barata nos EUA porque os outros, que a produzem, não são donos dela. Se eles resolvem aumentar o preço desse líquido inflamável, formam o consenso dos que o consomem. O consenso dos que se beneficiam mais e menos contra os que não se beneficiam de nada.

Faz-se a guerra, a bem de qualquer mentira, que elas servem igualmente bem, sejam bem elaboradas ou não. Faz-se a guerra por razões humanitárias. Esse nome, destituído de significados tangíveis, insere-se no simbólico. Quero matar, mas quero dizer que tive motivos para fazê-lo.

 

Resoluções da ONU, morticínio e o amor juvenil pelas formas.

Leio um artigo assinado, no Diário de Pernambuco de hoje. O escritor ocupa o papel e despende a tinta, a falar do mundo, da ONU, da Líbia, da democracia, do concerto universal, do direito disso e daquilo. Não faz mal à digestão de uma laranja e duas xícaras de café, meu desjejum domingueiro.

Na verdade, faz quase nada, nem agride a lingua, o que já é vantajoso. Em certo ponto, porém, o apego cego – sim, porque não me permito usar ingênuo, que então essa seria minha postura – pelas formas.

O artigo propõe que os bombardeamentos à Líbia deram-se de acordo com uma resolução da ONU, assim mesmo, como se falasse de algo autorizado pelo Deus que subitamente se encarnasse e desse uma ordem. E, a destruição que vem dos céus autorizada por uma resolução da ONU é, portanto, um assunto neutro, asséptico. Deixa de ser uma destruição, passa a ser uma não-coisa, a ser vista pela ótica de uma juridicidade sem nada por trás.

Uma resolução da ONU não passa da decisão de cinco membros, os que têm poderes de veto. Uma decisão de cinco membros representa os interesses deles, só e exclusivamente. Não consiste em qualquer fonte de direito, mas em expressão de poder minoritário. Ou seja, não pode ser fonte jurídica nem mesmo sob o prisma democrático!

O bombardeamento da Líbia não é, nem um assunto jurídico, nem uma bobagem qualquer, nem uma missão humanitária. É o início de uma ação saqueadora maior, para que pouco importam mortes desses ou daqueles civis. Não encontra qualquer chave de compreensão jurídica, porque não há esse direito de violar soberanias, não há mesmo direito quando se inicia a guerra, um e outro são coisas diversas.

É ocioso buscar entender um saque de recursos naturais a partir de autorizações da ONU, porque elas sempre existirão para autorizar, primeiro o que não demanda autorização, segundo o que sempre será autorizado segundo os interesses dos detentores do veto.

STF é fiador da insegurança jurídica.

O que falta, vou dizer a conclusão logo ao princípio, é exposição pública, é assunção de riscos correspondentes à natureza da atuação deles. Falo aqui do supremo tribunal federal, aquele que julga a constitucionalidade dos atos normativos no Brasil e que ocupa um espaço mediático maior que os tribunais congêneres, nos demais países com sistema jurídico assemelhado.

Ocupa maior espaço na imprensa porque reivindica maior poder político, embora já o tenha muito. O protagonismo crescente do tribunal gera toda sorte de mal-entendido e de análises e propostas disparatadas. Esse risco, o de fomentar a incompreensão, é indesejado, ao contrário do risco político puro.

Na semana passada, o stf julgou um recurso a envolver a aplicação da lei da ficha limpa. A tal lei foi elaborada por iniciativa popular, depois da coleta de mais de um milhão de assinaturas de apoio e de forte campanha com ênfase moralista e emocional.

O fato é que se acredita, no Brasil, que os políticos são piores que as demais pessoas, em termos de honestidade. Não percebo a coisa assim. Acho que o problema, neste país, é que existem políticos em demasia, esferas políticas demais, bastando tomar-se o caso do número de prefeituras municipais para compreender-se o que falo.

No relativo, a política equivale-se em quase todas as partes, porque se trata basicamente da mesma coisa, ou seja, tomar conta do público em benefício próprio, embora sempre a nega-lo. Claro que há diferenças no custo de oportunidade da desonestidade na condução política. E aqui, novamente, a diferença quantitativa brasileira faz a diferença qualitativa.

A existência de milhares de pequenos e minúsculos municípios, todos com suas prefeituras e câmaras municipais e estruturas administrativas, todos mantidos com dinheiros do governo federal central, torna o desvio de recursos públicos um convite fácil de aceitar-se. Uma estrutura dessas é virtualmente não fiscalizável.

Bem, o caso é que a lei da ficha limpa foi proposta, aprovada e sancionada e entrou em vigor. Previa a inelegilibilidade de quantos tivessem sido condenados ao menos por um órgão colegiado, ou seja, em duas instâncias. Ela entrou em vigor antes da convenções partidárias que escolheram os candidatos ao pleito geral de 2010.

Há um artigo na constituição federal dizendo que a lei modificadora do processo eleitoral não se aplica às eleições que ocorrem até um ano da sua data de vigência. A questão chegou ao stf, que decidiu, por seis votos a cinco, que a lei não podia ser aplicada às eleições de 2010.

O problema é definir processo eleitoral. De minha parte, acho que começa com as convenções partidárias e, portanto, a lei da ficha limpa não alterou o processo eleitoral, porque ele iniciou-se já sob novas regras. Mas, não quero discutir teses jurídicas, até porque uma questão decidida por seis a cinco é daquelas que ensejam discussões intermináveis.

Os candidatos impedidos pela lei da ficha limpa foram escolhidos por conta e risco exclusivos dos seus partidos políticos, que já conheciam a regra, evidentemente. Tiveram seus registros de candidatura indeferidos e começaram o previsível caminhos das ações judiciais. Munidos de decisões precárias, por serem liminares, apresentaram-se à votação, como se tudo estivesse muito bem e definitivamente resolvido.

Durante o período imediatamente anterior ao pleito e nos momentos que se seguiram, o stf furtou-se a decidir a questão antes da posse dos eleitos. Fê-lo ao argumento – hoje evidentemente falacioso – de que a corte estava desfalcada de um juiz, estava com apenas dez de sua composição de onze. E argumentaram alguns juízes que a responsabilidade por isso seria do Presidente Lula, que não nomeara o décimo-primeiro ministro a tempo.

Um sofisma que chega a ser tolo e que foi desmascarado facilmente, embora seus propositores façam de conta que não o formularam. Primeiramente, a corte podia, sim, decidir com dez juízes, porque o presidente pode e deve votar para desempatar. Segundamente, basta considerar que um dos ministros podia estar afastado por doença, por exemplo, e ninguém em são juízo diria que a culpa era do Presidente que nomeara o doente!

Decidida a questão agora, passados três meses das posses de senadores, governadores, deputados federais e estaduais, sucede que centenas de parlamentares, que foram diplomados e empossados, perderão seus mandatos, substituídos por outros que nunca podiam ter disputado o pleito, porque inseridos nas hipóteses de ficha-suja.

Não é desejável para uma democracia representativa o entra-e-sai de agentes políticos, ao sabor de decisões judiciais múltiplas e conflitantes e tomadas – ou não tomadas – inoportunamente sob argumentos pueris. Reforça a percepção de que se trata de um jogo obscuro – não falo de obscuridade mafiosa, mas de complicação mesmo – em que o voto é um detalhe, as regras são detalhes, de que ocorre uma luta de vale-tudo entre especialistas, algo de que o público, enfim, não tem a menor noção, nem participação.

Interessante é notar que essa insegurança patrocinada pelo judiciário, mais notadamente pelo stf, pretende-se baseada apenas na interpretação de normas técnicas, ou seja, fora das possibilidades de crítica de quantos não são os especialistas da corporação jurídica. Na verdade, não é isso que acontece.

O jurídico, qualquer que seja o fenômeno jurídico, está impregnado de política, pois trata-se de tirar algo de um para dar a outro. Ora, essa atividade não se faz sem escolhas que não sejam mais complexas que as escolhas prévias que a lei contem. O direito puro, mecânico, alheio a escolhas políticas é uma falácia.

Que assim seja, é natural. Não é natural que assim seja, mas pretenda-se de outra forma, a querer-se disfarçar em ciência pura o que é disputa minimamente organizada. Há balizas mais e menos gerais que contém a disputa, que a põem em termos mais ou menos previsíveis, que apontam alguns limites do absurdo.

Por conta das indignações emocionadas e previsíveis do público, volta e meia surgem idéias de reformas judiciais que, no fundo, nada mudariam ou mudariam para pior. Estas reações são, na verdade, as desejadas pela corporação, que reforça sua incomunicabilidade, seu hermetismo defendido ao argumento da especialidade própria e inatingível. Livra-se da discussão e do fogo aberto próprios da esfera política.

Somente poderiam reivindicar essa impossibilidade de crítica se estivessem no jogo como conceitualmente prevê-se que estejam: sóbrios, discretos, afastados, atentos à lei, sem antecipar decisões, sem manifestar-se sobre tudo, até o que não lhes diz respeito. Se assim procedesse, o judiciário – o stf – poderia reclamar o privilégio de não se submeter ao julgamento público amplo.

Mas, não. Joga como jogam os meninos que são os donos da bola, contra quem nada se pode dizer, embora queiram jogar. Fazem política, emitem opiniões sobre o que julgarão, julgam por voluntarismo mais que por legalidade e para isso não buscam legitimidade.

Há pessoas que vêm na forma de escolha dos ministros do stf um sistema errado. Isso é uma bobagem, o modelo é o único harmonizável com a forma de estado que a constituição desenhou. Um tribunal político não pode ser formado senão politicamente, pois, do contrário, não pode tomar decisões políticas. E as decisões de constitucionalidade são eminentemente políticas, o que não quer dizer que sejam aleatórias, evidentemente.

O tribunal constitucional não pode ser tecnocrático, ou seja, acessível apenas para os quadros de uma corporação estatal, porque esses quadros não têm legitimidade popular, não receberam um mísero voto, e a constituição diz – bem ou mal – que todo poder emana do povo. Nem uma leitura enviesada de Habermas dá suporte à idéia de um tal tribunal constitucional formado por burocratas escolhidos por concursos públicos.

No formato atual, os juízes são indicados pelo Presidente da República – a pessoa com mais votos no país, evidentemente – e são sabatinados pelo Senado da República, uma casa parlamentar de representação paritária dos Estados Federados. Depois, se aprovados na sabatina, são nomeados pelo Presidente para o cargo vitalício.

A vitaliciedade é um equívoco e os juízes do stf deveriam cumprir mandatos determinados, precisamente por ocuparem uma posição política. Muita coisa fala-se a respeito da duração dos mandatos políticos, em um sistema que se quer democrático. E fala-se entusiasticamente que eles devem ser limitados, porque a falta de limites seria contrária à democracia.

Pois bem, assim sendo, impõe-se que os juízes do stf cumpram mandatos fixos, porque este tribunal encarna um dos poderes da república que se diz democrática. Um poder que diz o que é ou não constitucional é mais legislativo que judiciário, na verdade. Faz escolhas em nível mais elevado que as do dia-a-dia do parlamento, porque trata de normas mais elevadas.

Em meio à confusão que se segue à indignação, as idéias mais absurdas e diversionistas podem frutificar. Eis que se propõe, agora, como reforma do funcionamento judicial, a supressão dos recursos extraordinários, ou seja, daqueles que vão além dos tribunais regionais. Essa limitação de acesso à jurisdição quer-se a bem de reduzir a morosidade.

Ora, os recursos não são os responsáveis pela morosidade judicial. Os responsáveis por essa imensa litigiosidade que se observa no Brasil são coisas de que ninguém quer falar. Suprimir recursos, reduzir prazos, mudar número de artigos de lei, é algo que deve interessar somente às editoras de manuais jurídicos.

O isolamento dos tribunais superiores, decorrente dessas idéias de os tornarem inacessíveis por meio de recursos, é a busca de concentração de poder. A busca do aprofundamento de sua natureza legislativa, que fica evidente nas decisões vinculativas e de aplicação geral.

A busca de poder, notadamente de poder equivalente ao legislativo, deve passar por discussões mais lúcidas, amplas e aprofundadas que essas que se lançam no calor de uma polêmica pública. Isso não é trivial, nem exclusivo de uma classe de iniciados, nem desimportante para o público.

Seria interessantíssima uma consulta pública sobre o judiciário que o Brasil quer ter. Seria interessante que se apontassem algumas das causas do entupimento dos tribunais de processos. Por exemplo, devemos milhões de processos ao voluntarismo aleatório-selenítico do ex-Presidente Fernando Collor.

Uma atividade governativa e legislativa inspirada na avalanche de um discurso de modernidade de fancaria, implicou na mais intensa supressão de direitos patrimoniais que já se viu neste país. Desde o confisco puro e simples do dinheiro das pessoas, as demissões arbitrárias de funcionários públicos, à supressão mágica de índices de inflação, além de outras coisas do gênero. Isso gerou um passivo judicial imenso, evidentemente.

Ao invés de se pedir a supressão de recursos judiciais, os senhores togados deviam pedir ao governo que reconhecesse suas dívidas e as pagasse, extinguindo as demandas. E que não voltasse a andar de braços dados com a loucura de medidas emergenciais com bases jurídicas que devem ter sido forjadas por primeiro anistas ou pândegos a divertirem-se com os problemas que estavam criando para o futuro.

Ao invés de deixar de julgar alegando impossibilidade pela falta de um ministro e de pôr a culpa disso no Presidente, deviam julgar com quantos se encontrassem, porque isso é possível.

 

 

 

 

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