Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: abril 2011 (Page 2 of 3)

Excursão humanitária a faixa de Gaza: 2ª Frota.

Com a devida licensa, aos bons textos de Andrei, tomo um pouquinho do espaço (bom espaço) da Poçao, pra divulgar um vídeo sobre a faixa de Gaza.

Primeiro de tudo, não estou exatamente escrevendo um texto, mas, mais do que isso, divulgando um vídeo… O tema de Israel e Palestina é bem presente na Europa, talvez pela proximidade física, talvez pela existência de alguns poucos que realmente se importem com isso, e acreditem em valores amplamente divulgados como são os direitos humanos (e desses, precisamos mais, não só no Brasil, como no mundo todo, se fosse um programa televisivo, até aqui o texto se chamaria, “gente que faz”), e tambem pela existência de alguns que querem se aproveitar da (subis) existência promovida pelos grupos dos quais os primeiros fazem parte.

Assim, que, voltando a Palestina, tema que me persegue essa semana, depois de ver dois episódios de Salvados, programa de televisão tipo documentário, com um humor por vezes ácido, por vezes bobo, mas com uma fórmula que funciona… Primeiro tratando mais o tema pelo lado palestino, depois pelo lado judeu… É notável, e eu já concordava com isso, a conclusão a que chegam alguns entrevistados, e o próprio apresentador (@jordievole) de que os argumentos são os mesmos dos dois lados, e que um lado, quer o fim do outro.

Não obstante, há claramente um lado mais forte, o Judeu, que sem dúvida oprime os mais fracos palestinos, basta ver pedaços das reportagens para notar que os “colonos” judeus, em algumas cidades palestinas, jogam o lixo em cima dos palestinos, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Isso pra dizer o mínimo. Crimes e assassinatos de civis, acontecem de ambos os lados, que têm seus heróis e mártires cada um a seu gosto, mas de novo, levando em consideração o exército de Israel, ai os crimes dos Judeus, dão de goleada, sem dúvida. Vale muito a pena ver os documentários, pra ver outras nuances do problema, na minha opinião singela os documentários eximem um pouco Israel, mas eles também não se propõem a atacar uma das realidades, apenas “noticiar”…

E ai, o mais importante, e impressionante também. Hoje, há alguns minutos atrás na verdade, fui a uma palestra da Anistia Internacional, onde ocorreu o depoimento de uma garota catalã que estava em um dos barcos da excursão humanitária a faixa de Gaza no ano passado. Ela conta as torturas a que foram submetidos os tripulantes (civis) pelo exército de Israel, entre muitas outras coisas, que foram algemados todos pelados, e a discriminação promovida pelo exército de Israel entre europeus e mulçumanos, suas conversas com os Turcos (maioria na frota já que o maior barco era Turco) sobre a Islãmofobia que vem tomando conta da Europa.. Enfim, um depoimento preciosíssimo, que eu realmente gostaria de ter em vídeo, para não estragá-lo com estes mal escritos parágrafos.

O impressionante, é que, após ver a morte, a tortura, e etc, ela pretende participar de uma segunda frota, que se antes eram 6 barcos (leia-se barcos comprados, já que ninguem se dispõe a alugar barcos para esse propósito), agora serão dez barcos, que se antes haviam 3 espanhóis, agora querem levar um barco espanhol, como da primeira vez havia um barco Grego. No primeiro parágrafo falei sobre gente que acredita nisso, acreditar, é diferente de dizer que acredita. Dar a vida, é um pouco dramático demais, mas essa menina, arrisca a dela, e convençe outros espanhois a arriscar a deles também. O vídeo que queria divulgar, foi a catalã quem editou, e vai assim:

 

Flotilla de la Libertad. Un ataque a la solidaridad from Rumbo a Gaza on Vimeo.

Brasil: infantil, vulgar e esquizofrênico.

É anátema ou apologia falar em ordem e em seriedade. A primeira, as pessoas confundem com repressão. A segunda, confundem com tristeza ou com a aparência formalmente compungida. As duas coisas não são o que o senso comum adotou como percepção delas; e faltam a esse país, ambas.

Repressão, já existe em demasia no Brasil e, ademais, de forma seletiva com pretos e pobres. Transborda seus efeitos, uma e outra vez, sobre aqueles que a glorificam, pegando-os aleatoriamente. Aí, é o escândalo, são os gritos, o fim do mundo, a reação bipolar.

Seriedade, para nós, é uma postura teatral. Há momentos para expressa-la, mas nunca é ua seriedade séria, em que se acredite. Sim, porque achamos-nos os felizes, os do carnaval constante, os únicos e exclusivos seres alegres do planeta. Acreditamos nisso como em uma revelação de carácter distintivo. Temos que sê-lo.

O povo recebeu o guia de comportamento, recebeu as linhas gerais de seus personagens sociais; ele os recebeu mais que os construiu, porque essa alegria, essa falta de seriedade, não se sabe o que são.

Fomos e somos profundamente infantilizados e vulgarizados. Somos capazes de reclamarmos de tudo e de compreendermos nada. Acreditamos que temos direitos vários, embora não os tenhamos, quase nenhum. Gritamos como crianças, falamos como crianças, chantageamos e somos chantegeados como crianças.

Como elas, somos enganados, recebemos um e outro afago; falam conosco naquela linguagem afetada destinada às crianças… e aceitamos.

Somos vulgares e rudes e achamos que isso é espontaneidade. Achamos, porque somos adultos, mas queremos que isso seja aceito porque queremos-nos aceitos como crianças! Estamos deslocados, a padecer de uma puerilidade adulta. Nosso comportamento é dúbio, cambiante, como adultos acanalhados a vagarem pela vida.

Tudo pode e nada pode, como se fôssemos 190 milhões de meninos e meninas, a quem se desculpa tudo. Partimos para o vale-tudo, porque tudo pode. Ao mesmo tempo, vivemos o vale-nada, porque a mão pesada da repressão e da vida miserável cai aqui e acolá, como por sorte ou acaso.

Na verdade, a mão pesada da realidade não somente cai, ela permanece a esmagar a maioria e a maioria… a ser infantil. E a reagir esquizofrenicamente a qualquer estímulo, sem perceber o jogo que joga. A maioria a ser guiada, mas não segundo um guião que construiu a passos lentos, ainda que de servidão, mas construído por seus passos.

Não, a servidão é dupla, é real e formal. É vivida e encenada e suas vítimas resignam-se a ela, nas duas formas. Acham que basta-lhes a possibilidade de fazer parte do caos, ativamente, para deixar de perceber o caos.

A liberdade de ser mal-educado, de expandir sua esfera individual até agredir as dos outros basta às pessoas para viverem sem qualquer liberdade. Deram o mais em troca do menos. Perdeu-se a civilidade para ganhar o direito a viver em aparente liberdade de ser-se selvagem.

Esse foi o diversionismo que 02% do país impôs aos restantes 98% dele. Ou seja, tu podes achar que és livre porque pões o barulho do teu carro a incomodar meio mundo, tu podes urinar ou defecar nas ruas, tu podes furar uma fila, tu podes dar um pequeno golpe de estelionato, para que uma escassa minoria possa apropriar-se de ti, para viver apartada de ti e passar as férias no estrangeiro.

Essa é tua liberdade, a de seres selvagem, fazeres de criança, falares disparates, trabalhares a salários miseráveis. Tudo isso para achares que és livre e manteres as coisas como estão, para 02% do total das pessoas do teu país viverem como querem e como sabem que querem.

Mas, precisarás de segurança pública, precisarás de andar nas calçadas. Ficarás doente, terás que por teus filhos em escolas. Terás o retorno que os selvagens infantilizados e vulgarizados têm, ou seja, qualquer farsa. E, se reclamares, dar-te-ão mais um carnavalzinho e mais um direito a te embriagares.

Se pensares em reclamar com um pouquito mais de crítica, terás uma revista semanal qualquer a te lembrar do roteiro de tua vida. Tens que ficar escandalizado porque um fulano maluco matou dez ou doze pessoas, ainda que teu dia-a-dia te mostre cem ou duzentos mortos tão ou mais reais.

Vais preocupar-te com os japoneses que morreram de um terramoto, ou vais falar de uma guerra em um país que não sabes em que parte do globo está. E tu podes ter rendas mínimas ou até elevadas, és uma criança de toda forma.

Logo, teu supremo direito a passar outra criança para trás, a cometer uma incivilidade qualquer, te fará esquecer até o guião recebido da revista de imbecilidades semanais. Assim seguirás, tolo, vulgar, grosseiro, certo de que és cordial e alegre, servo, sempre servo.

 

 

 

Justiça de transição. Acertam-se contas?

O problema das leis – o maior deles – é o tempo. Elas transformam-se ou mantém-se conforme o ritmo da vida do grupo que disciplinam. Elas têm a pretensão da permanência, mas esse desejo é incompatível com a História, porque vive-se. Mas, a dinâmica histórica é compatível com certos padrões mais estáticos, com certas balizas mais estáveis.

As leis costumam dizer porque se fizeram: é o dever de motivar uma imposição ampla e supostamente abstrata. Ou seja, elas se destinam a tratar de uma situação e devem explicar porque o fazem daquela maneira.

O sistema de fazer leis obedece à hierarquização. Assim, há leis mais importantes que remetem os detalhes a leis menos importantes, sucessivamente. As mais inferiores e detalhadas devem estar em conformidade às superiores.

A legalidade constitucional é tão frágil quanto uma roseira comprada no mercado, que já chega morta em casa. Ela rompe-se e, depois, põe-se no seu lugar outra legalidade constitucional, pois não falta quem escreva uma constituição.

Quando o rompimento é drástico, os problemas tendem a ser econômicos e políticos, ao depois. Quando é aparentemente suave, ou é disfarçado, ou negociado, os problemas são mais sutis, embora mais duradouros, com é uma ferida que não para de supurar.

O Brasil, em 1964, teve um golpe de Estado. Um golpe que teve resultado positivo, depois de muita insistência, pois ele foi tentado várias vezes, contra os governos de dois presidentes, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

O terceiro – ou quarto, melhor dizendo-se – sucumbiu. O Presidente João Goulart foi deposto por um golpe de Estado, em 01 de abril de 1964. Instalou-se no poder um grupo que ainda não saiu dele integralmente, mas não é disso que se trata.

Vigorava no país, na ocasião do golpe de Estado, a constituição de 1946. Os que se instalaram trataram de modificar essa lei constitucional: primeiramente em 1967 e, depois, em 1969. Instituiu-se uma ordem constitucional mais restritiva de direitos e garantias individuais, a bem da segurança nacional. Abstraindo-se do que se considere segurança nacional, deu-se ao país um novo ordenamento jurídico.

Estabeleceu-se, enfim, uma ditadura, com militares à frente das posições mais destacadas no Estado. Instituiu-se um bipartidarismo farsesco, a possibilidade do presidente da republica cassar mandatos políticos livremente e eleições indiretas para a presidência.

Essa ditadura teve vinte e um anos de vida e cinco presidentes não eleitos democraticamente. Ela acabou-se quando julgou conveniente acabar-se; não foi derrubada, cansou-se. Deformou profundamente as mentalidades, instilou as idéias do oportunismo, da superficialidade e da aparência como fundamentos sociais.

Claro que essas três inclinações estão sempre presentes nos agrupamentos humanos, em maior ou menor proporção, por isso mesmo não é necessário estimula-las. As piores coisas vivem por si, não precisam de ajuda.

A ditadura que se queria regime de legalidade plena deixou seus agentes praticarem violências enormes, arbitrárias e ilegais contra os cidadãos. Sequestrou-se, matou-se, torturou-se, violou-se, espancou-se. A mim, parece-me que essa tolerância com a violência institucional era o pagamento aos servos médios. Deixava-se que se saciassem com sangue, enquanto outros saciavam-se com dinheiro. Cada grupo com sua paixão, enfim.

Em 1979, o regime político ditatorial, antevendo o esgotamento, fez passar no Congresso Nacional a lei nº 6.683/79, chamada lei de anistia. Interessa transcrever o artigo 1º e os parágrafos 1º e 2º dessa norma:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

 

O sistema constitucional brasileiro desconhece a inconstitucionalidade de normas produzidas antes da constituição vigente. É uma questão de coerência lógica. Todavia, existe outra maneira de aferição de compatibilidade de uma norma pre-constitucional com a constituição superveniente. Então, as normas anteriores à constituição, ou são recepcionadas pela nova ordem, ou não são.

Para julgar a recepção – conferindo os mesmos efeitos práticos de uma ação declaratória de inconstitucionalidade – existe a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. Por meio dela, pode-se obter uma declaração do supremo tribunal federal sobre a compatibilidade de uma norma anterior com a constituição superveniente.

A OAB, por meio do excepcional trabalho de Fábio Konder Comparato, propôs uma ADPF para que o stf se pronunciasse sobre a compatibilidade, a recepção, em termos jurídicos,  da lei de anistia com a atual constituição. Compatibilidade muito improvável, pois a Constituição veda a tortura e a considera crime imprescritível.

O supremo tribunal federal julgou a lei compatível com a atual Constituição, em atitude infamante e indigna de juízes que se supõem conhecedores da lei, da filosofia do direito e que, ademais, são os maiores magistrados do país. Foi preciso julgar contra a técnica e com amparo nas inúmeras variantes do discurso que, no fundo, nega a história e estimula a violação das regras. O stf agiu em desconformidade a qualquer coisa que se assemelhe a um poder judicial, porque alinhou-se à noção de que regras são desprezíveis.

A lei controvertida anistia os crimes políticos e aqueles conexos a eles. Aqui, deve-se ir ao ponto central, que é a conexão entre crimes. São conexos os crimes que têm a mesma motivação, que são praticados pelas mesmas pessoas e que são praticados nas mesmas circunstâncias temporais e geográficas, sendo as provas de uns dependentes das de outros.

Os crimes praticados pelos agentes do estado não são conexos àqueles praticados por quem resistiu ao regime ditatorial. Ora, crime político é aquele cuja motivação é atingir um regime político e não pode ser conexo aos crimes praticados com a motivação de defender esse mesmo regime. A diferença de motivação é de uma obviedade que leva a pensar que os defensores da conexão não agem por estupidez – que seria muita – mas pela histórica leniência conciliativa brasileira.

Os motivos de quem age contra ou a a favor de uma ordem política são tão diferentes quanto vinho e água. Uma interpretação correta leva à conclusão de que inexiste conexão entre tais delitos e que, consequentemente, a lei foi escrita por juristas incapazes que, embora querendo anistiar tudo, fizeram um texto que anistia apenas quem devia ser anistiado. Mas, nestas plagas, a pressa e a insuficiência intelectual são premiadas depois. As mesmas inclinações chancelam as intenções iniciais, a despeito do erro formal e material.

Essa piada levou o Brasil a ser condenado na Corte da Organização dos Estados Americanos, porque não se coaduna com os princípios a que os Estados participantes aderiram.

A justiça de transição não é a formalização de vinganças. É, antes, afirmação de que há direitos invioláveis, afirmação de que afronta-los implica riscos e, sobretudo, afirmação de que a história deve ser clara, de que devem estar presentes os elementos que permitam observa-la.

No Brasil, não apenas a pretensão à impunidade teve sucesso. A operação de lanças névoa sobre o passado também prosperou, tanto por meio da supressão de documentos, quanto pela consagração de uma tola ideia de inutilidade de falar-se da ditadura, como se o não falado inexistisse. É dos maiores triunfos que se conhecem, nessa área de imunizar-se a críticas.

O contrário do que se faz no Brasil está por todas as partes. Para cuidar de exemplos mais evidentes, basta evocar a Espanha, a África do Sul, a Argentina, o Uruguai. O caso espanhol mereceria um artigo próprio, dada a complexidade e a longevidade da ditadura superada e porque, além de tudo, envolveu uma guerra, no seu início.

Em geral, os países que superam ditaduras em que se violaram direitos de cidadãos, sistematicamente, por agentes do Estado, abrem acesso a todas as informações disponíveis. Assim, quem quiser pode debruçar-se sobre o suporte documental e escrever o que quiser, contra ou a favor. Quem disser algo pode ser contrariado por outrem, que viu os mesmos documentos.

Afastar a obscuridade e o sigilo é fundamental, porque eles só aprofundam a ignorância, a superficialidade e a tolerância ingênua de quem não sabe bem o que foi aquilo sobre que propõe tolerância. É um jogo de cegos e surdos, aos gritos e às tapas, um jogo se soma zero, enfim.

A ditadura militar de 21 anos foi grande vencedora, em detrimento do restante do país. Impôs sua forma de saída, impôs o sigilo sobre o que fizeram os agentes do Estado, concedeu-se – em mau português, é claro – um impossível perdão, estabeleceu as regras para a interpretação de si própria.

Deformou a percepção de democracia, de sistema eleitoral, de igualdade legal, de fronteira entre público e privado. Deixou de herança um partido que ainda hoje é ponto fundamental de sustentação política, um partido que nada mais é que a resultante da oposição consentida, com toda honorabilidade que as oposições permitidas podem ter.

Enfim, o Brasil, depois de 21 anos de ditadura, não teve ainda uma justiça de transição. Teve, antes, uma transição acertada internamente, sem justiça. E a maioria crê que isso não tem consequências.

Auto-referência: uma consequência que se torna causa.

Passeio de uma família abastada, de Jean – Baptiste Debret

 

É difícil isolar causas e consequências em um sistema dinâmico, principalmente se ele orienta-se para a manutenção de uma estrutura. As causas e consequências começam cedo por influenciar-se reciprocamente e conferem inércia ao sistema. É possível, apenas, deter-se sobre um e outro momento específico, para olhar-lhes à lupa e, nesse momento, falar com alguma propriedade de uma e outra causa e consequência.

O Brasil surgiu de uma colonização visando a exportar o que fosse possível, como nasceram vários outros países. Aos poucos, migram para cá alguns operadores do modelo colonial. Com o passar de algum tempo, esses vêm-se na contingência de guerrear e, então, assumem identidades um pouco afastadas dos colonizadores iniciais.

Está transplantado para o país já um modelo interno próprio, embora articulado a um maior, que envolve a metrópole. O que se transplanta e se instala na colônia é um modelo de sociedade mais vincadamente estratificado. Sua marca essencial é a diferença entre senhores e servos.

Claro que há inúmeros matizes e sutilezas na conformação social, mas nada que invalide o corte profundo a dividir as duas classes. Esse afastamento profundo é, inclusive, institucionalizado, porque o país adota a servidão. A sociedade que tem vastos contingentes a que se nega a personalidade jurídica é dividida por essência.

O afastamento drástico resultante da escravidão institucional projeta-se no futuro, muito além de sua extinção formal. Sim, porque antes mesmo de se acabar formalmente, ela tinha operado um curioso e perverso efeito. Ela tinha incluído na classe percebida como servil elementos que originalmente não tinham essa condição, do ponto de vista jurídico.

Quer dizer que indivíduos excluídos pela pobreza extrema foram incluídos no imaginário social na grande classe dos servos, assimilando-se a eles. Entretanto, a exclusão econômica de uns fê-los passar a uma classe caracterizada pela exclusão total, jurídica e econômica.

O conceito de servo, inicialmente bem delimitado pelo estatuto jurídico de coisa, foi estendido, na percepção social, para englobar todos os muito pobres. E, evidentemente, extrair-lhes o estatuto jurídico-formal da personalidade e da detenção de alguns direitos. Assim, quando extingue-se a servidão, do ponto de vista formal, o vinco já estava formado, a dividir quem age e quem sofre ação, independentemente de igualdades jurídicas apenas de discurso.

Sob um ponto de vista estático, a causa desse processo é a concentração brutal de dinheiros e poderes institucionais. Ela, a concentração, enseja um efeito nítido nas classes dominantes: a auto-referência. Realmente, o efeito produzido muito diretamente de um ambiente de poucos, que têm as instituições apenas para si.

É quase inevitável, portanto, que classes dominantes muito restritas e muito afastadas dos restantes – por diferenças marcadas profundamente – sejam auto-referentes, porquanto a realidade institucional, jurídico-formal, existe apenas para elas. Elas agem no quadro institucional como os associados a um clube exclusivo, ou seja, dentro de um subsistema próprio.

Na verdade, esse subsistema entende-se como o sistema todo, porque os restantes não são participantes agentes. Somente em momentos posteriores, o subsistema passa a ver-se como uma parte, mas ainda a parte que detém toda a esfera de poder institucional.

Toda a dinâmica social ocorre dentro do subsistema auto-referente e, assim, para ser-se um pouco agente é necessário ingressar nele. Fora dele, nem mesmo espectador alguém é, porque não compreende nem pode entrar na sala do espetáculo.

Um pouco ao depois, o sistema auto-referente percebe a necessidade de disfarçar sua existência, de fazê-la incompreensível, porque em certas situações só existe aquilo que se não vê. Ele, então, destaca as diferenças que existem dentro dele, as as estratificações internas em termos de maiores e menores graus de detenção de dinheiro e poder institucional.

Ele quer fazer crer aos que estão fora que suas diferenças internas são a prova de sua inexistência, ou seja, de que há uma estratificação natural e contínua na sociedade, não dois subsistemas nitidamente separados. Esforça-se, portanto, para apontar diferenças internas como provas da inexistência da grande e fundamental diferença.

A auto-referência produz estragos difíceis de reverter, nas individualidades. Ela é um modelo de pensamento que põe um restante, um grupo de seres outros, em referência ao sujeito. Nesse sentido, ela revela uma aparente contradição interessantíssima: sua exacerbação do individualismo não-republicano é o fator de sua coesão.

Ela induz a que todos procedam como se o sistema – incluindo-se obviamente o Estado – estivesse em função de várias predações individuais em competição de morte. Nesse estágio, o subsistema auto-referente já apresenta diferenças internas marcadas, aquelas diferenças que antes afirmava somente para confundir.

Como sua causa inicial é a concentração, que nunca cessa a marcha, o subsistema diferencia-se internamente, sempre a partir do critério de apropriação material e de poder institucional. Não obstante, o efeito inicial e agora causa também, a auto-referência, está presente em todos os integrantes, como inclinação fundamental de postura ante a vida.

Ela é o ponto de contato, o específico comum a todos, o elemento que identifica os diferentes dentro do subsistema concentrado. Em outro momento posterior, ela, a auto-referência, começa a desempenhar um papel mais curioso, embora não seja inesperado; ela funciona como armadilha.

Aquilo que é fator de coesão dentro do subsistema concentrado, tem efeitos diversos sobre seus diferentes níveis internos. Para os que se encontram no topo, uma restrita minoria, é o que move a crescente acumulação. Para os níveis médios e baixos, serve desempenha uma função que poderia ser objeto de investigação psicológica.

A auto-referência nos estratos médios e baixos do subsistema concentrado cega. São nuvens que impedem o sujeito diante do espelho de ver-se refletido, ele que só queria isso. E impede, mais obviamente, de supor qualquer coisa atrás do espelho. Ele continua a ter a noção de pertencimento, mas não de distância, e dá-se à servidão sem percebê-lo nitidamente.

Nitidamente, ele só percebe que deve ser evitada, a todo custo, a queda para o outro lado do fosso, para o outro subsistema, que nem mesmo é tão organizado a ponto de considerar-se sistemático. Todavia, a servidão, essa é-lhe inevitável e será aceita com mansidão.

Porém, como a dinâmica não cessa, nesse sistema que ignora leis físicas e tem inércia própria, o fosso também desloca-se. Essa deslocação, a par com a cegueira produzida pela auto-referência, é fator de loucura e bestialização.

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