Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: outubro 2011 (Page 1 of 3)

Um doido reconhece outro.

Moramos quase em frente ao grande terminal de integração, onde todos os ônibus de Campina Grande têm que passar. Daqui até lá são uns quatrocentos metros e é um local sempre cheio de gente. Barulhento, como todos os locais repletos, principalmente nesta terra de barulhos e gritos.

Porém, entre barulhos há deles que chamam a atenção, pois são barulhos invulgares. Um sujeito que conduz um carrinho de CDs está todos os domingos no terminal de integração dos ônibus. Todos os domingos, a partir de uma hora da tarde, ele põe a tocar uma música que me aborrece, mas não me irrita. Aborrece profundamente, é verdade, porque ela repete-se a tarde inteira, em volume altíssimo.

Mas, é extraordinário, é curioso, não deixa de ser incômodo, chega a ser cômico, mas deve ser mais que isso. Os versos dizem: Se converte Barack Obama, se converte Barack Obama, que o prêmio Nobel da paz não é teu, é de Jesus. Se converte Ahmadinejad, se converte Ahmadinejad… 

Segue pedindo a conversão de meia dúzia de líderes nacionais a Jesus, seja lá o que o pedido signifique. Diz – é desconcertante – que isso e aquilo não são de fulano nem de beltrano, são de Jesus.

Essa toada triste serve-se da melodia de Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré! Assim, apropriando-se dessa canção, ou melhor, dessa melodia em que o verso condoeiro confunde-se com a melodia, a coisa parece mística de louco evangélico. Ninguém fica indiferente à sonoridade dessa obra de Vandré. Ele casou o tipo de verso ibérico antigo com o único ritmo que lhe seria possível. Essa canção assumiu significado político, para muito além do autor.

Pois sou obrigado a ouvir o sem-sentido do se converte Barack Obama, se converte fulano de tal, que o prêmio Nobel da paz é de Jesus, na melodia das Flores! Podia ser em inúmeras outras, mas o sujeito escolheu essa. E escolheu tocar a música a tarde inteira, todas as tardes de domingo, o que revela má estratégia de venda ou nenhum interesse em vender.

Esse sujeito conduz um carrinho com CDs, em que há a bandeira da Palestina! Quem é o sujeito que recorre a signos extremos, como são uma canção de religiosidade evangélica e moralista casada a uma melodia antiga e associada à insatisfação política de quarenta anos atrás? O sujeito que anda por aí com uma bandeira da Palestina. É um louco, provavelmente; não é um ladrão, certamente.

Em três ocasiões ele cumprimentou-me. Todas, as mais imprevistas e improváveis. Nelas, estava eu no carro, tanto conduzindo, quanto no banco do passageiro, com Olívia na direção. Passando devagar, ou saindo de um sinal recém aberto, o fulano que conduz o carrinho de CDs cumprimentou-me, com um aceno de mãos, vívido, dirigido a mim. Hesitante, cumprimentei-o ou, antes, retribui o aceno.

Nunca percebi bem porque os loucos me procuram e eles sempre o fazem. Não tenho medo de ser um igual, tenho medo de ser o extremo oposto: um sujeito a observar-lhes os modos e a querer mandar neles. Afasto-os, portanto, para não os ter próximos como objetos de assimilação ou de mando ou de jugo.

Mas, o cara cumprimenta-me sorrindo; ele já é meu íntimo e não posso dizer-lhe ó, filha da puta, põe a música mais baixo.

 

As sombras de Goya. Filme de Carrière e Forman.

Acabo de assistir As sombras de Goya, um filme excelente. Não vou falar dos atores, que são bons e somente poderiam sê-lo. Um filme bom deve ter bons atores e até pode ter deles apenas razoáveis. Enfim, a ênfase em atores é superficialidade de quem não quer pensar e detém-se em nomes, ou seja, quase todo mundo. Mastroianni percebeu-o, ele que era um dos grandes e sabia que muito mais grande é o filme.

Fiquei encantado com o Museu do Prado desde a primeira vez em que estive lá. E não foi por causa de Goya, ou não somente. Fiquei com vontade de voltar ao museu e ao Retiro. Coisa que merecia aprofundamento, mas fico sem saber como fazê-lo e acho que vou alinhando impressões. Gosto de museus e de parques, mas gosto especialmente desses dois; digo isso também para dizer que nada mais em Madri atrai-me especialmente.

Mais estranho ainda é que me parece gostar mais de escultura que de pintura e ponho isso em dúvida, agora. Agora não, sempre estive nessa dúvida; deve ser algo que me impus, racionalmente, por conta da tridimensionalidade da escultura. Fato é que não tenho ganas de voltar ao Louvre, embora não o tenha esgotado, evidentemente, em três vistas, e ele é riquíssimo em esculturas. Mas, tenho vontade de voltar ao Prado.

Os El Greco e dois Velazquez nunca me saíram da cabeça. O crucificado e A forja de Vulcano, mais que as meninas, deles retenho a impressão de ter visto. As meninas, detive-me nesse quadro a partir de imagens de livros e buscadas na internet.

O Prado tinha que estar em Madri, para amenizar o que Madri é. Goya tinha que ser pintor do Rei e pintar a feiúra das reais personagens, fossem castelhanas ou francesas. Tinha que pintar, receber caro por isso, continuar a pintar, não escrever, não escutar, pintar, deformar, formar, conformar, não acusar, não escrever, não falar, olhar. Tinha que se lembrar de quem pintou, viver para pintar, como quem recebeu boa paga pelo trabalho e seguiu a fazê-lo.

À procura de saber quem foi o realizador do filme, fiz pequena busca e li, por azar, duas pequenas resenhas, ambas imbecis. Uma detinha-se no que chamarei aspectos externos, ou seja, filmográficos. Aquela besteira que se relaciona a ritmo, que vem de quem não conhece nem gosta de história e que se auto-intitula crítico de cinema. A outra, menos tola, criticava negativamente a exposição de um Goya pequeno, porque as outras personagens teriam mais destaque. A segunda crítica, na verdade, merece ser retirada da categoria de imbecil, é apenas religiosa.

Lembro-me de Julien Benda, na Traição dos Clérigos, a propósito desse segundo tipo de crítica. É dificílimo um sujeito profissional da crítica -de qualquer coisa – não querer que o criticado seja um clérigo, um religioso de qualquer preconceito que seja. É dificílimo porque os críticos não gostam de arte, nem de história, eles gostam de dogma. No Brasil, isso tem um nome, cuja menção basta para esclarecimento: fala-se em arte engajada.

Claro que o filme é um filme que, embora não destinado às multidões, é destinado a mais que o mínimo. Tem suas concessões, portanto. Pasolini não tinha concessões e era quase literatura com imagens. Talvez, por isso mesmo, quase ninguém tenha visto Salò e os 120 dias de Sodoma até ao final, o que é pior para quem não viu.

Para tristeza dos clérigos, Goya disse que a realeza espanhola era feíssima, disse que os franceses mataram como os próprios feios reais, que se uma nudez escandiza dão-se-lhe roupas, que o silêncio total aumenta os contrastes, que a política é profissão diferente da pintura.

 

Argentina e Uruguai, países mais sérios que o Brasil. E, por isso, melhores.

Alfredo Astiz, Capitão de Fragata da Armada Argentina e traidor da pátria.

Assassino, sequestrador e torturador de civis compatriotas dele e de estrangeiros. Por ocasião do golpe militar de 1976, na Argentina, o Capitão de Fragata da Armada Argentina Alfredo Astiz foi designado para trabalhar na ESMA – Escola de Mecânica da Armada. Um centro de sequestro, tortura e eliminação de quantos se pudessem contar no número dos perigosos para o novo regime militar ditatorial.

Astiz empenhou-se fortemente na sua missão. Infiltrava-se em grupos de direitos humanos e indicava os que deveriam ser sequestrados e eliminados. Responsável direto por inúmeros assassinatos, incluindo-se os de duas freiras francesas.

A arte dos militares argentinos no eliminar oponentes – os menos perigosos possíveis – era inovadora. Criaram – devia ser por algum deleite especial – o método de pô-los em um avião e lança-los ao mar, depois de torturados brutalmente…

É muito rico, nessa figura, o traço da vileza. Infiltrava-se entre os seus oponentes, buscava sua intimidade, sua confiança, descobria-lhes as crenças e, depois, bem, depois, levava-os à ESMA, para um destino certo.

Alto, louro, altivo, militar empertigado nas suas vestes de oficial da Armada, alcunhado el ángel rubio. Doce nas suas infiltrações, doce como todos os infames agentes duplos. Crudelíssimo com suas vítimas, sem limites. Corajoso com vítimas reduzidas à despersonalização e sabedoras da morte.

Eis que a Argentina – e não vou discutir se por cálculo ou orgulho nacional – entra em guerra com a Inglaterra, pelas ilhas argentinas Malvinas. Astiz é designado para assumir um grupo de comandos nas ilhas Georgias do Sul. Acossado pelos ingleses, trava um embuste de combate e rende-se, logo em seguida, aos ingleses.

Esse homem tão valoroso na tarefa de sequestrar, torturar e matar gente incapaz de defender-se, rende-se aos inimigos do seu país, sem uma perda. Sem combate efetivo. Sem combater o combate que sua farda nunca vira, sem um traço do verdadeiro sangue castelhano que traz nas veias. Podia ter lutado, de verdade, uma vez na vida, e morrido fardado.

Rende-se aos ingleses de uma forma que, se fosse um inglês a fazê-lo, seria enforcado, essa vileza que os ingleses destinam aos traidores da pátria.

Ontem, Astiz foi condenado à prisão perpétua, pelos crimes cometidos. Já o fora, na França, à revelia, pelo assassinato das duas freiras gaulesas.

Ontem, o Senado da República do Uruguai julgou imprescritíveis os crimes praticados na ditadura militar havida lá. Por unanimidade. Crimes contra a humanidade não prescrevem, claro.

Enquanto isso, no Brasil, uma lei de auto-anistia, promulgada pela própria ditadura que torturou e matou, foi julgada válida pelo tribunal constitucional. É difícil perceber porque são países tão diferentes e porque vive-se melhor na Argentina e no Uruguai que no Brasil?

Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís.

Antes do Vale Abraão, tive só um contato com Agustina Bessa-Luís, por meio das Conversações com Dmitri e outros fantasmas, que me ofereceu Miguel. O livrinho, o primeiro que li, deu-me a impressão de uma autora profundamente aristocrática. Sim, há formas aristocráticas de escrever. Não necessariamente melhores que outras, nem, tampouco, relacionadas apenas ao pertencimento social que o qualificativo sugere imediatamente.

Não é, como sabem todos que pensaram, uma questão de dinheiro. É moda justificar-se e não o vou fazer. Não é frequente explicar-se e isso tentarei, porque fui assaltado por uma paciência meio rara e porque não quero induzir más percepções, assim logo de início. Não se trata de antiguidade daquele dinheiro referido no primeiro período, embora, sim, trata-se de antiguidade.

De antiguidade percebida como a possibilidade de afastar ou aproximar a lente do quadro. E de ter passeado a lente por todos os quadrantes, tantas vezes, que todos eles tornam-se familiares e trivial o deter-se em um detalhe, como o afastar-se deles todos e olhar o quadro de longe.

Li, em alguma revista, que Freud teria escrito o seguinte: Eu me surpreendo ao constatar que minhas observações dos pacientes podem ser lidas como romances. De minha parte, surpreendo-me um pouco ao constatar que Freud tenha sido tão sagaz, irônico e provocador, com uma observação destas, somente para dizer o óbvio. Um homem inteligente e cônscio dela tinha que dizer que a vida imita a arte de uma maneira aparentemente inocente, até porque o óbvio é o mais difícil de dizer.

E ele estava certo, uma coletânea de relatos clínicos pode ser lida como um romance, mas o inverso não é verdadeiro. A vida imita a arte…

Agustina é fina psicóloga, tanto das mulheres, quanto dos homens. De certa forma, o Vale Abraão é uma colecção de casos clínicos que duram uma vida e ligam-se a outras vidas já terminadas, muito intimamente. E ligam-se a vidas vindoiras, o que é psicologicamente uma expectativa de poder e, historicamente, quase um não conceito.

O livro tem as insinuações dos grandes autores, que só resultam bem neles. Insinuações claras, de Ema, de Carlos, de Bovarinha. Um amante dos jogos de palavras sai-se mal, se prender-se ao fácil de dizer que é, sem parecer. Nem parece, nem é. Aliás, parece-se com Flaubert – não no texto – parece-se com a conhecida frase Madame Bovary sou eu. Ema não é Bovary, ela é uma mulher que não foi adúltera dos finais do século XIX; ela foi uma mulher que seria toda se fosse homem, no último quarto do século XX.

 Minha primeira sedução, como sempre, é a historicidade; é descobri-la como inevitável. Ela muda de cores, conforme seja urbana ou rural, proprietária ou trabalhadora, refém de modas rápidas ou lentas, detentora de culturas formais ou não.

O tempo cronológico, neste romance, foi apontado uma vez: ele começa nos antecedentes dos Cravos. O tempo que os sucede é louco, teria que trazer novos impostores, que fazer suas justiças, que mudar os insignificantes por outros insignificantes. Há quem o perceba, ao tempo, e há quem seja levado por ele. A maioria vive o contínuo, que é o real, mas outros servem-lhe o prato da inadequação, porque ele é mais lento ou mais rápido conforme circunstâncias muito específicas.

Bastaria dizer que não há Bovary a matar-se com arsénico, para uma simples diferença. E a ação ocorre precisamente em uma ruptura que, de certa forma, pode ser vista como uma transição acelerada para uma cultura mais urbana. Talvez fosse mais preciso dizer uma penetração rápida de um espaço rural por uma cultura neo-urbana.

Ema morre acidentalmente e isso não é pouco. A época dela não a mataria, porque era de louca permissividade. Não alguma permissividade que aceite a diferença, mas que tem mais que fazer, o que significa buscar ganhar dinheiro e ostentá-lo da maneira mais vulgar possível. Ou seja, nem os estabilizados, social e economicamente, nem os ascendentes tinham tempo para o escândalo. Os primeiros, nunca o estimaram, os segundos só se ocupam dele quando totalmente inertes.

Não há piores épocas para quem quer viver plenamente, sem saber a que isso corresponda exatamente, que as de acelerações e rupturas. Sim, porque embora tudo fique como está, no fundo, tudo muda, aparentemente.

Paiva não se afasta de Ema. E não o faz porque sabe que a aprisiona e a ama. É diferente de não o fazer porque teme o escândalo. Não haveria mais escândalo na ruptura que na manutenção da ligação repleta de verdades meio-sabidas. Ema, por seu lado, não se separa de Carlos; e não é porque receie perda financeira ou escândalo. É porque está presa, sempre esteve…

Antígona cavará o deserto com as mãos para dar sepultura a Khadafi?

 

Etéocles e Polinice combatem pelo trono tebano. Antes, seu pai, Édipo, fora expulso por eles e acompanhado por Antígona, filha do primeiro e irmã dos segundos. Polinice casara-se com a filha do rei de Argos e planeava atacar Tebas.

O combate pessoal resulta na morte de ambos e na ascensão de Creonte, tio deles, ao reino de Tebas. Ele manda enterrar Eteócles com todas as honras, ele que lutara por Tebas. E manda deixar o cadáver de Polinice no campo onde pereceu, insepulto, à mercê de abutres e da vil descomposição.

Antígona, irmã dos dois, roga a Creonte, seu tio, que permita dar sepultura a Polinice, afinal um integrante da família real tebana e irmão dela, como Eteócles. Para ela, eram dois irmãos e era sacrílego negar-se um enterro a um deles, afinal mataram-se um ao outro. É profundamente vil negar-se sepultura a um grego livre e, ademais, o conflito era interno, na verdade.

Creonte é inflexível e determina a morte a quem tentar dar sepultura a Polinice. Antígona – e aqui a cultura ocidental nunca fez maior homenagem ao direito de resistência contra a vontade do príncipe – despreza a ameaça do seu tio e futuro sogro, e parte a cavar a sepultura de Polinice com as próprias mãos!

Creonte não recua da sua determinação e condena Antígona a ser enterrada viva, por ter-se insurgido contra sua ordem. Ismênia, a outra irmã deles, até então apática, oferece-se para sofrer a pena de Antígona, que não aceita a oferta.

Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona, insta seu pai a consentir no desejo dela de dar sepultura a Polinice. Sem sucesso, pois Creonte mantém-se, como sempre, inflexível. A pena deve ser aplicada. Hémon suicida-se. O inflexível Creonte faz valer sua autoridade, mas perde o filho e ainda perderia mais. Sua esposa, ao saber do suicídio do filho, segue o mesmo caminho. Creonte mantém a autoridade, mas perde filho e esposa.

Édipo já não via e já não vivia, há tempos. Polinice e Eteócles não viviam mais, mataram-se. Antígona tampouco vivia, sua sentença foi cumprida. O filho e a esposa de Creonte, mataram-se. Viveram Creonte e Ismênia, em condições previsíveis.

Isso, disse Sófocles, o mais grande dos poetas e o mais longevo, segundo a tradição.

Khadafi, um líbio, promoveu um golpe de Estado e reinou quarenta anos, na Líbia. Bem ou mal reinante, tinha a Líbia os melhores indicadores sócio-econômicos da África. Contrariou interesses colonizadores quanto ao petróleo, mas cedeu, depois. Subornou e deixou-se subornar pelos colonizadores. As circunstâncias, aquelas que faziam necessário tornar as revoltas árabes em coisas controladas pelos colonizadores, tornaram-no, novamente, em alvo.

França, Inglaterra e EUA atacaram-no e subvencionaram bandidos piores que ele. Caçaram-no e, ao que quase tudo indica, capturaram-no e executaram-no. Disseram que ele era odiado pela população líbia. Se tão odiado pela população – certamente odiado ou simplesmente aceito pelos colonizadores que subornava – era um não-problema, morto. Não se cultuam os detestados da maioria.

Dizem que será sepultado em local incerto e sem indicações. É sem sentido. Um desimportante, odiado pelo pelo povo, pode ser sepultado em sítio conhecido, pode ter lápide com seu nome verdadeiro, data de nascimento e de morte.

Se khadafi era odiado e sua execução correspondeu a um desejo geral do povo líbio, qual o problema de respeitar as lei corânicas? Qual o problema de dar-lhe sepultura certa?

Tebas, depois dos trágicos episódios contados por Sófocles, sabe-se o que foi…

 

O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa.

É tolice dizer que não há escritores sobre que o comentador tem receio de falar. É complicado falar-se do muito bem-feito, porque quase tudo que se fale fica abaixo do falado e pode soar demasiado óbvio, ainda. Claro que se trata aqui de uma sugestão de leitura, apenas, mas ainda assim Mario Vargas Llosa recomenda cautela e contenção.

O primeiro que li foi A cidade e os cachorros, um livro muito bem escrito, que me levou ao prazer imenso da releitura, mais de dez anos depois da primeira. As releituras são especialíssimas, porque poucos livros merecem-nas e outros, que as merecem, ensejam o temor do reencontro, pois trarão percepções diversas das primeiras, que se lhes somam, como novas camadas de tinta.

Li Pantaleão e as visitadoras, um retrato sem retoques da realidade a impor-se de par com a hipocrisia, como é na vida. E sem ares de acusação, sem um milímetro de inverossimilhança. Irônico, mordaz, uma daquelas obras em que não se poria nem mais uma vírgula, nem se retiraria um só artigo.

Em seguida, um monumento literário: A guerra do fim do mundo. Canudos, aquele episódio de religiosidade popular mística, esfomeada, milenarista, acontecido nos sertões brasileiros, na segunda metade do século XIX, reprimido brutalmente pelo governo central até a total aniquilação, é romanceado por Llosa com erudição e precisão formal extraordinários. Ele percebeu completamente o que contava, sem meter-se na história, para que certamente ajudou o não ser brasileiro.

Eis que Olívia me presenteia com o livro mais recente de Llosa: O sonho do celta. Mais um livro a compor a obra literária do escritor que quase não varia o bom nível. As obras dele permitem dizer, como elogio, que se parece bastante consigo mesmo. Vargas Llosa cuida, sempre, das únicas coisas importantes que há: o tempo e as pessoas metidas nele. O estilo é fácil, não há acrobacias formais, a língua é direta, sem ser seca.

O celta do título é Roger Casement, irlandês nascido no Ulster e no aparente protestantismo. Servidor da coroa britânica, como diplomata, teve duas atuações destacadas no relato das brutalidades que se cometiam na extração de borracha, primeiro no Congo, depois no Putumayo. Seus relatórios sobre essas situações tornaram-no famoso, alçaram-no à nobreza. Claro, seus relatórios ajudaram os interesses da coroa, que investia na borracha, no sudeste asiático!

A personagem de Casement é repleta de ambiguidades, o que a torna interessantíssima. Claro a personagem humana é feita por boas doses de ambiguidades, sempre, mas há casos de contrastes mais vincados e de grandes divórcios dentro da mesma pessoa. Casement acredita-se protestante, mas é, ou melhor se diz, torna-se católico. Torna-se pouco a pouco, sem saber que sua mãe o batizara às escondidas, quando muito pequeno, pois o pai era protestante e não podia sabê-lo.

Serve à coroa britânica, que faz dele Sir Roger, e torna-se, aos poucos, um ferrenho independentista irlandês. Essa viragem segue uma trajetória de conversão, leva-o de uma visão e trabalho burocráticos para a ação religiosa, fanática e revolucionária. Tenta, é verdade, guardar alguma coerência e desliga-se do serviço consular, alegando motivos de saúde, o que era sumamente verdadeiro.

Integra febrilmente os movimentos nacionais irlandeses; viaja aos EUA para entrevistar-se com irlandeses radicados lá e coletar ajuda para a causa. Julga que a oportunidade apresentada pela primeira grande guerra não pode ser desperdiçada. Procura os alemães, forte na premissa de que os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos. Não ignora as consequências possíveis desse ato que, para os britânicos, não seria qualquer coisa além de alta traição.

Sensatamente, defende que o Levante de 1916, na semana santa, somente teria êxito se ocorresse ao mesmo tempo que um ataque da Alemanha à inglaterra, porque isso enfraqueceria as forças britânicas. Do ponto de vista estritamente lógico e estratégico, estava coberto de razão. Insta os alemães a fazerem o ataque, até ser levado a perceber, pelas evasivas, primeiro, e direta e secamente, depois, que a Irlanda, para a Alemanha em guerra, significava nada.

Na aventura da tentativa de desembarque de vinte mil fuzis alemães na irlanda, é capturado, preso, julgado e sentenciado à morte na forca, por traição. Lamente profundamente que tenham insistido no Levante, que resultou um massacre dos irlandeses e lamenta ainda mais não ter tido a ocasião de estar lá e morrer em combate. Pede clemência ao conselho de ministro e aguarda o desfecho na prisão.

Estrevista-se regularmente com o Capelão da prisão, o padre Carrey, que sabe de seu batismo e afirma que seu retorno não é mais que o descobrimento de um pertencimento de sempre.  Casement é afinal enforcado – esse método que sempre me pareceu a janela aberta à observação da vileza dos ingleses – por um carrasco que escreve memórias, já velho, antes de suicidar-se. Este carrasco anota que nunca vira homem ir para a morte com tanta dignidade.

Casement, de certa forma, além das ambiguidades, é um poço de ingenuidade. Daquela ingenuidade feita de razão que ainda não se tornou poesia ou mística. Nos finais, ele percebe que seus colegas irlandeses de movimento tinham uma visão de martírio, que sabiam, afinal, que não se lutava para ganhar, porque não era possível. Místicos fervorosos, eles eram talvez mais racionais que o racional a flertar com o místico.

Ingenuidade também na incapacidade de perceber que era monitorado pela inteligência inglesa e que era difamado escandalosamente nos media. Casement era homossexual. É ocioso dizer, por evidente, que essa homossexualidade vinha carregada de culpa e de sombras, em uma figura religiosa, inicialmente protestante e depois católico. E que a revelação dos seus diários íntimos causou imenso escândalo.

O caso dos diários – os black diaries – é controverso ainda hoje. O governo britânico manteve-os sigilosos até há pouco e há quem defenda sua inautenticidade e outros o contrário. A inautenticidade é bastante plausível, pois falsificar diários seria o mínimo a esperar-se da inteligência britância. Eles relatam encontros carnais, furtivos e mediante pagamentos, relatados de forma crua e direta, como que por alguém que se comprazesse com a própria eroticidade de um relato escandaloso.

Vargas Llosa lida genialmente com o material dos diários, que analisou. Em um pequeno posfácio, muito útil e curto, explica que acredita na autenticidade dos diários, mas que acha-lhes mais uma coleção de aventuras fantasiadas que propriamente vividas. Mais o relato ficcional do que gostava de ter feito, que do realizado, um jogo de autoerotismo escrito de si para si.

O livro estrutura-se em três partes: Congo; Putumayo e Irlanda. A narrativa vai e vem no tempo, mas sem qualquer confusão, sem as sombras que resultam das idas e vindas de alguns escritores. Não há um mar de psicologismo em que vagueiem à deriva datas variadas e desconexas. Há uma narrativa bem explicada, em que vários períodos da vida de Casement são contados, exatamente no ritmo necessário à compreensão da evolução da ação.

Fica evidente que os pretos foram explorados selvagemmente pelos belgas e outros europeus de Leopoldo II; que os índios da amazonia peruana foram brutalmente torturados e dizimados pela Peruvian Amazonian Company, de Júlio Arana e seus sócios ingleses; que nada obstante, nem os pretos, nem os índios eram santos, eram explorados, torturados, escravizados e exterminados.

Fica evidente que Casement dedicou-se integralmente à confecção desses relatórios e ficou escandalizado com as brutalidade que viu por vinte e tantos anos. Que essa visão direta da colonização, do domínio, levou-o a perceber a Irlanda em posição de colonizada pela inglaterra, algo de que somente se escaparia com resistência tenaz, antes que os esforços ingleses de matar todos os trações culturais próprios da Irlanda tivesse sucesso. E fica evidente que ele tornou-se um fanático e viveu coerentemente com isso e aceitou o resultado disso.

O livro – e aqui sinto-me a dizer uma platitude – não faz a história romanceada da vida e tempo de um herói, nem de um santo, nem de um desviado, nem de um bandido. Isso é para irlandeses e ingleses, conforme seus lados e partes fazerem.

Vinte e um anos depois do Levante massacrado pelos ingleses, a Irlanda tornou-se independente. O martírio teria sido precisamente o que previram os seus líderes, uma ferida sempre aberta, a sangrar nos órfão e viúvas e a reforçar a identidade irlandesa, o que permitiu que não arrefecesse a vontade de independência. Casement teve seus restos transladados para a Irlanda, décadas depois da execução, depois de passar longos anos em sepultura sem lápide, na prisão. Claro, para a Inglaterra foi um traidor e foi mesmo.

Sugiro a todos os apreciadores de literatura a leitura desse livro. E de quantos Vargas Llosa lhes chegarem às mãos.

 

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