Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: maio 2012

Luís Figo

Costumava ver mais futebol que atualmente. Isso era de 1998 para trás, no tempo em que era vivo um tio que gostava muito de futebol; na casa dele eu estava frequentemente e víamos muitos jogos pela televisão.

Lembro-me de Luis Figo a jogar desde antes de 1998. Não há qualquer erro de datas, porque o futebolista é dois anos mais velho que eu e estava já em evidência, no Barcelona, quando eu assistia o campeonato espanhol assiduamente.

Minha primeira impressão foi que era um jogador muito habilidoso nos espaços curtos e médios. Depois, que era um jogador relativamente forte, com o centro de gravidade baixo, ou seja, difícil de derrubar.

Não como Maradona, o paradigma do jogador baixo, forte, habilidosíssimo, da bunda grande, pernas abertas, a bola colada aos pés, dificílimo de por no chão exceto com grande violência, mas Figo fugia ao comum.

Comecei a suspeitar que Figo driblava muito para trás aqueles dribles largos e aparentemente fáceis. Mais depois e quase contemporaneamente, percebi que o passe depois do drible para trás era sempre certeiro, para o meio e para um companheiro que tinha obtido espaço por conta das firulas do Figo.

Adiante, percebi que o homem chutava muito bem a gol. Chute forte, tiro tenso, a longa distância. Nada como Cristiano Ronaldo, mas tampouco desorezível em alguém com outras qualidades. Percebi o óbvio, que Figo corria o jogo inteiro.

A síntese da minha penúltima consolidação de pensamento foi que ele era laboriosíssimo, ou seja, que era um jogador muito disposto e trabalhador para a equipe. O homem corria o jogo todo, não considerava perdidas certas bolas e ainda conseguia ver onde estavam os companheiros a receberem passes certeiros.

Por fim, percebi que Figo era um excepcional jogador, precisamente por ser tudo que vinha percebendo aos poucos: habilidoso, dedicado, corredor, bom passador, difícil de parar com falta, bom chutador, organizador do jogo, cadenciado.

Com ele, aposentou-se o elemento fundamental da equipe portuguesa. Aposentou-se a inteligência.

A Presidente Dilma e a falácia da carga tributária.

Um dos assuntos preferidos de parcela da classe média brasileira é a carga tributária, considerada responsável única pelos altíssimos preços dos automóveis no país. Assim, duas coisas caras a esse estrato social juntam-se: o desejo por automóveis e o anseio de falar mal do governo, mesmo que ele não tenha prejudicado os reclamantes.

Não seria razoável esperar que pessoas adestradas por Veja, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Globo agissem diversamente. Além do medo atávico de mudanças que lhes possam desfavorecer – o medo da ascensão das massas – elas são bombardeadas diariamente com tolices na forma de lugares-comuns repetidos à exaustão.

Carga tributária é um mantra. Repete-se até ser repetido espontaneamente pelo alvo da propaganda. Subjazem a carga tributária noções como as de Estado hipertrofiado, Estado ineficiente, inibição do mágico espírito empreendedor e outras mais, de viés oportunista.

Nunca é demasiado lembrar que o discurso anti-Estado, no Brasil, é feito preferencialmente por aqueles que mantém uma estreita simbiose com ele, que vivem da predação do público e do Estado. Não há, na verdade, discurso liberal puro neste país em que todos serviram-se do Estado para assaltar a maioria.

As camadas médias vivem à mercê do que uma imprensa de péssimo nível, parcialíssima mas sempre a falar de imparcialidade, lhes põem na cabeça. Elas não agem criticamente, nem quando isso é recomendável sob perspectiva conservadora. Não se aceitam como médios oportunistas a surfarem a onda da inércia constante, a grande invenção brasileira: o moto contínuo socio-econômico. Não, são os vitoriosos da meritocracia.

Pois bem, consagrou-se a idéia de que os carros são caros por conta da carga tributária e só. De nada adianta dizer que a carga tributária é inferior àquela praticada em todos os países europeus, onde os carros são mais baratos. De nada adianta dizer que a questão é de margem de lucro.

Esse é um mercado que se tornou grande, tem muita demanda reprimida, consumidores ignorantes – no sentido próprio do termo – e ansiosos por comprarem sem questionarem muito os preços, nem cogitarem de suas composições. Ou seja, é o ambiente ideal para a prática de margens de lucro extorsivas.

O mercado dava sinais de desaquecimento e o governo, a propósito de minimizar tal efeito, lançou medidas, ontem. Por exemplo, o IPI – Imposto sobre produtos industrializados – para automóveis feitos no país, com motores até 1.0 litro de deslocamento, foi de 7% para zero, até 31 de agosto deste ano.

Sim, o IPI dos carros com motores de mil cilindradas foi reduzido a zero! É intuitivo que as montadoras de automóveis não repassarão toda a redução aos preços, que devem cair um pouco.

O resultado será interessantíssimo: além de manter milhares de empregos, anulará o discurso imbecil da carga tributária. Ou seja, os preços não cairão na mesma proporção da redução de imposto e o governo poderá dizer que o imposto nunca foi o elemento principal dos preços altos.

Claro que haverá o pessoal da lógica do urubú com raiva do boi. Dirão que houve renúncia fiscal e que isso é ruim. Sim, mas esquecerão de dizer que o cerne do problema ficou nu, que era a avidez das montadoras a causar os preços elevados.

Crença e causalidade. Religiosidade e ciência.

Não há, no fundo, incompatibilidades entre os sistemas baseados nas crenças e aqueles baseados nas causalidades, exceto por que os primeiros evitam as armadilhas das regressões infinitas. Não há, porque ambos servem-se de crenças e de afirmaçõs de causalidades, em cadeias maiores ou menores.

O dito acima não se confunde com postular a compatibilidade absoluta entre religiosidades e ciência ou filosofia. São afirmações diferentes, pois pode haver sistemas filosóficos focados mais nas relações que nas causalidades e crenças.

É claro que penso na assertiva de Hume, agora: as relações são exteriores aos seus termos. Os termos, aqui, são quanto se capta sensorialmente, quanto de percebe de fora como informação. Mas, são também as causas. O todo, que seria uma relação, muito provavelmente está para fora, ou para além do simples conjunto dos termos em comparação, ou seja em dinâmica relação.

Crença e desejo estão por todos os lados, enervados, nas postulações religiosas e nas científicas, a condicionarem as causalidades enunciadas em cada segmento componente de uma estrutura teórica.

Os triviais – e repetidos – exemplos são os melhores. A indução clássica de que amanhã haverá uma aurora decorre de hoje a termos visto e ontem também e antes de ontem e, aparentemente, desde sempre. Ora, o que há é a crença na aurora de amanha, porque a de hoje não é, de maneira alguma, um antecedente causal lógico válido para assumirmos que ele haverá amanhã.

O nascer do sol de amanhã, quando e se ele ocorrer, será o do hoje de amanhã, nunca uma decorrência causal de ter ocorrido antes. Ou seja, a relação entre as auroras e suas sucessões estão muito além do aprisionamento dela a partir de seus termos isolados e de alguma aparente causalidade.

Visto por outro ponto, a crença está antes e depois da relação ou do postulado. Antes como axioma e depois como resultado efetivamente produzido e projetado, ou seja, não espontânea resultante de um método científico. Talvez fosse mais adequado nomear a crença ao depois como desejo, mas isso afastaria a percepção de circularidade que permeia grande parte dos raciocínios e enunciações.

Os modelos causais tendem a serem circulares na medida em que os pressupostos confundem-se com as conclusões ou finalidade, se assim se preferir chamar. O sistema aristotélico das causalidades inicial, formal, material e final é, assim, nitidamente autoreferente, circular e tendente ao sofisma de indução. Essa mesma estrutura básica ampara as religiosidades de matriz grega, persa e judaica.

Se as relações estão fora de seus termos, mais que a conclusão empirista clássica da redução ao dado, temos relações autônomas, sucessivas horizontalmente ou mesmo paralelas. Dissociadas, portanto, da clássica lógica da imputação, que é, afinal, uma lógica da formação do juízo. Ora, uma lógica da construção do juízo não se faz sem altas doses de crença.

Assim, talvez seja válido afirmar que a ciência e a religiosidade operam segundo o mesmo modelo, com vantagens para a religiosidade, que não precisa fazer esforços para disfarçar a crença.

A má educação.

É cansativo e redundante falar em má educaçã0, pois leva, também, a confusões, equívocos e a mal entendidos. As pessoas pensam que se fala de etiqueta ou de formalismos, apenas, quando se trata de muito mais que isso. Mais que isso, mas também sobre isso.

As convenções sobre as formas de se estar e de se portar em convívio têm razão de ser. Não teriam, evidentemente, se todos estivéssemos sempre sós e se fôssemos todos destituídos de qualquer rigor connosco, mesmo estando sozinhos.

São regras – como quase todas as outras – que só visam a que não nos matemos ou agridamos tão constantemente que a convivência torne-se em algo animal entre animais que se dizem e se prontificam a reputar-se racionais.

A convivência entre os animais não humanos não precisa de regras extra-biológicas. Pode-se dizer que há modelos sociais em certas espécies e, tudo bem, elas existem. Todavia, são regras não criadas por algum consenso social racional. São regras biológicas no sentido de não derivarem de posições consensuais aparentemente racionais e, mais, conscientes.

As pessoas humanas são as páginas em branco que podem ou não receber algum escrito bom. Geralmente, ou permanecem em branco, ou veiculam um escrito ruim. Mas, fazem questão de afirmar sua realização, mesmo que ela seja uma mísera fração da potencialidade da página em branco.

A má educação – quem aposta nela sempre quererá negar o que se dirá adiante – é mais resultado da ignorância que da vontade. Por mais raiva e insatisfação que ela gere em quem a vê e sofre seus efeitos, convém lembrar que ela é algo menos voluntário que estúpido.

Uma estupidez bovina – para usar a expressão consagrada que ofende os bois – e repetida convictamente, afirmativamente, sem possibilidades de ser diferentemente. O sujeito que agride o outro com algum comportamento mal educado, contrário à minimização de atritos no convívio, geralmente fa-lo só por acreditar que não há outra formar de comportar-se.

O fulano mal educado e os fulanos todos mal educados não significam que haja uma conspiração do mundo contra quem aja preocupado em não atingir e em não impingir dificuldades aos outros.  Significa apenas que o fulano não conhece regra alguma. Não no sentido de conhecê-las e desprezá-las, mas no de não as conhecer e não ver sentido nelas, ainda que as entreveja.

Vou a um mercado, de carro, entro no parque de estacionamento, e tem um imbecil com o carro parado extamente na faixa para pedestres e no local em que se faz a curva… A coisa é absurda, pois o carro está precisamente onde não podia estar. Ali, ele impedia qualquer outro de fazer a curva, de seguir adiante para qualquer direção.

Mas, esse imbecil estava com as lâmpadas de alerta, aquelas amarelas que piscam aos mesmo tempo, dos dois lados, acessas. Ou seja, ele reputava-se em situação peculiar, fora do comum; em situação que merecia ser anunciada como extraordinária pelo uso das lâmpadas de picar amarelas.

O fora do comum, aqui, é só o detalhe e a armadilha psíquica. O parque de estacionamento estava vazio! Quer dizer que o fulano podia ter estacionado o carro sem quaisquer dificuldades, em uma vaga próxima à entrada do mercado. Quer dizer mais que isso.

Seria tolo e superficial dizer que o fulano é um criminoso com idéias pré-concebidas  e que sabia perfeitamente o que fazia. Ele sabia perfeitamente o que fazia dentro do pouco ou nada do que sabe ou acha razoável como normas de convivência.

Ele faz o maior absurdo, gera uma imensa fila atrás de si, e permanece na mesma atitude, porque ele não tem a percepção de que a conduta seja proibida ou lesiva aos outros. É algo normal, algo normal e somente passível de uma parcial desculpa ou aviso pelas lãmpadas piscantes.  Uma coisa que ele mesmo aceitaria se fosse ele a esperar por conta do mesmo absurdo; aceitaria o absurdo por conta da lógica da conivência e da ignorância.

O vale-tudo brasileiro é, no final das contas, muito mais de ignorância que de má-fé deliberada. Não significa que as punições sejam inúteis, mas que a educação é mais útil. Significa que, entre nós, o axioma jurídico de que ninguém se desculpa de descumprir a lei por desconhecê-la é uma falácia.

A lei é das muitas coisas desconhecidas. Há delas mais importantes; o desconhecimento é geral e tendente ao vale-tudo gebneralizado.