Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: julho 2012

As famílias brasileiras: metonímia involuntária e reveladora.

O jornal de domingo às vezes dá o que pensar, daquele pensar sem ser contra, nem a favor. Ou seja, ainda vale a pena ler o jornal, por mais superficial e ruim que se venha tornando, sempre e sempre. Em geral, as notícias são as mais desimportantes e ligeiras, os editorias os mais partidários e acusativos e as reportagens pecam por agredirem a língua insistentemente.

Todavia, reportagens há delas que mesmo superficiais e mal escritas fazem pensar e revelam posturas bem estabelecidas. Algumas interessam pelo que há por trás e ao lado delas, pelo que não querem dizer. Não falo necessariamente do que elas escondem propositadamente, mas do que esconde-se por baixo do que são seus objetos principais declarados. Podem ser ponto de partida da percepção de anseios conservadores talvez involuntários.

Há poucos anos, a Folha de São Paulo saia-se com uma matéria que tratava da dificuldade das madames das classes médias e altas encontrarem serviçais domésticas. Era um lamento bastante direto e uma acusação mais ou menos indireta dos programas de apoios sociais governamentais, que aumentaram discretamente os preços dos escravos domésticos. Era, também, um caso de desonestidade intelectual, porque o problema anunciado não era daqueles abertos e insolúveis. Bastava às senhoras pagarem mais…

Hoje, vejo uma reportagem meio ingênua, no Diário de Pernambuco, sobre vantagens e desvantagens de as famílias terem empregadas domésticas ou contratarem serviços domésticos autônomos e eventuais. O texto não escorrega para o lamento puro e simples do aumento dos preços desses serviços semi-escravos, ele passeia ao redor de análises de custo e benefício de uma e outra alternativa.

Interessantíssimo que os pólos da relação sejam, de um lado, as famílias contratadoras e, de outro, as serviçais contratadas. A primeira coisa a vir a tona é que – para o texto – as famílias são aquelas das classes mais bem aquinhoadas, o que leva a concluir que do lado das contratadas não há família. Só há família de um lado, pois do outro está a empregada, constante ou eventual.

Família é usado como termo unívoco, o que só é possível rigorosamente se o compreendermos com os qualificativos ali suprimidos: de classe média, média alta ou alta. Famílias, assim sem qualificativos, são todos os grupos reunidos a partir de vínculos de parentesco ou de afinidade, e que vivam juntos na mesma moradia. Ou seja, as serviçais também podem ser parte integrante de famílias.

Porém, a reportagem não usa a distinção identificadora de quais famílias sejam as que contratam serviços domésticos, o que revela que toma a parte pelo todo de forma provavelmente involuntária. O autor do texto não sente necessidade de qualificar família porque isso para ele só pode ser um tipo de família. A figura de estilo aqui deixa de sê-lo, propriamente, porque o autor realmente pensa que a parte é o todo.

A família, na sociedade brasileira, é conceito de resistência. Mais que o significado claro que tem na teoria econômica, no imaginário do conservadorismo ela é um núcleo que supera o conceito de indivíduo e de linhagem e grupo amplo ligado por parentesco.

No sentido que as classes dominantes fizeram o termo ter, família liga-se à estabilidade social e econômica que implica morar em certos tipos de habitação, em certos locais da cidade e a poder ter a serviço empregados domésticos. Esse grupo pode compor-se de casais homo ou heterossexuais, com ou sem filhos, monoparentais com filhos e outros muitos arranjos.

Apenas não pode ser composta por grupo que somente alugue seu trabalho. Ela, na compreensão do tipo expressa no texto da reportagem, tem que ser um grupo que potencial ou efetivamente alugue serviços domésticos. O grupo pode até não querer alugar serviços, mas se o puder fazer está inscrito no âmbito de família.

O critério de pertencimento é preponderantemente econômico, pois perdeu-se a rigidez dos critérios sociais acessórios que complicavam a definição. Família não é mais necessariamente um vasto grupo sob liderança patriarcal, senão um indicativo claro de poder de compra de serviços. Foi reduzida a isso, o que, por um lado, a torna mais simples de perceber e, por outro, mais apta a trair seu real significado.

Antes, mais elementos deviam estar presentes para que um grupo, no discurso social predominante, fosse considerado família. Um pai, líder econômico e simbólico, uma mãe, líder do lar e talvez economicamente ativa, uns filhos, um avô, uma avó, talvez, até mesmo um tio, tia ou algum agregado. Isso tudo com papéis sociais bem estabelecidos e o acréscimo da moradia bem situada e dos serviçais domésticos era uma família.

Hoje, papéis sociais podem ser menos rígidos em comparação com protótipos anteriores, o número de integrantes pode ser menor, mas a possibilidade de assalariar serviçais permanece firme como critério principal para definir uma família brasileira no sentido socialmente dominante.

A linguagem, principalmente a jornalística, precisa servir aos mecanismos de conservação, por meio de seu efeito fixador de idéias. Assim, é comum usar-se termos como se fossem unívocos, quando eles precisam de qualificadores a lhes precisarem o alcance. Às vezes o termo não qualificado serve para dar a falsa impressão de ampla compreensão de todos os elementos em uma categoria, outras serve para induzir a percepção da parte como se fora o todo. Ou seja, a imprecisão é ambivalente.

Às vezes dizem que os brasileiros tiveram seu poder aquisitivo aumentado, como se isso tivesse acontecido com todos os brasileiros e ainda como se o aumento de potencialidade aquisitiva significasse também de qualidade de vida, de conhecimento, de pertencimento nacional. A proposição desse tipo supõe que os brasileiros são todos os mesmos, quando se sabe que os vinte milhões de miseráveis existentes não são brasileiros, argentinos, peruanos, venezuelanos, são nada, a nada se identificam, a símbolo homogeneizador nenhum se ligam.

Outras vezes diz-se que os brasileiros viajam mais para o exterior, quando se sabe que alguns voltaram a poder viajar e outros passaram a poder fazê-lo. Aqui, a parte pelo todo é evidente, porque brasileiros aí esconde o número dos que não podem viajar – maior que os que podem – e submerge a necessidade de qualificar quem são os tais brasileiros da proposição.

Claro que os dois exemplos anteriores são de casos voluntários clássicos de metonímias desonestas. O desonesto e o voluntário parecem-me menos interessantes que os usos consagrados e involuntários de discursos e termos de conservação, até porque menos eficientes e mais caricatos que os mecanismo inerciais não percebidos.

Afinal, milhares terão lido a despretenciosa reportagem do Diário de Pernambuco e não se terão perguntado se as empregadas domésticas, constantes ou avulsas, têm família. Dada e aceita a antítese entre contratantes e contratados, nada resta a ser pensado pelos integrantes de famílias…

Ignorância afirmativa: o que tem de argentino no Colón?

Os maiores sociólogos do senso-comum que há, nas cidades grandes, são os taxistas. Eles são conservadores, em sua maioria, mas não são desonestos intelectualmente, ou seja, não estão a representar papéis aparentemente complexos.

Táxis em Buenos Aires ainda são meio de transporte relativamente barato e, portanto, interessante para deslocamentos grandes. Para pequenas e médias distâncias, o ideal é caminhar e perde muito quem não fizer esta opção.

Quase sempre é possível conversar com os taxistas. Em outras ocasiões, gostava mais de falar de política, mas deixei isso de lado. Hoje, basicamente amenidades e futebol; é bom deixá-los falarem.

E eles são quase unânimes em insinuarem que nós brasileiros e o Brasil em geral estamos muito bem. Eles percebem as coisas muito a partir da taxa de câmbio, da quantidade de sacos que os brasileiros carregam consigo e das opiniões de quantos deslumbrados estiveram lá na tentativa de trazer tudo que for possível na bagagem.

Que nós brasileiros e o Brasil estamos melhores é óbvio, mas isso é negado, internamente, exatamente pela classe média que se comporta de maneira a afirmá-lo no exterior. A mesma gente que insiste em reclamar de tudo, em casa, dá sinais evidentes do contrário, fora de casa!

Prova que certa camada social reclama muito por reflexo condicionado ou até por reflexo totalmente involuntário e incondicionado. Por puro e simples conservadorismo político e preconceito de classe contra um certo ex-presidente da república que, o único, era de extração social realmente baixa.

A parcela da população brasileira que tem do que reclamar e o devia fazer, está em relativa letargia, infelizmente. Mas, quando derem vez ao morro, toda a cidade vai passar…

Bem, o caso é que destinos turísticos de brasileiros em Buenos Aires, de coração e sinceramente, são os centros de compras, desde as evidentes Galerias Pacifico até os centros caros de Palermo.

Mas, é engraçado como há uma pontinha de desconfiança com o entregar-se totalmente aos desejos mais puros e reais. Há que se inserir algo menos comercial ao roteiro e qualquer coisa serve.

Curiosa necessidade humana, essa de disfarçar um pouco as vontades mais verdadeiras. O sujeito, no mais das vezes, queria era sair nu pela rua, correndo, gritando, saltando, com o cartão de crédito na mão, a gritar eu compro, eu compro, como um novo eureka de um tristemente novo Arquimedes.

Bem, o caso é que fomos visitar o Teatro Colón. Este edifício é enorme e belíssimo. Mais bonito por dentro que por fora, de uma beleza suntuosa, de neoclássico eclético. Estão lá os inevitáveis vitrais franceses, os mármores Carrara, os tetos em estuque doirado, os espelhos enormes, o mobiliário terceiro império tardio. Esse Teatro é mais belo que a Opera Garnier, que certamente foi um modelo considerado na época da construção.

O Colón foi o ponto turístico – não tentarei inventar termos para fugir desse péssimo lugar-comum – onde menos avistei brasileiros, afinal não é um centro de compras. Todavia, pouco não significa nenhum. Éramos suficientes para termos direito a visita guiada por uma simpática jovem a esforçar-se por falar português.

A guia da visita dos brasileiros era simpática e servia-se de sagazes meios de agradar a platéia, como desculpar-se inicialmente pelo precário português falado – falando-o perfeitamente – perguntar aos visitantes de onde vinham e contar uma e outra anedota bem suave sobre a construção do teatro.

O perguntar de onde vêm os visitantes produz um belo efeito, pois todos anseiam por falar, mesmo que seja para dizer alguma irrelevância. A cultura da participação, ainda que se participe com um nada, é muito bem reputada.

Lá pela metade da visita, ao cimo do segundo lance de escadas, que dá acesso aos camarotes, a guia parou a explicar que a construção do teatro envolveu três ou quatro arquitetos italianos e franceses, mármores de três regiões distintas da Itália, espelhos belgas, vitrais franceses e por aí segue.

Perto de terminar a exposição, a guia foi interrompida por uma audaz e segura de si senhora do Rio de Janeiro, que a indagou o que naquele Teatro era argentino. Ó aparente sagacidade, coisa rápida que faz alguém meter-se no caminho da grosseria e da burrice…

É perverso tentar constranger pessoas que, em função do ofício, não podem responder adequadamente, embora saibam como fazê-lo. A jovem, muito delicadamente, disse o óbvio: embora arquitetos, mármores e vidros não fossem argentinos, a idéia de erguer o teatro, o sítio e o dinheiro que o pagou eram-no.

Se eu fosse um ser mais tolerante e, portanto, mais dado a provocações e ironias, teria perguntado à senhora do Rio de Janeiro o que ela acha que é brasileiro no Theatro Municipal da antiga capital do Império e da República, exceto o suor dos trabalhadores, e alguma areia retirada de Botafogo.

Mármores, espelhos, vitrais e o restante a compor um típico teatro fin-de-siècle como o Municipal do Rio de Janeiro vieram todos da Europa e nem por isso o edifício pode-se  considerar não-brasileiro.

A lógica fácil, a falta de educação, a falta de cultura formal e o estar sempre à vontade por sentir-se mais rico levam a grosserias imensas, que somente deviam ser praticadas na mesa de um bar, entre pessoas que não estão obrigadas ao silêncio por conveniências profissionais.

A coluna áurea.

O ouro a serviço da feiúra.

Não me lembro se é n´A rebelião dos anjos ou em Os deuses têm sede que Anatole France faz um personagem dizer que a burrice é pior que a má-fé, porque a primeira é incansável e dorme nunca, enquanto a segunda pára para descansar, eventualmente. Trata-se de uma fala de um diálogo, mas pode bem ser tomado por um aforismo, até porque a proposição não é inversível sem perda de sentido.

A comparação de atitudes – muito carregada de valoração, evidentemente – pode ser transposta para outras díades. Claro que se pode perceber aqui a oposição entre involuntário e voluntário e dissolver muito o sentido da proposição, na medida em que se perde o aspecto valorativo. Todavia, é de comparação de termos que andam próximos que se trata.

O caso é que pretendo dizer da feiúra que é pior que o ridículo, porque a primeira afirma-se incansavelmente, enquanto a segunda é produzida mais esporadicamente por fatores variados – incluindo-se a feiúra – e percebida a partir de um juízo não somente estético. O ridículo é cambiante segundo o tempo, o lugar e outros fatores.

É curioso que essa relatividade do ridículo seja proposta para a feiúra, o que revela a maior gravidade da segunda acusação, de que todos querem fugir. De certa forma, tenta-se aproximar muito coisas diversas, porque uma delas é mais temida que a outra. É preciso transformar tudo que se teme: absolutos em relativos e vice-versa.

O novo-riquismo é repleto, tanto de feiúra, quanto de ridículo. A primeira ele esquece, como se não existisse. A segunda ele dilui no relativismo próprio da percepção forjada de dentro para dentro. Porém, ambas estão lá, eloquentes, nos grandes símbolos em que se afirma o novo-riquismo.

O âmbito mais propício às afirmações de feiúra e ridículo do novo-riquismo é a arquitetura e sua filha menor a decoração de ambientes. Os prédios de apartamentos da classe média ascendente brasileira agridem tanto quanto convidam a pensar no que afirmam. São idéias em tijolos, concreto, aço e vidro; idéias impossíveis de se esconderem.

Um desses templos de celebração aberta de si mesmo está muito em evidência, aqui na cidade onde moro. É um imenso prédio de apartamentos para a classe média alta que se passeia nos Land Rovers que invadiram o país inteiro. É um ambiente com a ambição de ser auto-suficiente e permitir ao grupo que o habita isolar-se de tudo ao redor. Ou seja, o sonho do condomínio suburbano de casas – no modelo norte-americano – agora na forma vertical.

Prédios assim têm piscinas, academias de fazer ginástica, quadras poliesportivas, áreas destinadas às brincadeiras infantis, áreas para fazer churrasco e encher-se de cerveja, arremedos de bosques e, o principal, salões para festas.

O prédio mais em moda aqui tem um imenso salão para festas, o que é vulgar, certamente. Invulgar é que esse espaço quadrilátero sem qualquer atrativo especial tem, no centro e sem função estrutural alguma, uma coluna revestida a ouro! Sim, uma coluna, ou pilar se assim se preferir dizer, revestida de escamas áureas.

A coisa, para além de desconcertante e escandalosa, é de uma feiúra que desafia o observador a olhar atentamente a deformidade, sem tirar os olhos com medo ou repugnância. E isso precisamente é o que não pode ser dito. A coluna e seus donos aceitarão, de mau humor, é certo, a objeção do ridículo, que rebaterão com a sincera afirmação da perfeita moralidade da ostentação.

Mas, não é de ostentação que se cuida; não é de moralismo que se cuida. Da mesma forma que alguns decímetros cúbicos de Nardo perderam-se na lavagem dos pés do Galileu, alguns gramas de ouro podem perder-se no bezerro totêmico da classe média alta brasileira. Não há escândalo em pintar paredes a ouro ou mesmo em comê-lo, que isso volta ao pó.

A feiúra, todavia, não volta ao pó, porque dele não proveio. Sua origem é demasiado humana e por isso precisa não ser. É preciso sempre, para os forjadores do bezerro áureo, que seu totem seja visto por um prisma de moralidade, porque de juízo estético correm com as pernas a baterem nas costas.

O novo-riquismo aceita-se como produtor de qualquer coisa, porque acredita-se capaz de estabelecer as próprias balizas de sua interpretação. Certo que aprisionou as possíveis percepções de si e de suas criações, fica à vontade com as aparentes variações e, por isso, não teme o ridículo. As variações estão previamente dadas no âmbito quantitativo e, ao fim e ao cabo, significam nada.

O feio não é parametrizado por essa gente tão moral; ele não se aprisiona por critérios de mais ou menos auto-indulgência: é estranho a essa forma de pensar e, portanto, inapreensível. Evidentemente, o mesmo dá-se com o belo.

Um e outro espécime da fauna novo-rica percebe uma rota de fuga, embora não a consiga trilhar completamente, porque não pode seguir uma rota que conduza para fora, totalmente. Não há fora! Fora, é o perigo. A rota de fuga percebida serve-se da antinomia entre espontaneidade e simulação. Assim, a espontaneidade seria critério de análise do belo.

Acontece que o espontâneo não é o à vontade da falta de graça afirmativa. Ele é, antes, o passear nas possibilidades ou liberdade, se assim se preferir dizer, o que não existe no novo-riquismo, essa forma de ser e estar diametralmente oposta à liberdade. Mas, é preciso confundir a grosseria que se sente à vontade com espontaneidade e liberdade.

Não havia opções anteriores à edificação da coluna de ouro, porque tudo era auto-celebrar-se. Tudo estava pré-condicionado, como em uma espécie de jansenismo social em que todas as manifestações externas são uma só afirmação de meia dúzia de postulados morais de auto-piedade.

O novo-riquismo pede desculpas pelo que é, mas recusa-se a pedi-las pelo que faz. A coluna de ouro é auto-celebração e também um grito por piedade, já que o grupo não se festeja sem algumas culpas. Por serem demasiadas as culpas, não suportam a de fazerem o feio…