Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: janeiro 2013

Retratos de Campina Grande – Um século em imagens urbanas. Livro de Jônatas Araújo Lacerda Júnior.

retratos de CG

Primeiramente, esta postagem é agradecimento a Jônatas Lacerda Júnior pela imensa gentileza de oferecer-me um exemplar da obra Retratos de Campina Grande – Um século em imagens urbanas.

Sempre fico desconcertado quando me oferecem algo e acho que não agradeço o suficiente. Ofertas como a deste livro são delicadas. Esta delicadeza sobressai em tempos de grande rudeza, pouca sensibilidade e de achar que somos credores e merecedores de tudo.

O livro – e recordo-me de Jônatas a falar da feitura dele há cinco anos – resulta de dez anos de trabalho exaustivo de coleta de informações e fotografias que reconstroem a evolução urbanística e arquitetônica de Campina Grande nos últimos cem anos. A edição é primorosa, assim como o acabamento final da obra.

Este assunto que moveu Jônatas sempre interessou-me, desde que vivo em Campina Grande. A cidade é jovem, feita por forasteiros – principalmente pernambucanos – teve duas décadas e pouco mais de imensa aceleração econômica. Essa pujança de entreposto comercial de algodão e outras mercadorias deixou marcas no traçado urbano e na arquitetura.

Temos pequenas jóias de arte nova, de art-déco e de arquitetura moderna. Temos exemplos de grandes intervenções urbanas, como a Avenida Floriano Peixoto, nos anos de 1930 e 1940, o Parque Evaldo Cruz, duas décadas depois. E temos, também, pouco cultivo desse pouco patrimônio, mas significativo, ante a sua rápida constituição.

Sempre que tenho um interlocutor sensível a tais assuntos, ou seja, alguém não novo-rico que só pensa em dinheiro e no imediato, abordo a perda gradual do patrimônio arquitetônico campinense e a pouca preocupação que isso desperta na maioria.

Por isso, uma obra como essa é algo alentador. Esta mantido no livro um panorama da história da cidade, na perspectiva da evolução urbana e arquitetônica. Se cem ou duzentas pessoas lerem este livro e se interessarem por ele, já terá sido algo.

A invenção do natural como normal.

Se há qualquer coisa que se aproxima de oposição ao natural, ela é o discurso, ou seja, alguma proposição estruturada a partir de linguagem. Ainda assim, é oposição no limite do paradoxo, porque a linguagem, ela também, é natural à espécie humana, ao menos potencialmente.

O natural pode definir-se como ontologia total da matéria, excluindo-se as formas, pelo menos se as considerarmos no sentido platônico de protótipos da criação. A natureza é o que se encontra dado em termos materiais, o que inclui espécies animais e vegetais, terra, atmosfera e etc.

É comum a várias civilizações ligar o natural a um criador divino, o que não representa grandes problemas lógicos. Todavia, derivar da criação divina do natural a naturalidade de inclinações e comportamentos humanos é logicamente insustentável, na medida em que representa uma deslocação calculada de dois planos, para que artificialmente coincidam.

Se tudo ficasse no mesmo plano, o da natureza, seria impossível conceber o anti-natural, porque equivaleria ao não criado divinamente e, portanto, a contradição interna ao discurso. Assim, percebe-se que o anti-natural define-se com relação a critérios externos aos de definição do próprio natural. Ele define-se com relação a critérios jurídicos e morais, porque não seria concebível por oposição a si mesmo.

Em palavras mais breves, trata-se da evidência de que se tudo foi criado, forçosamente tudo é natural. Se ficássemos por aqui, teríamos a possibilidade de apropriação intelectual do fenômeno, tanto por epistemologia, quanto por religiosidade, porque o campo da criação seria total e sem descontinuidade ou fragmentação ou exceções, porque nada haveria fora da criação.

Cientes disso, os pensadores das grandes corporações religiosas monoteístas deslocaram o âmbito de formulação para o moral e para o jurídico, embora continuando a insistir que se mantinha a discussão no âmbito do natural. A partir de então, teoriza-se a dogmática dos atos contra natureza, como se isso fosse possível.

Ora, se o natural traz em si potencialidades para tais ou quais atos e se ele foi criado, é inescapável concluir-se que as potâncias e os atos decorrentes delas são também criados e, por consequência, não são anti-naturais, antes são tão naturais como quaisquer outras coisas.

Uma conduta pode ser contrária a uma norma, nunca contrária à natureza, porque neste caso simplesmente seria impossível, por externa à realidade. Atenho-me, aqui, ao discurso moral-jurídico contra a homossexualidade, formatado a partir da noção de ato anti-natural. É contradição em termos que serve apenas a finalidades de controle social, ora repressivo e excludente, ora positivo e fiscalizador, conforme o momento histórico.

São exemplos desses modelos – como aponta Michel Foucault, nas suas aulas no College de France, em 1973 – o banimento dos leprosos e depois a fiscalização das cidades em risco de peste. O que se vê, hoje, com relação à prática de atos homossexuais é o funcionamento de modelo repressivo com perversa mistura dos modelos apontados.

Inicialmente, o controle tende a ser positivo e opera a partir da lógica da opção pela autocorreção, o que necessariamente deve ser antecido pela aceitação pelo sujeito a ser corrigido de que pratica atos contra a natureza. Isso implica conceber a inclinação homossexual como espécie de libertinagem e excesso libidinoso e, consequentemente, como tipo de anomalia psíquica.

O segundo momento passa à repressão e exclusão dos que não aderiram voluntariamente ao passo antecedente, aquele da inclusão para autocorreção. A sucessão quase invariável desses dois momentos deveria levar os adeptos da teoria dos atos contra natureza a perceberem que a falta de êxito da inclusão autocorretiva é a prova da inexistência do elemento volitivo e, portanto, da perfeita naturalidade da inclinação em causa.

E deveriam lembrar-se, os perseguidores, que visar a corrigir a natureza é pretender-se também criador, o que redunda em heresia oceânica.

Percepção reduzida por projeção da parte sobre o todo.

Pessoas e grupos tendem a achar-se o centro em torno de que as coisas giram e isso é manifestação de auto-referência com muita inércia. Parece mesmo uma tendência de psicologia social, tão amplos são os efeitos.

Alguns lugares-comuns refletem a atitude de projetar o todo como símile da situação pessoal e de grupo restrito. Aqui, em Campina Grande, é comum as pessoas dizerem que a cidade está deserta e que todos estão em João Pessoa, para o veraneio na praia, nas férias de verão, em janeiro. Semelhantemente, é comum dizer-se que Brasília torna-se cidade deserta no carnaval, porque todos se vão para destinos festivos momescos.

Claro que esses lugares-comuns têm raízes em algo de realidade, mas é um tanto de realidade para poucos, que se projeta como percepção válida para tudo. Ora, muitas pessoas das classes média e alta vão mesmo, todos os anos, como a cumprirem obrigação inadiável, passar o veraneio na praia, no mês de janeiro. Claro que muita gente sai de Brasília e vai passar o carnaval em destinos turísticos ou nas suas cidades de origem.

Mas, basta um pouco de percepção para observar que essas viagens de pessoas de classes mais favorecidas atingem parcela pequena ou muito pequena das populações das cidades que usei como exemplo. É bem reduzido o número dos que podem ter duas casas, uma na cidade de moradia, outra na praia, assim como é reduzido o número dos que podem simplesmente dar-se férias em janeiro, independentemente de quaisquer fatores além da própria vontade.

Quem cria o discurso, que por sua vez cria a realidade aceita, é sempre um grupo reduzido. Ele parte de sua imensa auto-referência e faz da realidade geral a sua realidade própria e o discurso resultante espalha-se e reproduz-se acriticamente por quantos não se inserem nas condições dos criadores do lugar-comum. Trata-se de afirmação de si que toma ares de axioma social amplo e irrestrito, enfim.

O lugar-comum, essa projeção do particular no geral, não é somente deficiência de percepção, mas falsidade numérica observável facilmente. Nestes tempos quentes de janeiro, quem se dispuser a ir ao centro de Campina Grande caminhando, em manhã de sábado, verá tanta gente como nos outros meses do ano. Verá menos automóveis, por estreita margem, mas pessoas no mesmo número.

O mais interessante é que o lugar-comum não é somente um dito descasado da realidade para a imensa maioria das pessoas, ele carrega também um juízo de valor. Quem diz que a cidade está deserta porque todo mundo está na praia, diz que é ruim estar numa tal cidade. Este juízo negativo de ficar numa cidade supostamente deserta, por sua vez, carrega nítida afirmação de pertencimento social.

Ou seja, fica quem não cumpre o ritual – independe que se goste ou não – de passar o veraneio na praia, o que leva a concluir que o juízo negativo é de distinção de classe.

Interessantes consequências da estreiteza de visão que o lugar-comum dissemina são que algumas pessoas vêem-se obrigadas a cumprirem ritual que não lhes agrada, no fundo; que muitas pessoas vêem-se sonhando com a possibilidade de cumprir o ritual, mesmo que não o percebam intimamente com algum sentido.

Ativismo judiciário e mistificação.

Nomear alguma coisa já é condicionar as percepções e análises que haverá desta coisa ou, pelo menos, tentar estabelecer o condicionamento. Os próprios criadores de algo ou praticantes de certa conduta apressam-se a oferecer as balizas de compreensão de suas obras e ações, porque assim sempre se está mais seguro de oferecer tanto a coisa como sua roupagem discursiva.

Quem está fora da corporação atuante tende a deixar-se aprisionar pelos modelos interpretativos oferecidos pela própria corporação, o que leva ao desejado hermetismo e à discussão em círculos. Então, fica-se pelo contra ou a favor, sem que estas posturas consigam estabelecer precisamente sobre que incidem.

Ativismo judiciário é o nome de batismo do exercício ilegítimo de poderes estatais pelo judiciário, em nítida exorbitância do que o sistema prevê. Seus praticantes batizaram-no eufemisticamente, de maneira a pautar todas as análises do fenômeno político em questão. Trata-se, em resumo, de desequilíbrio no balanço dos poderes estabelecidos pela constituição de 1988 e, mais grave, de violação ao princípio de legalidade, que deveria ser a coluna central do estado democrático de direito.

Por outro lado, o nome revela uma contradição em termos, mesmo que isso não incomode os ativistas em questão. Contradição porque o sistema prevê a inércia da jurisdição e, ademais, sua imparcialidade. Daí, é inconcebível, em termos que não violem a lógica mais elementar, que a jurisdição seja ativa no sentido de possuir iniciativa, porque isso viola as duas premissas antes mencionadas: a inércia e a imparcialidade.

A evidente incoerência apontada no parágrafo anterior é contornada pelo mais sutil e perverso argumento de que se trata de interpretar para extrair da lei seu máximo conteúdo. Imagino que pouca gente honesta consigo própria em termos intelectuais se aventure na crença de que a lei tem conteúdos mínimos, médios e máximos, porque o conteúdo da vontade legislativa não é mensurado quantitativamente.

Lastimavelmente, entre as várias tolices que se ensinam nas escolas de direito – protótipos de escolas beneditinas e jesuítas – o postulado de que o juiz interpreta mesmo na clareza é dos mais repetidos e aceitos sem críticas. Mas, como é amplamente sabido, as coisas mais absurdas são as mais fáceis de granjearem simpatias.

Ora, na ausência de dúvida quanto à existência de lei aplicável e quanto à lei específica aplicável, nada há para ser interpretado, sim para a aplicação. Não é objeção viável o dizer que a interpretação estará na base da escolha ou descoberta da norma específica, porque isso dependerá do estabelecimento dos fatos, não de interpretação.

Provado o que ocorreu, encontra-se a norma cabível ou percebe-se a ausência de norma que discipline a situação. Nesta última hipótese, haverá, sim, espaço para interpretação judicial que atraia para o caso a norma mais semelhante possível àquela que se adequaria perfeitamente. Esta ação seria melhor chamada aproximação por semelhança que interpretação, mas sempre preferimos o nome mais propício à ambiguidade.

A lei destina-se a ter vigência e a ser aplicável eficazmente a todos os casos que se insiram nos seus moldes genéricos e abstratos. Por outro lado, o sistema legal brasileiro prevê as hipóteses de suspensão da vigência da lei e da eficácia. Sempre que a norma for contrária à constituição, é lícito o juiz não na aplicar, desde que diga expressamente onde está o conflito e declare a lei inconstitucional.

A suspensão da aplicação de uma lei dá-se em casos específicos, quando a norma inconstitucional é afastada para que se afaste assim a violação de norma superior. Nestes casos, a lei permanece válida abstratamente e segue a incidir em outros casos que não ensejaram a crítica judicial de inconstitucionalidade. Diferentemente ocorre quando a própria lei ou parte dela é atacada abstratamente, sem que isso ocorra em caso concreto, ou seja, em um litígio entre partes.

O supremo tribunal federal pode julgar a validade em si de ato normativo frente aos paradigmas constitucionais e concluir pela sua nulidade e consequente extirpação do sistema jurídico positivo. Nestes casos, a norma perderá completamente vigência e eficácia, o que se assemelha à revogação, embora não seja idêntico.

Negar vigência, pura e simplesmente, a qualquer ato normativo, sem lhe declarar a inconstitucionalidade, isso o juiz brasileiro não pode fazer legitimamente. Não obstante, é o que se tem visto cotidianamente.

Não é apenas no supremo tribunal federal que o voluntarismo judiciário – travestido nessa confusão conceitual que se chama ativismo judiciário – inspira muitas decisões aberrantes e, a rigor, nulas. Em todas as instâncias judiciais generaliza-se o voluntarismo judiciário e se veem decisões a negarem vigência à lei a partir de argumentos pueris e de voltas à lógica.

Raramente alguma decisão traz a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei aplicável, somente o afastamento da incidência legal a partir de generalidades ou disfarçada em crítica judicial da validade de algum ato administrativo, o que é o desculpa mais comum para a negativa de vigência da lei a partir da simples vontade pessoal do juiz.

A disfuncionalidade é enorme, porque se trata de exorbitância de função e desvio de poder, em confronto com as competências do poder executivo e principalmente com as do poder legislativo.

O voluntarismo judiciário provindo do supremo tribunal federal é o mais grave porque foi apropriado e patrocinado pelo discurso superficial e oportunisticamente moralizante da maior parte da imprensa. Aqui, o voluntarismo que não aplica leis senão vontades pessoais está de mãos dadas com a teoria do estado de exceção.

A bem de promover uma moralização – como se a finalidade do Estado de Direito fosse a moralidade e não a legalidade – o mais elevado tribunal do país viola as leis e a constituição, que ele deveria proteger. É ocioso dizer que a cruzada moralizadora é de fancaria e não passa de perseguição política seletiva, porque seria demasiado estúpido, até para nossos padrões, achar que a moral é qualquer coisa mais que vontade de mandar nos outros.

Busca-se retirar da discussão o único âmbito que está a cargo do judicial, que é a legalidade. Assim procedendo-se, as coisas deslocam-se, tanto da política, quanto do jurídico, para o nebuloso campo dos códigos pessoais e grupais de condutas, de resto amplamente cambiantes e precariamente estabelecidos. A marcha da patifaria disfarçada conseguiu até inserir na constituição um nada jurídico que chamou de princípio da moralidade administrativa.

É aberrante postular-se que a administração pública obedeça à vacuidade conceitual que atende pelo nome de moralidade. A administração, como todos os cidadãos, atende, sim, à legalidade, que é o resultado da vontade popular manifestada pelos representantes eleitos legitimamente. Na lei, feita por quem a deve fazer, já estão todos os antecedentes axiológicos que levaram ao estabelecimento de prescrições gerais e abstratas.

Há pouco, o voluntarismo judiciário do supremo tribunal federal chegou aos píncaros. Na ação penal 470 foram condenados sem provas trinta e tantas pessoas e, entre elas, três deputados federais. Inúmeras garantias constitucionais foram violadas frontalmente neste julgamento de exceção, pautado pelo furor de linchamento da imprensa.

O princípio de que cabe à acusação provar a culpabilidade dos réus foi para os confins do sistema jurídico. O de que a ausência de provas e a presença de dúvidas ensejam a absolvição dos réus, idem. O do juiz natural e do duplo grau de jurisdição evaporou-se. Nesta encenação de julgamento, o supremo tribunal federal cruzou o Rubicão.

Porém, depois de passado o rio inviolável, o pior vem: o saque da cidade em que não estacionavam Legiões. Primeiramente, o tribunal que estabeleceu sólida jurisprudência contra a prisão antes da sentença definitiva ensaiou o autoritarismo de prender os réus antes do trânsito em julgado. Apenas impediu essa aberração de consumar-se a falta de habilidade do acusador geral, que tentou manobra infame até para quem à infâmia acostumado.

Depois, a pior violação ao sistema inaugurado e aparentemente regido pela constituição de 1988: a pretensão do supremo tribunal federal de cassar mandatos parlamentares de réus condenados. Aqui, servem-se da confusão de duas situações distintas.

No Brasil, há um anacronismo que é a justiça eleitoral. Ela julga a existência de partidos políticos, recebe pedidos de candidaturas, procede aos registros, analisa-as, julga-as, conta os votos, concede diplomas aos eleitos, nega diplomação aos que descumprem requisitos. Pode ocorrer que algum agente político eleito venha a perder o mandato popular porque a justiça reputou ausentes os requisitos para a elegibilidade e o julgamento final deu-se após a posse.

A perda do mandato, nestes casos, não decorre de cassação, mas de constatação de irregularidade prévia da situação do eleito e empossado. Aqui, quer-se dizer que o eleito não poderia nem mesmo ter disputado votos legitimamente. Trata-se de incapacidade política por fatos anteriores à eleição, constatados definitivamente pela justiça eleitoral após a consumação da eleição e da posse.

O direito brasileiro não conhece a cassação judicial de mandato eletivo de quem foi eleito legitimamente. Quem cassa um parlamentar é a casa legislativa a que ele vincula-se, somente. Trata-se de previsão constitucional expressa e sem ambiguidades, que se encontra no artigo 55.

Se um deputado federal ou senador da república é condenado criminalmente cabe à casa legislativa respectiva abrir processo de cassação de mandato por falta de decorro parlamentar, porque o mandato conferido pelo povo só pode ser retirado por seus representantes.