Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: abril 2013

Bacalhau de forno, com batatas, alhos e cebola.

Não falo dos erros nas aventuras culinárias de finais de semana, por razões claras. Seria desonesto escrever sobre um prato que deu errado, embora não seja desonesto escrever por escrever, como se faz um exercício, sobre o que resultou saboroso.

Os dois últimos bacalhaus não chegaram ao desastre, mas resultaram ruins. Uma vez, o sal foi-se embora todo, outra ficou em demasia. Outra, ainda, resultou em batatas mal cozidas, algo realmente desagradável ao paladar.

Mas, algo simples como bacalhau com quase todos os úteis ao forno é de se acertar um dia. Hoje, resultou espetacular, o bacalhau dessalgado na medida certa, com pouco menos que 24 horas de molho em água trocada somente duas vezes, as batatas na medida correta de cocção.

Comprei bacalhau em lascas, o que significa que o peixe é um pouco mais que ordinário, porque o bom compra-se em lombos ou postas. Mas, para o propósito de cozê-lo ao forno com bastante azeite de qualidade, cebolas, alhos, cebolinhas e batatas, até que serve.

Não lembro quanto tempo deixei as batatas na água fervente, mas fiquei a provar sua maciez com uma faca e retirei-as da panela no ponto certo para fatiá-las e submetê-las a mais trinta minutos de forno a médio lume.

Deitei as lascas de bacalhau dessalgado numa piscina de azeite, pelo que saiu de um banho de água para um de olívico óleo. O azeite impregna o bacalhau mesmo que o banhe apenas por duas horas. Na assadeira em que estavam o peixe e o azeite pus alecrim e algumas folhas de louro. Surpreendente é que pus na quantidade certa, ou seja, pouco.

Alecrim não é como alho e cebolinha, que muito dificilmente são muitos em qualquer quantidade, então convém ter atenção. Os que podem abundar, abundaram: dois molhos de cebolinha cortados em rodelinhas e dez dentes de alho inteiros e uma só cebola cortada de forma caótica. Depois, as batatas cortadas em rodelas, com casca ou sem ela, na medida da vontade das cascas de se soltarem ou não.

Assadeira ao forno médio por poucos trinta minutos; arroz branco e, heresia, vinho tinto argentino.

Brasil: República que não é, democracia sem povo e estado sem direito.

A história do Brasil teve poucos momentos de poder político efetivamente escolhido democraticamente. O que se chama democracia representativa – abstraindo-se seu caráter meramente formal – vigorou de 1946 a 1964 e, depois, de 1989 até o presente.

Não incluo a república velha porque aquilo não era propriamente democracia, dadas as barreiras a impedirem a capacidade eleitoral ativa. Muito pouca gente votava, eis a questão.

Observa-se, nestes dois períodos democráticos, uma viragem muito interessante dos escolhidos para atenderem a interesses da maioria dos escolhedores. Essas eleições no sentido de se beneficiar número maior de pessoas não significaram necessariamente escolhas à esquerda. Significaram, basicamente, escolhas a rejeitarem duas coisas: o entreguismo e o rentismo.

Nenhum presidente brasileiro nos dezoito anos antes do golpe de 1964 e nestes vinte e quatro depois de 1989 foi de esquerda, no sentido próprio de fazer drástica redução da desigualdade na apropriação das riquezas produzidas. Por outro lado, nenhum, à exceção de Fernando Henrique Cardoso, foi entreguista, nem mesmo Jânio ou Collor, talvez por lhes ter faltado tempo.

Todavia, o pouco que se experimentou de democracia formal nestes dois períodos foi suficiente para revelar sistema profundamente desfuncional. A democracia, por pouco de ameaça que represente aos poderes reais numa sociedade massificada, sempre foi assumida pelo 01% como algo terrível. E, por outro lado, sempre teve significados cambiantes para os estratos médios que vivem das migalhas do 01% e têm tempo para se desinstruir cotidianamente.

Tanto a tenacidade, quanto o êxito obtido por este esforço do 01% são coisas merecedoras de estudo, no caso brasileiro. Claro que parte do êxito de termos democracia deformada advem dela ter sido desenhada com pontos de fuga sob medida para se evitarem seus aperfeiçoamentos e manutenção. O modelo jurídico do estado brasileiro é essencialmente anti-democrático mas com eleições.

Dois fenômenos, cada um capitaneado por certo grupo de interesses, anunciam a erosão que pode levar à ruína do que nasceu para viver pouco. De um lado, dentro do próprio estado, há corporações que não dão contas a ninguém, agem em benefício próprio e dos seus mandatários e detém poder formal e material. São as magistraturas judicial e do ministério público, entidades destituídas de legitimidade democrática que agem em clara exorbitância de seus poderes.

Essas corporações são representantes do conservantismo, papel que desempenham até desinteressadamente em alguns casos, por inércia mesmo, isso que de tão importante é reiteradamente negado. Existe inércia social, assim como existe acaso, imprevisão e impossibilidade de controle.

Além dos componentes destas corporações serem recrutados maioritariamente nas classes médias-altas, eles sentem-se devedores de ninguém, porque ignoram que nascer em certo estrato, numa sociedade profundamente desigual, já é dever a todos os demais, acima e abaixo. É interesaante notar que a dinâmica corporativa estatal é tão forte que um e outro egresso de classes mais baixas rapidamente torna-se mais conservador que o conservadorismo, no que ajudam muito o desejo de disfarçar-se e de mostrar-se mais realista que o rei.

Numa democracia formal, em que poderes legislativo e executivo são eleitos por sufrágio semi-universal e que proclama princípio de igualdade ante a lei, ser conservador é precisamente negar aplicação às leis, conforme caprichos mal explicados e momentâneos: precisamente o que se tem visto fazerem o judicial e o ministério público, no Brasil.

A resistência do 01% e de partes das classes médias volta-se contra o império da lei em sentidos formal e material e contra o princípio de igualdade de todos em face da lei. Obviamente, seus instrumentos para violar os dois princípios são as corporações que lidam com aplicação de leis, que se convertem em fazedores de leis caso a caso. Aparente paradoxo…

Fosse o Brasil sociedade com mais que meros quinhentos anos de história, a violação das regras por quem as deve aplicar assustaria as pessoas. Fôssemos mais honestos e menos hipócritas, defenderíamos ditadura aberta, a rejeitar os disfarces e a farsa dos poderes contidos em limites bem delimitados. Mas, somos o que somos, uma sociedade que percebeu mais que em qualquer outra parte a utilidade da mentira.

Daí que temos textos a dizerem haver poders harmônicos e com atribuições específicas, quando na verdade há sistema com pontos de escape muito bem estabelecidos para violar-se a democracia sob aparência de a exercer.

De outra banda, a erosão da democracia formal advem de manifestações que supostamente a realizam à letra. Grupos que à origem nada têm a ver com política entram no jogo político a tentar moldá-lo aos seus preconceitos morais e religiosos. Subvertem o jogo democrático porque instilam no debate público coisas que somente se relacionam com o privado.

O privado somente interessa ao público no que tange a defender liberdades fundamentais que não devem ser sacrificadas a bem de supostos interesses maiores. A entrada no jogo político de grupos cristãos organizados em torno a regras de cunho religioso subverte a essencia do estado de direito que protege o indivíduo desse tipo de prescrição a que somente se adere por vontade própria.

O estado supostamente defende as liberdades de culto, de ir e vir, de casar-se ou não e com quem se quiser, de trasladar patrimônio, de não pagar tributos para subvencionar cultos religiosos, enfim, um plexo mínimo de coisas com que a maioria pode estar de acordo. Ao entrar em cena a pressão política organizada dos cristão, o jogo sai das regras porque as opções condicionam-se por variáveis que não se podem considerar comuns a todos.

Com relação a liberdades civis, o debate tende a tornar-se o mais estúpido possível e percebe-se a insinuação da similitude do religioso ao científico. Essa similitude existe e evidencia que ambos devem ser rejeitados. Não se cuida de religião nem de ciência quando o estado garante às pessoas que se unam a partir de um contrato que prevê várias coisas, entre elas a divisão e a transmissão de patrimônio: cuida-se da liberdade de unir-se e nisso não importam religião nem ciência.

É claro que o avanço político dos grupos de pressão cristãos no Brasil é questão de poder. As religiosidades de matriz greco-judáicas são todas bem talhadas para o jogo de poder, porque são normativas e esquematizadas na lógica do código e do tribunal. Poucas coisas são mais parecidas que uma religião greco-judáica e um qualquer poder judicial. No mundo inspirado pela tragédia do encontro de semitas e gregos, o direito e a religião são faces de um mesmo plano.

Obviedade: a tolice é terrível e profundamente cansativa. Mas, o mundo é dos tolos.

O mundo é dos tolos ou, talvez melhor dizendo, das tolices. É conclusão desagradável, mas seria desonesto chegar a ela e não no dizer.

A tolice mais agressiva com que me deparo é aquela de tomar a parte pelo todo e pensar por associações primárias de coisas que não se implicam necessariamente. Não foi à toa que Ortega y Gasset disse ser mais difícil dissociar idéias que as associar. É mesmo, porque dissociar implica pensar, ao passo que as associações fazem-se arbitrariamente segundo esquemas de pressuposições improváveis.

Lembremos, por exemplo, que se deu às massas o seguinte esquema: Fulano consome substâncias ilícitas; quem consome tais substâncias é inclinado ao delito; logo Fulano é inclinado ao delito. O silogismo é perfeito, mas as premissas não têm qualquer coisa de provável.

No exemplo precedente podem-se perceber várias ausências de significação. O consumo de substâncias legais e ilegais pode levar ao delito; pode-se delinquir independetemente do consumo de qualquer coisa; pode-se delinquir por necessidade, mais que por inclinação. A premissa vai de improvável a absurda, a depender do grau de lucidez a acuidade de quem a analisa.

É fácil associar porque as falsas relações estão dadas, mais que por manipulação das premissas. Trata-se da oferta de uma ementa pre-estabelecida de relações que trazem sua validade implícita, ou seja, de uma grande petição de princípios.

Por exemplo, se eu digo que não gosto de basquetebol o tolo perfeito acha que não gosto de esportes em geral, porque ele toma a parte pelo todo e é escravo da obrigação de dizer – ou sinceramente crer – que gosta de todos os esportes, como se fossem uma coisa única e sem distinções. Ao tolo perfeito foi dada a obrigação de associar automaticamente o gostar de esportes ao gostar de todos os esportes, mesmo que não goste desse ou daquele.

Quando a tolice associativa chega ao terreno minado da religiosidade o perigo é grande. Aqui, estamos na ante-sala do acendimento das fogueiras, sempre pelos motivos mais justos. A massa queima quem ela não compreende. Principia a queimar com as chamas suaves das palavras simplesmente imbecis e finda por fazê-lo em termos físicos.

A ameaça ao homem-massa – o perfeito tolo –  provém não apenas de quem pense, mas de quem não se possa apreender nos poucos modelos associativos de que ele dispõe. Disseram ao perfeito homem-massa que há fórmulas a serem ditas pelos que são como ele; logo, quem as não disser é diferente. Pelo modelo associativo recebido, não repetir as fórmulas é causa de exclusão, portanto dá-lhe um rótulo, que é a primeira tentativa de exclusão.

A segunda exclusão tarda pouco e é física. O tolo triunfará, isso é um axioma.