Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: julho 2013

O assalto corporativo-burocrático ao Estado e as perspectivas com uma viragem à direita.

No Brasil, desde que ele existe, o Estado sempre foi instrumento do grande capital e das camadas médias. Prestou-se à drenagem das riquezas da maioria, para transferi-las à minoria, ou seja, foi apropriado como instrumento de concentração de propriedade e de rendimentos.

Para o grande capital, o Estado é quase um prolongamento de empresas que negam frontalmente idealismos pueris como a livre iniciativa, a livre concorrência, o predomínio dos mais aptos, o perecimento dos piores e, suma incoerência, o Estado eliminou o risco das iniciativas do grande capital. É bom esclarecer que a expressão grande capital é aqui usada no sentido próprio e sem as ambiguidades que no Brasil chegaram a ter expressões inequívocas como exclusiva ou máximo.

O grande capital nunca perde realmente. No máximo, reduz-se um pouco a velocidade de sua acumulação e isso basta para que se ponha em marcha a convocação dos explorados por ele para trabalharem a favor dele. Recentemente, ele convocou as classes médias, que vivem das migalhas a caírem de sua mesa, a comandarem uma viragem à direta, ou seja, a pedirem a volta da concentração, mesmo que isso seja ruim para as próprias classes médias.

As classes médias perceberam que lhes convém estruturarem-se em corporações e defenderem interesses de grupos como se fossem coletivos. Assim, elas tomaram conta, por exemplo e principalmente, da burocracia estatal, que existe em função de si mesma e não da prestação dos serviços que teoricamente deve oferecer. Isso explica porque os serviços públicos são ruins.

Os serviços que tiverem opções privadas a que os burocratas possam recorrer serão invariavelmente ruins, porque a burocracia existe para que haja burocratas. Parece excesso de auto-referência, mas olhando-se com calma percebe-se que nada será excessivamente predador e auto-referente para esse grupo.

A lógica disso deve muito ao modelo ateniense, sempre lembrado e sempre incensado sem que se diga como e porque funcionava. Atenas foi, em certo momento, democracia modelar, quase perfeita, porque funcionava para 10% da população. Esta democracia formal precisa de elevada percentagem de excluídos, seja por escravidão, seja por gênero, seja por patrimônio.

A nossa democracia, para os interesses do grande capital e das classes médias, precisa exatamente do mesmo que Atenas: tem que implicar na participação efetiva no processo decisório de no máximo 15% da população. Além disso, ou o processo sai do controle dos dominadores ou a coisa toda marcha para tornar-se outra. Então, em dados momentos, é preciso que tudo aparentemente mude, para que se mantenha igual. Mas, isso vale como regra para o 01% e não se estende necessariamente para as corporações pequeno-burguesas que vivem das maiores migalhas.

A maior cegueira das corporações pequeno-burguesas é não perceberem a fragilidade ou mesmo inexistência do vínculo de solidariedade com o grande capital. Esquecem-se que com escravos mais frágeis são precisos menos feitores numa fazenda.

Com mais uma volta no parafuso da concentração de riquezas, será menos necessária a manutenção de corporações a predarem o Estado, porque os escravos estarão mais frágeis e será menos necessária uma classe intermédia a amortecer tensões e fazer o trabalho sujo. Mas, é próprio das corporações pequeno-burguesas, notadamente das que vivem direta e adjacentemente ao Estado exagerarem sua importância e passarem a acreditar que seus papéis formais são materiais.

Não é para que se distribua justiça, nem para que haja acesso amplo à saúde que o grande capital consente que haja milhões de pequenos-burgueses a ganharem muito por trabalhos que rendem pouco ao todo. Nem é para que julguem contra o grande capital, nem para que prestem saúde pública com o dinheiro apurado com os impostos cobrados ao grande capital. É para que exista e defenda os patrões, só isso.

Seria sábio, se sabedoria houvesse, que o médio classista típico percebesse que não há, nas duas pontas do espectro, nenhum sentido no Estado pagar, com dinheiro saqueado aos mais pobres, salários de 10.000 euros a médicos, juízes, promotores, advogados, fiscais e outros burocratas mais. Isso, para o grande capital, é um estorvo, porque ele próprio poderia ficar com esse dinheiro, e para a maioria um desconhecimento, porque afinal não sabe quanto custa a pequena-burguesia nem sabe precisamente que ela vive às custas dele povo.

Seria sábio levar mais a sério as bobagens que são as normas criadas pela própria burocracia estatal, inspiradas no seu moralismo, que nada mais é que a face visível da sua hipocrisia e do seu instinto de permanência. Se se portasse ao menos conforme aos disfarces postos por ela própria, talvez mais êxito tivesse na sua manutenção, mas, ao contrário, trabalha para facilitar sua própria degradação, quando isso convier aos patrões.

No Brasil, o moralismo de ocasião levou a que se fizessem leis que definiriam limites aos saques ao tesouro estatal. Se estas regras fossem respeitadas, isso não evitaria o aniquilamento da pequena-burguesia estatal, mas lhe daria alguma chance de resistência, quando o grande capital resolvesse que a festa já ia longe. Todavia, foram feitas e violadas desde o nascimento, num espetáculo de falta de honra digno de nota até onde escasseiam traços de honradez.

Inventou-se um limite remuneratório para os que recebem do Estado e esse limite foi continuamente violado desde a criação, sob os mais pueris argumentos formais. Inventou-se a deidade e a concepção imaculada do poder judicial e da magistratura do ministério público, que zelariam pelas declarações de boas-intenções que se encontram na constituição e nas leis. E eles fizeram pouco mais que custar obscenamente ao tesouro, sem dar contas de seus gastos.

Inventou-se a ciência tão perfeita, quase revelação divina, que receberam os integrantes da corporação médica, de tal forma que é impossível contrapor ao discurso destes filhos de Zeus qualquer coisa, pois de todas as coisas eles possuem a verdade final. E possuem, principalmente, a capacidade de ditarem os preços dos seus préstimos voluntários, porque afinal há mais a precisarem que a ofertarem.

Inventou-se que todo um grupo de pequenos-burgueses era bom, essencialmente bom, probo, capaz, produtivo e outras valorações mais do repertório da moralidade plebéia, só porque nasceram na classe em que nasceram e ocuparam os empregos que sempre estiveram às suas disposições. E essa invenção aproximou da divindade o subgrupo dos que ingressaram na burocracia estatal porque foram aprovados em testes de suficiência técnica e capacidade de detectar capciosidades em perguntas iniciadas por negativas.

Essa gente acreditou que está onde está porque deve ser assim e porque haveria inabalável aliança com o grande capital. Todavia, o grande capital não tem qualquer dificuldade em romper esta frágil aliança, principalmente quando a pequena-burguesia tem conduta tão próxima à dos escravos.

Na história bem recente do Brasil, há dois exemplos interessantíssimos dos efeitos da viragem à direita. Um, súbito e esquizofrênico, foi estancado porque era tão confuso que atrapalhou a vida do grande capital, como efeito lateral, porque não visava a isto. O outro, organizado e sistemático, com apoio da imprensa, quase destrói o pouco de serviço público que havia e o muito de burocracia estatal que sempre houve.

Fernando Collor de Mello chegou ao governo como as Erínias a Orestes. Ele teria liquidado tudo, burocracia estatal pequeno-burguesa e inclusive um e outro pedaço do grande capital. A fúria revelava muita força e até a grandeza que não se deve negar aos loucos, mais que a patifaria que o grande capital marcou como própria dele. Fato é que não servia, nem à pequena-burguesia, instalada direta ou indiretamente no Estado, nem ao grande capital. Foi preciso afastá-lo, depois de criar comoção moralista por nada.

Fernando Henrique Cardoso chegou como Odisseu de volta à casa e agiu como Odisseu com os pretendentes de Penélope. Quase destrói as corporações pequeno-buguesas que ocupam a burocracia estatal e teria levado a tarefa a cabo se houvesse tempo hábil. A grande finalidade não era especificamente a aniquilação da classe média a soldo do Estado, senão que era vender serviços e patrimônio estatal ao grande capital, mas uma coisa trouxe a outra e isso agradou aos patrões.

Esses dois ocupantes do governo apresentaram-se ao público como veículos da novidade e da moralidade e nunca deixaram muito claro para as classes médias viventes do Estado que suas propostas implicavam a aniquilação ao menos parcial delas, até porque os patrões delas não precisam de escravos que ganhem mais que a maioria dos escravos.

Novamente, apresentam-se propostas que não vão além de retornar à crescente concentração de rendas e novamente as classes médias em geral e em particular a burocracia estatal apoia estas propostas com sinceridade comovente. É própria da classe média brasileira a sinceridade que namora a hipocrisia e segue de mãos dadas até ao cadafalso ou até o átrio da mansão, conforme a sístole ou diástole histórica.

Será, de qualquer forma, interessante ver essa gente no próximo influxo da queda de migalhas da mesa do grande capital, desassistida pelo Estado, ávida em manter o discurso mesmo à medida em que recuam os rendimentos, ávida em justificar o novo agente do patrão, mesmo que ele seja um tantinho distante.

A maior conquista dos ladrões é tornar o público moralista.

Ninguém se lembra, evidentemente, por questões cronológicas, mas alguns conhecem o episódio. Dos maiores golpes de enriquecimento ilícito e corrupção generalizada da história recente foi a lei seca nos Estados Unidos da América. A partir de um surto de moralismo destituído de quaisquer razões, criou-se esquema que enriqueceu vários grupos mafiosos e vasta porção dos agentes do Estado.

Proibir o que muitos querem é o caminho mais curto para aumentar a oferta do proibido, a custos maiores e qualidade menor, e para gerar lucros enormes para os vendedores de coisas ruins que não pagam impostos. Tem a vantagem adicional de gerar renda para os fiscais da lei, que recebem para não fiscalizarem o que, de resto, seria praticamente infiscalizável.

O exemplo da lei seca dos EUA nos princípios do século XX não se aparenta muito a coisas a se tratarem de passagem aqui, exceto pelo moralismo que foi seu motivo determinante.

O moralismo é aquilo que a plebe – não se trata de uma questão de dinheiro, sempre é bom dizê-lo – usa. Não conhecendo honra, vai com moralismo. Achando rigoroso demais algo que supostamente é geral e abstrato, como a lei, vai de moralismo. Tendo sido instruída para achar que não há escolhas políticas e econômicas, vai de moralismo.

Hoje, nesta obra de Satanás que é a sociedade brasileira, o mais deformado e longevo esquema de rapinagem e dissimulação que já se dispôs, o moralismo tornou-se motivo primeiro de tudo e ponto central de discussão. Chegamos ao ponto de um lugar-comum ter-se tornado mais que comum: sempre se fala que algum fulano é do bem ou não é. Nem Jó foi alvo de experimentos assim tão avançados, deve-se convir.

Sabe-se de saber sabido – e perguntar de fontes e origens é entrar no argumento em círculos – que certo grupo, componente maioritário de certo partido político, praticou os maiores assaltos aos cofres públicos do país, nos últimos cem anos. A brincadeira foi muito além do contratar obras e serviços mais caros que a realidade e receber uma gorjeta do contratado.

Tratou-se de vender serviços públicos – e não somente as concessões para prestá-los – de vender empresas públicas a preços baixíssimos e com financiamentos amistosos de bancos públicos. A brincadeira foi muito bem feita e implicou, também, na assunção prévia pelo vendedor de vários custos que poderiam ser incômodos para os compradores.

Há um caso muito bonito e revelador: o Estado do Rio de Janeiro tinha um banco. Particularmente, não acho que Estados federados precisem ter bancos, mas se os forem vender, convinha que fosse uma venda mesmo. Pois bem, o banco do Rio, antes de ser vendido, demitiu metade dos funcionários e o Estado do Rio custeou o alto preço destas demissões. Achou pouco o Estado do Rio, vendedor, e assumiu todo o passivo previdenciário dos reformados do banco e, ao final, vendeu-o por alguns trocados ao virtuoso Itaú.

É prazeroso, para o que escreve estas linhas, conversar com liberais defensores de privatizações bem alfabetizados. Mas, direitista bem alfabetizado, assim como esquerdista, é coisa rara e ficamos na infeliz situação de poder conversar pouco, o que é lastimável. O caso é que não há, conceitualmente, com relação à maioria das atividades, quaisquer problemas em passá-las à iniciativa privada e fiscalizar a prestação dos serviços.

Não é recomendável, por outro lado, passar algumas atividades para a iniciativa privada porque implica simplesmente renúncia à soberania e ao poder de decisão. É o caso de pelo menos um banco e de uma companhia de exploração de petróleo.

Problema há em entregar a troco de quase nada muita coisa de valor bem tangível e em setores que poderiam ter boas prestações de serviços desde que se investisse costumeiramente o que se investe antes das vendas. No Brasil, sem mais, não se fizeram privatizações de serviços públicos que são prestados por particulares, cometeram-se crimes e há evidências de subornos imensos.

Há pouco, tornou-se notícia aquilo que já se sabia mas não chegava ao grande número porque os veículos que servem à instrução do grande número trabalham para os beneficiários do esquema fraudulento. Um certo partido político, num certo Estado da federação, recebia subornos constantes das grandes fornecedoras de trens Alstom e Siemens, francesa e alemã, respectivamente.

Quem disse ter havido uma drenagem de aproximadamente cinquenta milhões de dólares norte-americanos do Estado de São Paulo para subornos aos gestores deste Estado foi um dirigente da Siemens, que recebia mais que o devido e devolvia aos imaculados gestores paulistas. O funcionário da Siemens detalhou o esquema dos subornos pagos aos homens de bem, mas nada disso virou notícia ou processo judicial ou investigação do imaculado ministério público.

A seletividade da imprensa majoritária é algo fundamental na criação desta histeria moralizante que se esquece dos maiores assaltos ao Estado brasileiro. Esta imprensa fala para as classes médias, sejam baixas, médias ou altas e o que diz é recebido como verdade absoluta, precisamente porque é vertido nas tintas moralizantes que consistem no básico do pensar médio-classista.

Tanto são eloquentes as acusações aos opositores da imprensa, quanto o silêncio quanto a tudo a envolver certos partidos e certas figuras que contam com a simpatia da imprensa. No meio disto, no meio deste jogo de propaganda mal disfarçada em jornalismo, está o público essencialmente médio-classista, essencialmente inclinado ao linchamento, essencialmente conservador, essencialmente incapaz de reconhecer o quanto não é merecedor do que tem, essencialmente disposto a por o dedo na cara do vizinho por exatamente o que ele faz.

Tornando-se moralista o público, especialmente o médio-classista, o terreno encontra-se arado para semear-se a inquisição de mão única, aquela que levará à fogueira inclusive muitos acendedores de fogueiras. Encontra-se pronto o terreno para a ignorância generalizada da real oposição importante, aquela entre mais ou menos concentração de rendimentos.

Tudo gira à volta da moralidade e os maiores ladrões, os maiores violadores desta moralidade cambiante de botequim, serão os mestres de cerimônia do julgamento de quem faz ou não faz exatamente o que eles mestres de cerimônia fazem à exaustão.

A senzala defende a casa-grande.

O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.

Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.

Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.

É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…

Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.

A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.

Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.

Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.

O bolsa imposto de renda da classe média é maior que o bolsa família dos paupérrimos.

O ponto central da histeria das classes médias contra as políticas de rendimentos mínimos é o Programa Bolsa Família. Oito em dez médio classistas que se instruem em Veja, Globo, Folha e Estadão repetem o mantra que receberam desses meios, de que isso é um absurdo, que estimula as pessoas à preguiça e outras tolices deste tipo.

Mais recentemente, os meios em questão resolveram fazer seus repetidores veículos de uma tolice ainda mais tola. A nova moda do perfeito repetidor do que recebe sem pensar é defender que beneficiários de programas de renda mínima, por serem dinheiros do Estado, não poderiam votar!

Essa extravagante proposição, se levada a sério, conduziria ao impedimento da maioria deste país comparecer às urnas, porque todo mundo é sócio do Estado, embora só os pobres devam, aos olhos da imprensa e de seus repetidores, ser excluídos da democracia.

O Bolsa Família é um programa destinado a garantir renda mínima para famílias que tenham renda mensal por pessoa de menos de R$ 140,00 e crianças de zero a quinze anos.

Ou seja, uma família de quatro pessoas que tenha renda mensal inferior a R$ 560,00 é elegível para receber o benefício. Para se ter parâmetro de comparação, um salário-mínimo no Brasil é de R$ 678,00. Conclui-se, inicialmente e fora de dúvidas ou sofismas, que o programa destina-se aos muito pobres mesmo.

Para estas famílias em extrema pobreza é concedido o Benefício Básico, no valor de R$ 70,00 – o que é jantar para dois médio classistas que só bebam água e gostem de pizza, em São Paulo, por exemplo.

Além do benefício básico de R$ 70,00 para a família, há o Benefício Variável, que será concedido se a renda mensal por pessoa for inferior a R$ 140,00 e se houver crianças entre 0 e 15 anos, um benefício de R$ 32,00, até um máximo de cinco por família.

Enfim, uma família de quatro pessoas, com renda pessoal inferior a R$ 140,00 e com duas crianças menores de 15 anos, auferirá, globalmente, o enorme valor de R$ 198,00, composto de: R$ 70,00 + 4 x R$ 32,00 = R$ 198,00.

Para se comparar com esse irrisório valor, que não leva qualquer pessoa à preguiça e não deveria levar qualquer pessoa honesta e minimamente inteligente a repetir as tolices da imprensa, temos que um médio classista deduz, mensalmente, do que pagará de imposto de renda, R$ 180,00 por dependente que tenha.

Se a família médio classista da comparação tiver dois dependentes – e neste caso até aos dezoito anos e não os quinze – a dedução mensal  no imposto de renda será de R$ 360,00, o que supera o maior valor que alguma família extremamente pobre pode receber a título de bolsa família, que são R$ 306,00.

Essa breve comparação aponta que a histeria contra os programas de renda mínima deve-se primordialmente a demofobia.

Os demais pseudo-argumentos laterais revelam, por sua vez, a profunda hipocrisia e espírito de predação das classes mais altas brasileiras, porque sempre ávidas em acusar qualquer redistribuição de renda, por tímida que seja, realizada pelo Estado, enquanto todos são sócios do Estado em muito maior proporção que os mais pobres.

Joaquim Barbosa estará seguindo a trilha do Dr. Fausto?

Fora do âmbito da física, e talvez pudesse dizer das ciências naturais, não há leis invioláveis, para desgosto dos que acreditam em ciências humanas. Esses coitados crentes tomaram o termo ciência como algo divino. Fora do âmbito da física, tudo é violável, apenas implica alguma sanção, seja social, seja jurídica.

A única lei inviolável não física é aquela a prescrever que a venda da alma ao Príncipe do Mundo não permite violar a obrigação de entregá-la. Se fosse mais selenita e cultuasse o termo natureza, buscaria sisificamente perceber e dizer e fazer a taxonomia desta lei inviolável, mas é algo para além das minhas possibilidades e da minha preguiça.

Fato é que quem vende a alma deve entregá-la, o que implica dizer que deve entregar-se integralmente em troca do que quimericamente era liberdade, por pecúnia ou por conhecimento ou pelo preço mais alto: celebridade, que pode resultar das duas primeiras, ou não.

É mais fácil comprar com dinheiro que com sedução. Mas, a primeira transação é mais instável e a segunda mais vinculante, a despeito de todos os lugares-comuns em contrário. Quem se dá por sedução, dá-se mais que se o fizesse por dinheiro.

Tenho profundo receio e desconfiança comigo mesmo quando me aproximo de supor a tolice, a falta de sagacidade de alguém. Isso, porque as pessoas costumam ser incultas, ignorantes e desonradas, mas raramente falta-lhes a sagacidade que vê o benefício imediato e o extrapola para longo prazo sem nada que permitisse tal projeção.

Pois cheguei a supor que o juiz do supremo tribunal federal Joaquim Barbosa fosse meio tolo, para além de fragmentariamente moralista. Recuei dessa suposição e fiquei-me apenas pela imaginação de que era um vaidoso extremado imbuído de espírito de cruzada.

Volto a crer na tolice do juiz, no sentido de ficar-se pela sagacidade imediata. E continuo a perceber-lhe uma vaidade oceânica, o que permitiu seu pacto com máfia a supor que este pacto não se celebrava e que ele era celebrado pelo que ele achava em si admirável.

A máfia não acha em que coopta nada de admirável, senão vê utilidades. E, filha ou irmã do Príncipe do Mundo, sabe que atua no âmbito da lei inviolável. Quem se lhe alia não se afasta dela: é impossível.

A cruzada de Barbosa, que restauraria uma moralidade perdida – convém apontar que legalidade seria inadequado de usar embora adequado de ter sido a finalidade – tenderia a atingir a todos, indistintamente. Pelos primeiros movimentos da degradação em praça pública dos inimigos da imprensa brasileira, Barbosa recebeu o preço que não pediu mas gostou.

O homem tornou-se o justiceiro inabalável, lançado inclusive a uma quimérica disputa presidencial. E ele acreditou nisso e deixou-se enredar pelas teias amplas da sedução mefistofélica. Eis Barbosa em eventos de uma certa rede de televisão e media em geral. Eis o justiceiro em fotografias com apresentadores desta mesma rede. Ei-lo a brindar com sua presença o espaço privado desta rede no estádio em que se disputou a partida final da Copa das Confederações.

Eis, por outro lado, que o homem insinua a continuação da cruzada antes empreendida contra os inimigos dos seus incensadores, desta feita contra pessoas de estima in pectoris da mesma imprensa. A partir da percepção deste risco advindo de tão instável personagem, surge a necessidade de avisar-lhe dos riscos e esperar que perceba os avisos.

Quem não se deixa cooptar imediatamente por dinheiro privado, enquanto dá-se integralmente em troca da sedução que afaga a vaidade, geralmente reputa merecidas todas as somas que recebe em licitude aparente do Estado. Recebe também benefícios aberrantes do Estado, por mais que formalmente se possa dizê-los lícitos.

Essas coisinhas lícitas são tão desproporcionais ao que é necessário pelo desempenho de um cargo, por mais elevado que seja, que a massa – classes médias – os receberá com o mesmo escândalo gerado por todos os escândalos, reais ou imaginários, desde que a imprensa conduza a isto.

O termo é pesado, mas é óbvio que o ungido Barbosa é e será chantageado pelos que o ungiram ou o fizeram ao menos ter crido ser ungido, não apenas da imprensa como de um povo todo.

Como fará para não entregar o que pactou, sabendo ou não?

A corporação jurídica sequestrou o sistema de resolução de conflitos.

O primeiro sequestro – e talvez o mais grave – foi do termo justiça. A corporação jurídica, com suas origens nítidas nas castas sacerdotais levitas, apropriou-se de uma palavra que sempre remete a muito mais que as simples operações envolvidas na solução de conflitos entre partes.

Justiça, assim sem mais explicações ou considerações sobre significação construída historicamente, faz pensar em absolutos, em resultados emanados de alguma intermediação com o divino. O termo é dos mais equívocos disponíveis e a escolha foi inteligentíssima pela corporação: O que são operações de adequação de fatos a moldes legais e, outras vezes, manifestações de puro capricho e voluntarismo, tornou-se o dito final: justiça.

A reserva de atuação de certas corporações de ofícios gera problemas imensos quando o desempenho destes ofícios sai da esfera puramente privada e torna-se em serviço público. Sequestrado pela corporação, o que deveria ser um serviço passa a ser oportunidade da corporação fazê-lo sob medida para atender apenas a seus interesses, ou primariamente a estes e secundariamente a todo o restante.

No Brasil, como na maioria dos países, as funções de solicitar, defender, acusar e decidir são reservadas aos graduados em direito e algumas exigem também aprovação no exame de suficiência para a advocacia. Nada disso, vistas as coisas de longe, assegura o efeito mágico sempre invocado: qualidade.

Assim é porque o exame afere o que foi desenhado para ser aferido e isso, circunstância e histórico como é, nunca poderá ser um absoluto atemporal. Hoje, para ser mais específico, o famoso exame de ordem dos advogados, assim como os exames de suficiência técnica para cargos públicos, não passam de testes de sagacidade e conhecimento dos modismos mais recentes.

É recomendável que assuntos criminais e outros relacionados a penalização tenham defesas técnicas, tamanhas são as possibilidades de erros formais que dificilmente seriam percebidos pelo acusado. Semelhantemente, causas privadas entre partes de grande capacidade econômica tendem a demandar solicitadores e defensores com alguma técnica, até porque muito será explicado aos julgadores.

A exclusividade do solicitador autorizado pela corporação de ofício justifica-se e recomenda-se numa porção muito pequena dos casos, se virmos a coisa sob a ótica do interesse do solicitante, que raras vezes precisa mesmo de ajuda técnica. Conclui-se que em grande parte é nada mais que reserva de mercado.

Realmente, a enorme maioria das causas a entupirem os tribunais brasileiros envolve o Estado como réu e não apresentam grande complexidade. Quando o Estado é réu é impossível ignorar que o poder judicial entra em cena como instâncias superposta de revisão de decisões administrativas, por menos que isso soe simpático à corporação.

Alguém pede, por exemplo, aposentadoria ao instituto público e tem o pedido negado. Irá ao judicial, depois, repropor a mesma solicitação, talvez com os mesmos documentos. O primeiro pedido não implicou solicitação técnica, apenas preenchimento deste e daquele formulário e apresentação de um e outro documento.

O judicial decidira a partir das mesmas coisas que o postulante dissera nos formulários e a partir de algum documento mais que imporá ao instituto previdenciário que apresente no processo. O que se conclui, por escandaloso que possa parecer, é que se tem a superposição de duas estruturas e, pior, a geração de trabalho simples e de ganho quase certo para solicitadores. Tudo, convém não esquecer, custeado ao final pelo mesmíssimo Estado.

Ou seja, causas de pouca complexidade e enormes volumes deveriam ser propostas sem necessidade de solicitador técnico corporativo, porque o poder judicial, no final das contas, as decide independentemente do que tenham argumentado os solicitadores e os defensores do Estado. A decisão judicial, como quase toda opinião, já está pronta, à espera somente de algum ajuste aqui e acolá.

O que se chama defesa técnica, na enorme maioria dos casos, não passa de um texto pre-fabricado que não será lido. Importantes são informações que as partes podem trazer para o processo e o Estado sempre assume esse ônus quando as detém.

O que se percebe sem muito esforço é que o sistema funciona muito mais em função de seus interesses corporativos que como algo feito sob medida para que a resolução de conflitos possa acontecer de maneira adequada. Mais grave, considerando-se o absurdo número de ações judiciais que envolvem o Estado, é que esta entidade pagará tudo, tanto seus funcionários administrativos, como defensores, como julgadores e pessoal do poder judicial. E pagará os advogados cujo trabalho resume-se a encontrar os clientes.

Essa litigiosidade em bases deformadas e quantidades obscenas revela que ao sistema e à corporação interessam os conflitos, a ambiguidade normativa, a má técnica legislativa, o despreparo dos serviços administrativos e o protagonismo judiciário. Tudo isso junto e preferencialmente sempre crescente, interessa a todos, porque resolvedores de problemas só se justificam se houver sempre problemas.

Isso tende a chegar a certo ponto em que o custo altíssimo em desproporção à utilidade real fica claro. Já se passou, no Brasil, do ponto em que o sistema resolvedor de causas envolvendo o Estado é mais caro que os pagamentos a serem feitos. Isso, porque a história pode ser esquecida e até meio retardada mas nunca travada, cobrará o preço cedo ou tarde.

Protestos de médicos: a corporação contra os pacientes.

De algumas semanas para cá, tem havido protestos contra tudo e contra todos, no Brasil, principalmente nas capitais e cidades de porte médio e grande.

Na esteira da onda protestadora, a corporação médica brasileira resolveu manifestar-se contra a vinda de médicos estrangeiros – nomeadamente cubanos, portugueses e espanhóis – para suprirem a evidente carência destes profissionais no Brasil.

No Brasil, faltam médicos nos locais mais remotos e mesmo nos grandes centros, o atendimento dos serviços de saúde é deficiente. Os estrangeiros irão precisamente para os lugares que os brasileiros não querem ir, nem mesmo por salários em torno a R$ 25.000,00 (10.000 euros).

O que fica evidente é que a corporação defende somente seus interesses pecuniários e não o principal, que são os interesses dos pacientes que deles dependem.

É perfeitamente lícito defender os próprios interesses e a pretensão de ganhar mais e mais dinheiro. Todavia, é infame fazê-lo sob falsos e disfarçados argumentos, como está a fazer a corporação médica.

Eles querem manter o mercado sob reserva e captura das suas vontades, mas dizem agir em função do interesse coletivo e da qualidade dos profissionais. Ambos os argumentos são falsos, falaciosos mesmo.

O interesse coletivo atende-se exatamente com o aumento imediato no número de profissionais dispostos ao serviço público e não pela estagnação defendida pela corporação mediante a reserva de mercado.

A qualidade é argumento que me traz à mente o famoso dito dos norte-americanos, de que só se perde o que se tem.

Creio que a corporação está redobrando uma aposta muito perigosa na mentira, no disfarce e na estupidez coletiva. É perigoso, porque basta as pessoas perceberem que do ponto de vista delas é melhor que venha para o Brasil o maior número de médicos possível.

Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica.

Se está acabando el partido, vamos tres a cero, nos ganan los brasileños.

En el salón de mi casa veo la indignación de mis compañeros ante la derrota anunciada. Ya no hay remedio: perdemos. Me cuentan cómo se ha desarrollado el juego, hablan de suerte y desgracia, al parecer, las “canarinhas están en una buena racha. Los escucho por educación, sin inmutarme porque el fútbol no me importa nada. Después de todas las críticas y juramentos de mis compatriotas, enrabietados con la victoria del gran gigante del Sur, pronuncio la frase que da título a este texto:

“Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica”.

—¡No digas eso! —me imploran— pero ya es tarde, mi sentencia cae sobre el murmullo de una sala de estar que ya no quiere ser.

Poco después hago otro comentario mucho más desafortunado:

“Mañana empiezo los trámites para solicitar un pasaporte azul”.

Mis amigos me miran con una mezcla de euforia y decepción.

No me he unido al enemigo, hace tiempo que formo parte de otro equipo,

de otro esquema sociocultural, de otra orilla, que no es la misma que me vio nacer un día.

Yo ya soy del Sur, extranjera, adoptada, inmigrante retornada.

Hace más de un año que volví a España y, desde entonces, el desarraigo

de una “desubicación” exacerbada recorre mi sangre y aviva mis ganas de huir

a cualquier otra parte, lejos de aquí y dentro o cerca de las fronteras del verde Brasil.

Nos ganan, sí, pero no ahora, hace ya tiempo que perdemos todos los enfrentamientos con patrias americanas por goleada. Perdimos hoy, pero también ayer y tal vez mañana.

El deporte, que antes nos beneficiaba, llenando de medallas y gritos de triunfo

un país minado por las deudas, los impagos y los desahucios,

ahora nos expone ante nuestras carencias y temores.

Hoy nos acusa de una mala gestión en el campo de cualquier juego,

mientras Bárcenas se muere de miedo frente a un extraño compañero de celda y

el ciudadano de a pie revienta de rabia frente a sus iguales en el viciado ambiente de todos nuestros bares.

Nos vamos a pique en todas las riberas, el barco no se hunde: se entierra.

No nos ahogamos: nos sepultan.

No nos marchamos: nos expulsan.

No nos morimos: nos marchitan.

El fracaso no lo creemos: no los inculcan.

Um texto de M. E. M. C.