Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: março 2014

Ei, me dê seis pão aí!

As trivialidades, quando estamos em bom estado de humor, são as coisas mais deliciosas que há. Porém, quando os líquidos corporais conduzem mais análise que divertimento, são terríveis portas abertas para a percepção da brutalidade.

Isto que se encontra acima do texto, como título, foi dito na padaria, domingo ao final da tarde, por uma senhora daquelas repletas de doirados, desde os óculos até às sandálias, passando, é claro, pelos punhos, dedos e cintura.

A típica criatura que, provavelmente feia até mesmo antes de envelhecer, enfeita-se. Enfeitar-se é o reverso da beleza, seja de formas e proporções, seja de gestos. Mas, a feiúra não percebeu que grande piada fizeram-lhe, ao convencer-lhe que enfeitar-se minimiza. Dá-se precisamente o contrário.

Mas, não é de feiúra, nem de doirados, que quero falar. Não é, tampouco, apenas dos rotineiros erros nas colocações pronominais, na eterna confusão das ênclises e próclises, da supressão dos plurais e da incapacidade de usar os pronomes no caso oblíquo.

Essas agressões à estética, mais que às normas, revelam muito mais que ignorância formal ou que suposta grandeza de cultivas oralmente o coloquial.

Primeiro, apontam algo delicioso, que é a profunda democratização homogenizante a que chegamos: as diversas classes falam da mesma maneira, embora uma aquinhoe-se muito melhor que outras, materialmente e em termos de prestígio social. Devo dizer que a senhora adoiradada dos seis pães transportava-se em automóvel de não menos que R$ 80.000,00.

Outra coisa que me chama profundamente a atenção é a brutalidade que há numa frase tal como esta, usada para pedir pães. Não houve um boa tarde, um por favor, nem um obrigado e certamente as ausências são se deveram àlgum intuito deliberado de ser brutal.

A perda quase absoluta da estética, do culto das formas e da precisão, por quem teoricamente teve acesso aos treinamentos escolares, vem de mãos dadas com um à vontade feito de imperativos desacompanhados das formas consagradas de lubrificação das comunicações.

Ainda há quem use da cortesia básica de dia-a-dia, como se usam roupas do século XIX, ou seja, naturalmente e sem afetação. Há quem use como a desempenhar uma personagem exótica, efeito obtido porque o número maior não usa e percebe o usar como realmente exótico.

O normal, este é a brutalidade de mão dupla. Sim, de mão dupla, porque é realmente democrático e quem ordena em dialeto a entrega de seis pão está pronto para ouvir alguma negativa ou o simples mau humor da moça da padaria, no mesmo tom.

A comunicação dos desiguais econômica e socialmente faz-se no mesmo dialeto, o que é extraordinário. Se assumo que brutalidade de imperativos não precedidos de bons dias, por favor e obrigados – além dos erros estéticos – é algo que não caracteriza os melhores, devo ficar um tanto incomodado com as possíveis conclusões.

Os mais bem aquinhoados não são melhores em nada além da inércia decorrente da classe em que nasceram ou de terem sido bem aquinhoados com os predicados do oportunismo e o talento para a vigarice.

Há nisto um tantinho de transição inconclusa do rural para o urbano. A cortesia por fórmulas consagradas, mais que um adereço barroco de dândis, é um óleo a reduzir os atritos prováveis no convívio de muitos e com interesses diversos.

A brutalidade do imperativo constante, que não se permite quase exceções, é muito caracteristicamente rural e vai bem neste meio, que funciona sem travar com menos óleo lubrificante. Transposta para outras realidades culturais, leva à duplicidade que necessariamente antecede à fixação pelo menor padrão ou à rutura definitiva.

 Sempre houve quem compreendesse e desculpasse às classes mais baixas e aos anacronicamente provindos do meio rural essas formas no discurso cotidiano. Não creio absolutamente que façam mal estes que percebem e desculpam, porque se trata de algo que espontaneamente vem de onde poderia vir.

Todavia, é artificialíssimo, por um lado, que o mesmo se procure desculpar em quem reivindica superioridade, cosmopolitismo, maiores rendimentos e alguns discretos privilégios de classe.

Poderíamos aprofundar a democracia para além dos seus evidentes aspectos de liberdade de sufrágio. Seria algo em que a funcionária da padaria voltasse para casa num automóvel de R$ 80.000,00, como faz a senhora dos doirados; ou algo em que ambas retornassem a pé ou em transporte coletivo. Afinal, elas são as mesmas pessoas!

Conversa com um tolo fascistóide.

Tenho enorme receio de ocasiões propícias para conversas indesejadas. Muito embora o mutismo a me caracterizar quase sempre afaste as pretensões tagarelas de desconhecidos em lugares públicos, sempre haverá os tolos mais tenazes e necessitados de expansão.

A fila no supermercado é, talvez, o local mais arriscado para quem tem estes receios de contatos aleatórios com desconhecidos. Geralmente, iniciam-se com alguma reclamação. Isso é mesmo curioso, porque leva a crer que a reclamação é algo conducente ao ponto em comum.

O interlocutor crê – e na maioria das vezes está certo – que terá a confirmação no outro daquela sua insatisfação, que pode ser a respeito de qualquer coisa, até da maior insignificância.

Outro dia desses, estava eu na fila do mercado e aproxima-se um fulano, com ares de pequeno-burguês na altura dos 50 anos, com uns papéis na mão. Percebi imediato o risco. Chegou-se próximo e, depois de poucos instantes, começou a reclamar das dificuldades de se pagarem as contas tais ou quais. Anui com um aceno de cabeça.

Se estas pessoas não fossem tolas nem impelidas por uma força invencível de comunicar-se por nada, perceberiam o aceno de cabeça como sinal do obstáculo à conversa. Todavia, a tolice é muito afirmativa, pois as maiores parvoíces e, no âmbito político, as maiores barbaridades fascistas precisam ser ditas.

Após não ter compreendido o aceno de cabeça, o fulano emendou a seguinte frase, que nada tinha a ver com a reclamação anterior sobre as dificuldades de se pagarem contas: aquela mulher acha que tem direito a ser reeleita…

Se escrevesse para pessoas semelhantes ao que proferiu a frase acima, não seriam necessárias explicações, porque compreenderiam imediatamente. Todavia, não é este o público visado, então convém explicar.

Essa mulher, a que se refere o sábio, é a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff. O sábio não se digna a chamá-la pelo nome, nem a referir-lhe o cargo ocupado. O dizer aquela mulher é muito revelador, tanto de um machismo anacrônico, quanto de um desprezo pequeno-burguês muito próprio do fascista inculto seguro de si e de suas pequenas verdades.

Habitualmente, permaneço calado ante tais derramamentos caudalosos de mesquinheza e burrice, mesmo se a insistência for demasiada. Porém, nesta ocasião, estava com algum humor e resolvi verificar se o interlocutor ainda tinha algum traço de pensamento próprio.

Disse-lhe: isso não é questão de direito, é de votos. O fulano ficou um pouquinho desconcertado, mas ainda insistiu na histeria: mas, não tem o direito de querer reeleger-se…

Redargui: claro que tem. Esse direito foi criado pelo sábio Fernando Henrique Cardoso, a um custo e a partir de métodos de convencimento nada ortodoxos…

Propor trinta anos de empobrecimento é brutalidade triunfalista.

O governo de Portugal, com toda a solenidade que o caracteriza, disse que o país deve passar os próximos decênios a dedicar-se ao pagamento de suas dívidas, mesmo que isso signifique – e significa – propor o empobrecimento contínuo por trinta anos. É uma proposta infame e convém dizer poucas palavras sobre o que deixa um grupo de freiras tão à vontade para tamanha barbaridade.

Primeiramente, os dois troncos dos empregados da plutocracia trabalham conjuntamente. A imprensa, portanto, interdita qualquer objeção e faz crer que objetar é propor a desonra, o calote e o desapreço pelo pagamento das dívidas. Tudo ficará nesta prisão, não haverá outra linha narrativa. O dogma, se for violado, acarreta desonra e propor a violação do dogma é vil.

O triunfalismo do senso prático casado com a pseudo ciência e a austeridade contábil de gestor de take away defende-se com a imprensa e conta com a inércia do corpo social. Mas, é infame demais obstar toda e qualquer conversa a acusar o objetante de desonestidade, quando ele apenas pensa.

O senso prático demitiu-se da imaginação, do devaneio, da esperança. Demitiu-se irrevogavelmente, talvez para demitir-se de qualquer beleza e oferecer-se ao julgamento histórico como algo pouco e a merecer censura pouca também. Os burocratas triunfantes têm, no limite, noção de sua mesquinhez.

E esta demissão é tão arrogante que pretende a de todos os demais, obrigados a prestarem culto e sacrificarem no altar do triunfalismo da austeridade.

Os triunfantes austeros teriam coragem de instituir voto obrigatório e convidar a velha que vive a 450 euros por mês a ir votar neles? Talvez tivessem, pois são triunfantes.

Picanha na grelha, no forno, com alhos laminados e pouco sal.

A melhor forma de preparar picanha é também a mais simples, desde que haja espaço aberto, é claro. Realmente, fazer um churrasco dentro do apartamento é meio complicado, por causa da fumaça.

Prepará-la na panela, como carne estufada, é próximo ao desperdício herético, porque nem adquire tanto os sabores dos temperos, nem destaca o sabor conferido pela famosa capa de gordura. Fritá-la às postas é uma alternativa saborosa, mas tem o inconveniente do fortíssimo cheiro que impregnará tudo, além das gotículas de gordura que se espalharão por toda parte.

Resta, como boa alternativa, o forno, mas convém ter alguns cuidados para não ressecar a peça. Pode parecer excessivo falar em cuidados e pensar que bastaria assá-la por pouco tempo, mas não é tão simples. Uma picanha mal passada no churrasco sobre brasas é diferente de mal passada no forno. Outro probleminha do forno é o contato da parte de baixo da peça, aquela na face contrária à capa de gordura, com o fundo da assadeira.

Resolvi, então, por uma grelha de assar peixes em cima da assadeira, evitando assim o contado da picanha com a chapa de metal. Fatiei a peça em postas de mais ou menos dois centímetros de largura, sem chegar a separá-las totalmente. O corte, é meio óbvio mas convém dizê-lo, faz-se da face da gordura para baixo.

Entre as postas fatiadas, que ficam bem próximas, pus finas lâminas de alho, um pouquito de sal e azeite. Usei o forno na temperatura mais baixa possível e deixei a picanha lá por quarenta minutos, o que foi suficiente para uma carne tenra, ainda molhada dos maravilhosos sucos da cozedura lenta da carne e do derretimento da gordura.

Para acompanhar, farofa de cebola e bacon, feijão verde e uma vinagrete preparada com algum rigor. A farofa é simples, mas convém usar farinha de mandioca bem fininha e, se possível, da amarela. Piquei meia cebola e um pedacinho de bacon. Deitei na frigideira um pouco de manteiga – sim, farofa é das poucas coisas que sempre ficam melhores com manteiga – e refoguei a cebola e o bacon, mexendo sempre.

Uma coisa fortuita contribuiu para essa farofa: havia fritado, na mesma frigideira, duas fatias bem finas da picanha, como experiência antes de me decidir pelo forno. Assim, a frigideira tinha um pouco de sangue e de gordura da picanha, o que acresceu sabor, evidentemente. Na sequência, põe-se a farinha e mexe-se até misturar bem tudo.

A vinagrete levou dois tomates pequenos e bem maduros, um molho de cebolinhas, meio pimentão verde, um pouco de coentros e um pouco menos que meia cebola grande. Não há problemas em fazer muito, como sugere a quantidade de ingredientes, porque não se estraga rapidamente e pode ser usada a semana toda.

Numa tigela de vidro, deitei aproximadamente 200 ml de vinagre de vinho branco e, em seguida, os pedacinhos dos ingredientes mencionados. Após, o sumo de meio limão siciliano grande, o que não é arriscado porque ele não é muito ácido. Um pouco de sal e um pouco de pimenta preta moída. E, por fim, uns 100 ml de azeite. Convém fazer a vinagrete cedo, pois os sabores apuram.

Como está quente, cerveja!

Datas de celebração de nada: a diluição insincera da gentileza.

Para qualquer corpo social, uma nação, por exemplo, fazem algum sentido as datas comemorativas cívicas. O dia de independência, o dia da deposição duma ditadura, o dia de proclamação de república, são coisas que convém manter na memória coletiva.

Contrariamente, as celebrações oriundas dos interesses do comércio, em que todos sentem-se obrigados a darem presentes ao celebrado, não têm qualquer espontaneidade subjacente à sua instauração. Essas são as datas arbitrárias que se convencionaram como dias de mães, de pais, de crianças, de namorados, disso e daquilo.

Pouca atividade neuronal é necessária para compreender que esses dias são artificiais construções que não elevarão alguma estima que haja, nem farão surgir a estima faltante. Essas coisas vulgarizam a gentileza e o afeto, posto que lhes reservam um dia especial, como se todos os dias não prestassem.

Interessante é notar que as grandes insinceridades quase sempre deixam-se revelar pela frieza ou pela artificialidade indisfarçável, por um lado, e pela intensidade das gentilezas que se fazem fora das datas convencionais, por outro.

Dar presentes por obrigação é algo destituído de qualquer sentido, mesmo de sentido afetivo. O inverso confirma isto: as grandes ofertas, as grandes gentilezas se fazem totalmente independentes de obrigações e de datas fixas.

Ucrânia: para quem faz sentido a desestabilização?

O ambiente natural do capitalismo é a selva, onde ele atinge o máximo de suas potencialidades. Regras, ordem, previsibilidade, fluxo mais ou menos normal das coisas, isso não é o adubo ideal do capitalismo.

É preciso ter isto em vista quando se tenta compreender o que está por trás de um golpe de estado patrocinado com manifestações constantes de massas fascistas a soldo, como deu-se agora na Ucrânia. Qualquer modelo que não leve em conta os interesses de dez ou quinze imensos bancos está fadado à perplexidade, à incompreensão e ao paradoxo.

Sim, porque excluindo-se esta variável está-se diante de algo sem sentido, de algo realmente estúpido, que aparentemente é ruim para todos os envolvidos.

As pessoas em geral, na região oeste da Ucrânia, mesmo as que se guiam pelo fascismo de boulevar e recebem dinheiro de fora, sofrerão as consequências da iminente falência do país, algo que não será evitado pelos 15 bilhões de euros que a Europa quase quebrada oferece. É iminente uma corrida bancária e sem ajuda dos bancos russos a coisa será drástica.

A Europa em geral e particularmente a Alemanha, compra muito gás russo. Pode-se dizer que aproximadamente 30% do gás consumido na Europa provem da Rússia, o que não pouco. Assim, à falta de opções imediatas e mesmo de médio prazo, a Europa é refém do gás russo.

Para os povos norte-americano e europeu, uma guerra real pela Ucrânia não tem qualquer sentido, pois além de serem chamados a morrerem e verem seus parentes morrerem, serão chamados a pagarem a brincadeira, ou seja: depois do enterro, a conta.

Para a Rússia, que não desencadeou esta loucura aparente, há muito a perder, na medida em que os selenitas no governo norte-americano podem congelar ativos russos em seus bancos e tentar impor-lhes problemas comerciais, servindo-se dos seus Estados Vassalos na OMC.

Além dos prejuízos com eventuais congelamentos de ativos, a mobilização militar na Criméia tem seus custos, que poderiam ser evitados.

Neste passo, é de se observar que a guerra aberta é algo estúpido demais até considerando-se os interesses dos dez ou quinze banqueiros, porque as partes envolvidas têm os brinquedos nucleares, não há garantias de que prefiram massacrar-se sem os utilizar e, assim, o mundo pode ficar sem a Riviera Francesa para refúgio…

Se fosse possível uma guerrinha sangrenta, mas convencional, a matar pobres de todas as nacionalidades, mas a preservar locais de fuga para os grandíssimos capitalistas, é certo que seria esta sua opção preferencial.

Eis então que Obama e seus dessemelhantes europeus anunciam que imporão, sim, sanções financeiras, comerciais e diplomáticas à Russia, embora não as tenham ainda iniciado. Depois disso, ocorreu algo interessantíssimo: um alto funcionário do ministério das finanças russas anunciou que a Rússia venderia parte de suas reservas em títulos do tesouro norte-americano.

O governo disse que o funcionário não expunha posição oficial, apenas opinião pessoal dele. Todavia, já era perfeitamente possível compreender qual o jogo em curso. O recado foi genial e certamente o funcionário foi instruído a fazer o curioso e, ademais, evidente, vazamento.

Evidentemente que Obama e seus assessores não ignoravam que a resposta óbvia será essa, além da tomada integral da Criméia, é claro. Acontece que a venda massiva de títulos norte-americanos – e a Rússia é credora de 200 bilhões de dólares aos EUA – teria como efeito quase imediato a queda relativa do dólar norte-americano.

Ao mesmo tempo que isso seria interessante para os EUA como meio de aumentar a competitividade de suas exportações, seria dramático em termos de empobrecimento interno de um país já repleto de pobres. Seria terrível também para uma Europa que padece os efeitos satânicos de uma moeda fortíssima a par com desemprego elevado.

Os países mais periféricos, embora de grandes economias, como o Brasil, sofreriam imensamente e mergulhariam na confusão cambial, o que é destrutivo para quem não emite moedas plenamente conversíveis. Movimentos câmbiais súbitos são piores que ondas gigantes.

Após as primeiras variações cambiais esquizofrênicas, dar-se-ia outra coisa previsível para quem não estiver afogado em confusão e dívidas: o aumento súbito dos juros pagos pelo FED a quem compre seus títulos, para revalorizar o dólar-norte americano e diminuir pressões internas e externas, após a maior e irreversível parte do estrago já ter sido feita.

Fica muito claro que tal cenário interessa apenas aos grandíssimos banqueiros, que o têm previsto à risca, tem várias bases de operação e ganham em quaisquer movimentos, seja na desvalorização de moeda de reserva, seja na valorização do ouro, seja na volta dos juros dos títulos.

Caril de porco sem leite de coco.

Na colonização do Brasil houve menos marranos que se acredita. O número de cristãos-novos foi menor do que querem historiadores superficiais, judeus conversos recentes e palradores em geral. Foram muitos, é claro, mas não a totalidade. A leitura de Evaldo Cabral de Melo é bastante recomendada quanto a este assunto e, especialmente, O nome e o sangue.

Muito embora não tenhamos surgido exclusivamente de colonização de marranos a se misturarem aos índios e aos africanos, ficamos com hábitos que permitem ver traços longevos de nova cristandade. Por estas terras, come-se pouco porco. Isso, mesmo sendo o porco muito mais barato que o boi e mais saboroso, é claro.

Ao contrário do que sucede no Brasil, come-se bastante porco em Moçambique, assim como na Índia e na Europa em geral. Estas poucas palavras vêm à propósito do caril de porco, de origens indianas, que achegou-se a Portugal por Goa e que consagrou-se, na região lusófona, em Moçambique. Evidentemente que Moçambique teve muitos indianos em seu território e isso deve ter seu peso na tradição gastronômica.

O caril, tanto de Goa, quanto de Moçambique, tem duas coisas marcantes: é muito picante e leva leite de coco. A princípio, nada que se afaste da culinária baiana, mas pouco que se aproxime da culinária do dia-a-dia brasileiro. Realmente, temos alguma parcimônia na mistura de leite de coco com muito picante, porque fica de digestão complicada.

Resolvi, entretanto, fazer um caril de porco sem leite de coco. A saída era abusar do tomate, porque no refogado ele libera bastante suco e engrossa o caldo. Outra necessidade, na ausência do leite de coco, era bastante cebola, e assim foi feito.

Com um dia de antecedência, cortei a peça de porco em pequenos rojões e os coloquei a marinar em vinho tinto, alhos, sal e muita pimenta preta moída. No dia seguinte, retirei os rojõezinhos marinados e os lavei em água corrente.

Cortei uma cebola e meia em pedacinhos mesmo pequenos. Cortei também quatro tomates médios em pedaços pequenos. Enfim, cortei duas pimentas-de-cheiro em pedacinhos miúdos. Tudo isso foi ao fogo baixo, para refogar, de panela fechada, evidentemente. Passados bons quinze minutos, com duas ou três mexidas, deitei os rojões de porco e aumentei o fogo.

Mais quinze minutos, era tempo de deitar uma colher de sopa cheia do pó de caril e um pouco de sal. Feito isto e mexido o que estava na panela, subiu o cheiro delicioso do caril em contacto com o azeite quente e as cebolas.

Daí em diante, era questão de mexer, para os tomates e as cebolas se desfazerem e a carne impregnar-se do caril. Entretanto, cuidava-se d0 arroz basmati. Essa variedade indiana, de grão fino e longo, é muito aromática. Cortei em pedacinhos um dente de alho, deitei duas colheres de azeite numa panela pequena, uma chávena de arroz e fogo!

Mistura-se sem parar, enquanto duas chávenas de água aguardam fervura noutra panela. O tempo de ferver esta pouca água é o de dourar o arroz basmati com os alhos. Eles cozinham mais ou menos vinte minutos depois que a água fervente é posta na panela do refogado do arroz.

Para mim, resultou esplêndido. O porco marinado conservou muito picante, mesmo depois de lavado e isso agradou-me, pois não usei qualquer pimenta, exceto a de cheiro, que é só aromática. Mesmo com temperaturas não muito baixas, foi comido com um tinto alentejano bem razoável.