Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: abril 2014

A má-consciência do ladrão. Ou, tirem esses pobres da minha frente!

Em países do que se convencionou chamar mundo desenvolvido, avançam medidas de higiene social. Trata-se de tanger os resultados da concentração obscena de rendimentos para longe das áreas habitadas e frequentadas pelos que ainda se mantém nos 10%.

Vêm à mente os casos de Espanha e EUA. Na Espanha, recentemente, foi aprovada norma que viola as bases do Estado. Ela permite que grupos de segurança privada exerçam poderes de polícia em áreas comerciais, ou seja, permite que detenham, afastem, mesmo que não se trate de agentes do poder público. É aberração por dar função própria da soberania a grupos privados.

Ainda em Espanha, normas recentes criminalizam catar lixo, outra aberração, porque não há violação qualquer ao direito de propriedade no apropriar-se do que ninguém mais quer.

Nos EUA, ressuscitam normas que criminalizam dormir nas ruas, o que visa evidentemente a tanger os pobres para fora do campo de visão dos que ainda se mantém como súditos fiéis do 01%.

Neste passo, convém lembrar que o tal mundo desenvolvido é aquele a não ter crescimento econômico significativo, há pelo menos uma década. A conjunção de estagnação e escalada de concentração de rendas leva à conclusão de que é um processo de enriquecimento de poucos à custa do empobrecimento de muitos. Nisto não há livre iniciativa, nem mérito, nem mobilidade social, nem nada disso que habitualmente se diz para iludir as massas.

Há somente inércia de quem já tem e, à semelhança da física, ela é proporcional a quanto já se acumulou.

Inicialmente, nos EUA e nos seguidores de seu modelo social e urbano, a saída era realmente sair das cidades e residir naqueles condomínios suburbanos em que reinam a harmonia social e a mediocridade dos interesses. Acontece que não conseguiram levar seus escritórios, as escolas e os hospitais para dentro desses micro paraísos. Ou seja, o sujeito precisa sair do paraíso e enfrentar o inferno, que é a cidade e suas desigualdades escancaradas.

Na cidade, o empregado do 01% é obrigado a ver que existem pobres, mal vestidos, famintos, mendigos, loucos, essas malditas motocicletas que a classe média baixa insiste em comprar só para dificultar a vida dos donos de carros e outras mazelas mais.

Daí para principiar a conceber medidas de higiene social é um pequeno salto. As classes altas não têm qualquer compromisso com coerência ou com o sempre aclamado direito e parecem decidir e legislar como se acreditassem estar num mundo de pessoas iguais a elas. Agem, aqui sim coerentemente, como se não houvesse pobres.

Assim, legislam contra a vadiagem, contra a mendicância, como se se tratasse de posturas optativas de algum rico diletante que resolveu trair as origens e agredir seus parecidos com agir diverso. Cuida-se, na verdade, de necessidade, de pobreza, mesmo que um e outro sejam impelidos voluntariamente pela negação de tudo ou mesmo pela preguiça.

Essa ânsia de retirar os pobres da linha do horizonte é reveladora de um mal estar, de um estado de má-consciência dos predadores. Sim, porque se acreditassem no que dizem, ou seja, no mérito, na mobilidade social, na liberdade de escolhas, não se sentiriam tão agredidos pela ocorrência de mendigos, de moradores de rua, de gente que busca comida nos lixos.

É preciso, então, criminalizar a pobreza e dar-lhe a oportunidade, se não quiser parar num presídio, de escapar-se para onde o pessoal de cima não os veja. Pouco serve lembrar aos donos e empregados chegados da Casa Grande que o herdeiro que não trabalha é igual ao mendigo que não pede e apenas expõe sua orgulhosa pobreza e sujidade.

Claro que está tudo impregnado pelo moralismo de raiz luterana que vê no trabalho um valor maior que a perspectiva de ressurreição. Vistas assim as coisas, quem não trabalha é porque não quer, quem não saiu da pobreza foi porque não quis. E quem não quer atingir os máximos valores, trabalho e dinheiro, merece todas as punições, evidentemente.

A Casa Grande dá-se o luxo de querer manter-se hermética e afastada de todos os espelhos que possam refletir suas deformações. A dessemelhança deve ser afastada a qualquer custo para que a inércia social continue a poder ser chamada de mérito e para que ninguém precise ou possa invocar o mérito real, que é manter escravizada a maioria a trabalhar para o enriquecimento da minoria.

Urinei num pneu quente…

Padre Vasconcelos defendia os interesses da Santa Madre Igreja Católica no sertão nordestino, lá pelos anos de 1950. Era o segundo de cinco filhos de Dona Clementina Vasconcelos, que enviuvara dois anos depois de parir o último dos rebentos.

Dona Clementina tinha um caráter forte, daquela força das coisas práticas. Ou seja, não era o capricho, a curiosidade e o mandonismo vazio das senhoras vazias. Era, em resumo, proprietária de terras e negociava com gados, algodão, tratava com os rendeiros, tudo com bom êxito.

O irmão mais velho do reverendo tivera a sorte ou o azar de ir estudar na Faculdade de Direito do Recife, numa época em que nem quinze anos de getulismo tinham conseguido abater a fatuidade e a vontade de ler em alemão. Acontece que o mais velho irmão Vasconcelos era, em Recife, um semi-rural e semi-rico, ou seja, casaria com a filha de algum desembargador.

O padre, evidentemente, fora ao seminário e tivera a sorte de não ter sido o de Olinda. Quer dizer que Pe. Vasconcelos era autenticamente padre, rural, fazendeiro e conhecedor de muitas frases em latim. Conservou-se nas suas terras e sucedeu à mãe no mando da fazenda.

Quando a viúva morreu, Padre Vasconcelos tomou seu lugar, com mais prestígio ainda, posto que o regime das duas dedicações não representava qualquer escândalo. Os irmãos e irmãs pouco interessavam-se pelos negócios de bois, vacas e rendas e o padre, por sua vez, pouco lembrava-se desses irmãos.

Quem o visse e com ele conversasse pela primeira vez acharia o reverendo meio escasso de espiritualidade e deveras prático. Talvez, só e só prático. Nada obstante, não podia ser acusado de negligente com suas obrigações de dizer missa, baptizar, confessar, dar extrema-unção, encomendar corpos, enfim, toda a rotina burocrática de um cura.

Padre Vasconcelos, sem o saber de conceito enunciado, era ortodoxo e andava à margem do preconceito romano do celibato. Todavia, não adotava o modelo consagrado dos grandes párocos. Antes, comportava-se, nisto de prevaricações, mais como um caixeiro viajante.

Essa ginecofilia diversificada não o punha em apuros espirituais, pois aprendera que a mudança quantitativa, para fazer diferença qualitativa, tinha que ser muita. Assim, um pouco de Aristóteles e muito de hipocrisia absolviam o homem e a disciplina ritual mantinha o padre. Ele sabia que metade de seus colegas elogiavam a lei de Deus de maneiras diversas e mais enérgicas que com o celibato.

Um belo dia, Pe. Vasconcelos manda um moleque da fazenda convidar o Dr. Teles para almoçarem um cabrito assado, no dia seguinte. O médico não estranhou o convite, porque não era malicioso, nem esses convites eram raros. Apenas eram mais rituais e presos a datas certas, porque o padre e o médico não tinham mesmo muitos assuntos em comum; não eram amigos nem inimigos.

O reverendo mandou o único sujeito da fazenda além dele capaz de guiar o jipe Willys apanhar o Dr. Teles na cidade, lá pelas dez e meia. Se ele mesmo fosse no jipe, seria uma deferência que todos estranhariam, porque Vasconcelos viajava muito, mas sempre só.

Teles chega na fazenda e é recebido com aperto de mão e a opção de um copinho de aguardente ou de licor de jabuticaba. Aceita a aguardente – boa para abrir o apetite – e senta-se confortavelmente no alpendre ensombrado, afrouxa um pouco o nó da gravata e pergunta como vai o anfitrião.

O padre nunca era loquaz nem calado demais. Tinha certa habilidade para ajustar o discurso às circunstâncias e aos circunstantes, sobretudo se as coisas girassem em torno a assuntos práticos, preços de propriedades, chuvas, barragens, gados. Com o Dr. Teles as coisas necessariamente girariam torno a estas trivialidades ou a qualquer coisa ligada à profissão do médico.

Para Teles, não parecia que o convite fosse alguma consulta disfarçada, porque nestas ocasiões as perguntas eram diretas, embora eufemísticas. Então, emendou a perguntar pelos cabritos, bodes, carneiros, bois, se os barreiros tinham água e coisas do tipo, ligadas ao mundo daquela ruralidade lenta.

O reverendo parecia disperso, mesmo que os assuntos fossem os seus e que tivesse sido ele a convidar o médico. Não se atinha à conversa, não bebia da aguardente mais que o suficiente para molhar os lábios, nem ansiava iniciar o almoço.

Já era quase meio-dia e não se podia mais adiar a comilança. O cabrito no forno de lenha e algo que faz até o cronista – distante cronológica e geograficamente – salivar enquanto escreve. Teles afrouxou um pouco mais a gravata, afastou um tantinho as bordas do colarinho, provavelmente por gentileza com as gotas de suor que por ali escorreriam…

Curiosamente, Padre Vasconcelos comia pouco e devagar, a ponto de chamar atenção do médico. Mas, como não se tratasse de encontro de íntimos e o código de conduta do tempo e do local não impusesse aos convivas a tagarelice que se impunha às mulheres, o Dr. Teles ficou-se pelos sabores do cabrito e pelos silêncios do padre.

Havia, não se sabe bem porquê, uma garrafa de vinho do Porto na casa da fazenda, coisa rara. Na altura em que a cozinheira ofereceu doce de caju, uma xícara de café forte e um cálice de Porto, Teles achou-se muito bem aquinhoado de hospitalidade num dia que não era santo, nem cívico.

Para a sobremesa, o café e o Porto, o anfitrião resolveu que passariam para a varanda alpendrada e mandou a cozinheira para dentro. Era melhor, porque corria um vento na varanda e o calor na sala estava opressivo mesmo se só tivessem comido uma salada de folhas.

Pelas tantas, o padre resolve-se a falar: olhe, doutor, queria lhe perguntar uma coisa. É bobagem, mas…

Diga lá, Padre Vasconcelos, que é que há?

É bobagem Teles, bobagem mesmo. Mas, é que tá um certo queimor incômodo aqui pelas partes, não sabe?

Sim, tá queimando quando urina, é Vasconcelos?

Pois é isso mesmo, Teles, e não é engraçado? Isso começou por uma besteira que fiz.

Sei como é…

Pois foi, doutor, tava um dia desses viajando no jipe, fazia um calor danado, daquele que não se sabe de onde vem o vento quente. Daí, parei pra urinar e foi no pneu do jipe, no pneu quente… Acho que a quentura do pneu subiu e ficou essa ardência… Foi burrice mijar no danado do pneu quente…

Padre, quando o senhor saiu do seminário, um sujeito de apelido Fleming, que acho que era escocês, sei lá, já tinha resolvido esse negócio.

Sim?

Olhe, passe lá em minha casa amanhã e vá com uma garrafa de licor, que o povo pensa que é um presente seu pra mim. E olhe, pode mijar até no motor do jipe, mas aquelas meninas da rua do açougue velho, padre, aquelas ali é melhor dar a comunhão só na missa mesmo…

Água com gás.

As porções semi-áridas do Nordeste brasileiro viveram esporádicos ciclos econômicos favoráveis. Em regra, deveram-se ao sucesso de alguma cultura agrícola que se adaptou bem a estas plagas abandonadas pelos favores da natureza.

Por um período até longo, reinou o algodão, cultura rentável e viável no clima semi desértico. As coisas foram bem até que uma praga dizimou os cultivos. Até hoje, especula-se ter havido sabotagem na introdução do bicudo, mas parece-me coisa de migração de insetos mesmo.

Na verdade, a cotonicultura no Nordeste já declinava quanto se noticiou a presença do bicudo-do-algodoeiro. Ele veio apenas terminar o pouco que restava e já não era rentável. O cultivo no cerrado já se estabelecera e revelara-se muito mais produtivo.

Nas décadas de 1950 e de 1960 deu-se o apogeu da cultura do agave, espécie de cacto com uma folha larga e longa, a culminar, em cima, num espinho.

Esta planta tem origem nas regiões áridas da América Central e particular fama no México, onde se faz dela aguardente, que a aptidão dos mexicanos para a propaganda fez crer ao mundo tratar-se de bebida boa.

Introduzido no semi-árido nordestino, o agave logo revelou-se bastante rentável e adaptado ao clima inóspito. Dele, o mais precioso são as fibras, de que se fazem boas cordas, inclusive daquelas usadas em navios. Para tanto, é preciso secá-lo e depois desfibrá-lo. Quanto mais longas as fibras e mais claras, mais valiosas as cargas.

Pois bem, lá pelo início dos anos 60 um empresário fazendeiro estabelecido na região agreste do Estado da Paraíba, dotado de visão empresarial e de dinheiro público emprestado a juros irrisórios – é claro – resolveu aumentar a produtividade da sua produção de fibras de agave para exportação.

Depois de pensar um pouco, concluiu não haver o que fazer além de investir na qualidade das fibras, porque aumentar a produtividade por área plantada era impossível. Ou seja, teria que inverter capital na aquisição de máquinas modernas que desfibravam o agave em fibras mais longas e mais clarinhas que as amareladas e curtas mais comuns.

A coisa ficaria meio cara, mas para isso sempre houve um e outro programa do governo para emprestar dinheiro barato, senão a custo zero. Todavia, o homem não visava apenas ao financiamento e ao futuro calote; ele levou as coisas a sério.

As máquinas, na época, eram conhecidas por coronas, de origem alemã. Elas obtinham fibras bem mais longas e mais claras, além de desfibrarem mais folhas por minuto e demandarem menos esforços e riscos dos alimentadores. Nesse ponto, convém dizer que o desfibramento de agave tem a triste memória de muitas mãos perdidas por trabalhadores…

Tomada a decisão, o fazendeiro cuida de fazer contato com a fabricante, na Alemanha. Na época, isso significava encontrar alguém que falasse inglês – alguém que falasse alemão seria um professor de direito da faculdade do Recife e não serviria para a tarefa – e manter vários contatos por telex.

Passados dois meses de negociações, um mês de navio e mais um de alfândega, eis que as coronas chegavam ao agreste paraibano. Com elas, chegava algo inusitado e exótico: um engenheiro alemão para as instalar, explicar como operá-las adequadamente e dar manutenção por curto período.

Os alemães têm fama de gente sério, nisso de trabalho, o que explica o zelo de enviar profissional qualificado juntamente com seus equipamento. As más línguas gostam de acrescentar que o engenheiro tedesco também auferiu boa remuneração pelo seu desprendimento, além de saciar a curiosidade das gentes do frio pelos encantos dos trópicos, é claro.

Fato é que chegaram as máquinas e o sujeito louro e alto, que falava feíssima língua parca de vogais. O coitado do fazendeiro brasileiro teve que dar mais uma volta ao parafuso do seu empreendedorismo e contratar um cicerone falante de inglês, porque do contrário, a presença do alemão e nada seriam as mesmas coisas.

Estranhamente, o alemão adapta-se razoavelmente bem ao calor e aridez causticantes do agreste. Ajudavam, evidentemente, os cuidados do fazendeiro, que providenciou outra geladeira Frigidaire, exclusiva para as indefectíveis Antárcticas do casco escuro.

As dificuldades não eram poucas, principalmente porque a mão-de-obra era tão rústica quanto o agave e via muitas das recomendações técnicas como simples caprichos do galego falante da estranha língua. Mas, as coisas avançavam e aproximava-se o fim da estadia do alemão.

Nessa altura, o engenheiro já adquirira certa desenvoltura entre os habitantes da fazenda e inclusive no povoado vizinho, que certo orgulho fazia chamar de cidade. O gringo ia esporadicamente ao povoado e aprendia uma e outra expressão em português, pronunciadas com um esforço tedesco.

Um dia de fevereiro o calor estava tão intenso que não recomendava cerveja, principalmente depois do almoço, mesmo com a possibilidade daquele providencial cochilo na rede. O alemão chama o cicerone para tomarem o jipe e irem à cidade.

Lá chegados, dirigem-se à bodega na praça e o engenheiro dispensa o intérprete para que fique à vontade e vá visitar aquela viúva piedosa com quem ele travara boas relações de conversas nem tão piedosas. Liberado do acompanhante, o gringo entra na bodega e dirige-se ao dono, que bocejava atrás do balcão de madeira seca e riscada.

Esboça um bom dia e emenda com um água com gás. O homem estranha, mas a cortesia a que todos tinham sido levados, em troca dos dólares do alemão e a bem de se mostrarem civilizados sem fazerem perguntas inoportunas, deixa-o mudo.

Por mais que conviesse ser ou parecer civilizado à base de não estranhar excentricidades, o bodegueiro acha melhor desconfiar, porque era de fato exótico o pedido. O que? – devolve-lhe.

Água com gás! – insiste o alemão, sem exasperar-se.

Tá bom, diz o homem atrás do balcão, se é isso que quer… Retira-se para os fundos, passando por uma portinha estreita e dirige-se aos botijões onde se armazenava querosene. Ia pensando: meu Deus, esse galego é doido mesmo…

Mistura diligentemente o querosene com água fresca, põe num copo, volta e dá ao sujeito louro que suava da testa aos pés. O alemão, todo satisfeito, entorna o conteúdo do copo de uma só vez, regurgita um pouquinho e começa a tontear.

Em menos de cinco minutos, o homem já se contorcia no chão, clamando por Zé Antônio, o intérprete e cicerone. O bodegueiro fica desnorteado e manda um moleque chamar Zé Antônio com a maior urgência. O menino, ladino, objeta que Zé tava naquelas conversas com a viúva.

O bodegueiro dá-lhe uma tapa na nuca e diz: corre lá, menino safado, e chama aquele filho duma égua logo, que esse galego imbecil tomou gás e acaba morrendo aqui!

O alemão escapou, depois de uma verdadeira aventura de cem quilômetros no jipe, por estradas de terra, até chegar na cidade pólo da região, onde havia um hospital. O que não escapou foi a fama do alemão, aquele homem tão cheio de ciência, fazer a estupidez de tomar água com gás…

Perna de carneiro assada, com tabule e homus.

Comadre e compadre vieram almoçar. Não costumo cozinhar para mais que os moradores da casa, mas os convidados são estimados e bem-vindos e, além de tudo, gentis: caso resulte mal, abstêm-se de me dizer. A princípio, parece-me que ficou bom, até porque quase nada sobrou.

Pensei em algo fácil e ao mesmo tempo pouco comum. Pensei numa refeição libanesa, ou quase.Passei num bom açougue e comprei uma perna de carneiro pequena. Pedi para desossar e cortar em pedaços como se fossem para assar na brasa, ou seja, como se fossem para churrasco. Era bastante carne, mais que dois quilos. Então, separei quatro pedaços mais ou menos rectangulares, a perfazerem um quilo, mais ou menos, e congelei o restante.

Numa assadeira de metal, deitei um copo de vinho branco seco, sal, pimenta preta moída, meia cebola picada, alecrim, um pouco de cominho e um pouco de pimenta calabresa em flocos. Os pedaços de carneiro, previamente limpos do excesso de gordura, repousaram nesta marinada por cinco horas. Convém retirar boa parte da gordura das peças de carneiro, porque ela fica rançosa, ao contrário da gordura do porco, que é apenas bom sabor.

Os pedaços de carneiro foram ao forno em lume baixo, o mais baixo possível, por mais de uma hora. Assim, eles ficam tenros e ainda resta o suco da marinada misturado aos sucos da carne.

Para o tabule, trigo daquele usado para fazer quibes. Não tenho a mínima idéia de que parte do grão de trigo é esta, mas é certo que é delicadamente saboroso. Basta deitar à volta de 200 g do trigo, em uma travessa grande e meio funda e pôr água que dê para o cobrir. Ele deve hidratar-se por duas horas. Se, ao final, ainda estiver muito molhado, retira-se o excesso de água espremendo uns bocados com as mãos. Não precisei fazer isso, porque coloquei pouca água.

Em seguida, piquei meia cebola em pedacinhos mesmo pequenos. Cortei um molho de cebolinhas, piquei um punhado de coentros e cortei oito tomates cereja em quatro partes, cada tomatinho. Tudo isso, junto a folhas de hortelã, repousa por meia hora num prato fundo, juntamente com o sumo de um limão siciliano e uns 100 ml de azeite.

Entretanto, faz-se o homus. Fazer é força do hábito linguístico, porque homus, em árabe, significa grão-de-bico, apenas. O que chamamos homus é uma pasta de grão-de-bico e algo mais. Resolvi misturar os grãos e um pouco da água da sua cozedura, com gergelim, um pouquito de sal, pimenta preta moída e azeite. A maior parte das receitas fala em misturar os grãos e tahine, que é uma pasta de gergelim.

O homus depende apenas das quantidades. Para 200 g de grãos e um pouco de água, bastam duas colheres de sopa de gergelim, uma colher de sopa de azeite e poucos sal e pimenta. Resulta delicioso, depois de misturado no robot – os mais anglófilos chamem-no de mixer. Nestas proporções, fica cremoso sem deixar de ser uma pasta.

É hora de finalizar o tabule. As cebolas, cebolinhas, tomates, coentros e hortelãs banhadas em sumo de limão siciliano e azeite são simplesmente misturadas, com as mãos, ao trigo para quibe já hidratado. Simplesmente misturadas com ambas as mãos que, a depender do gosto do cozinhador por comidas, serão depois lambidas e depois lavadas. Ajusta-se o sal, porque tinha decidido hidratar o trigo sem qualquer sal.

Neste passo, convém olhar o andar do carneiro. Para mim, estava no ponto ideal, porque metade do suco da marinada tinha-se evaporado e a carne estava mesmo tenra.

Esse repasto a evocar o mediterrâneo oriental foi acompanhado de tinto chileno vivo, forte e jovem. Ainda fiquei na dúvida e cogitei de algum branco forte, porque tabule e homus os convidam. Mas, havia o carneiro…

Escalada do maniqueísmo superficial, sem poética nem mística.

Inicialmente, é preciso enunciar uma premissa básica: não existe imparcialidade jornalística. Contudo, não significa a impossibilidade de se comporem narrativas que não cheguem a serem puros editoriais. Também não deve implicar na confecção de discursos muito primários, em suas estruturas lógicas e no desprezo pelos fatos.

Contar fatos não é algo isento, embora os fatos em si o sejam. Eles não têm valor algum, positivo ou negativo, mas sua narrativa inevitavelmente tem. É comum o contador deixar-se levar por si e por seus tutores e por ênfase diferenciada aqui e acolá. Assim, a descrição já carrega alguma axiologia.

Diferentemente acontece com o sujeito que já chega com as conclusões pré-estabelecidas e as superpõe aos fatos, mesmo que o quadro resulte muito distorcido e as margens dos dois planos não se encontrem ajustadas. Esses descompassos muito gritantes chamam atenção.

Maniqueísmo rasteiro é ingrediente básico na construção dessas narrativas muito simplórias e reveladoras do desajuste entre os planos material e formal. Um maniqueísmo que já vem despido de qualquer elemento poético ou místico, que eventualmente podem dar-lhe alguma grandeza imoral.

Fato é que duas notícias – à falta de termo melhor, tive que ficar com este – retiveram minha atenção, nestes últimos dias. O jornal The Guardian informou que a Rússia promove escalada de militarização próximo às fronteiras com a Ucrânia e confirma com fotos aéreas e dá conotação nitidamente negativa. A notícia não é notícia, é um alarme e uma denúncia de má-ação dos russos.

Ora, qualquer pessoa raciocinante percebe logo à primeira que as movimentações são em território russo e que, portanto, não há qualquer coisa demais nisso. Em segundo lugar, muito mais alarmantes e agressivas são as movimentações da OTAN no Báltico, na Polônia e na Turquia.

Todo mundo sabe que a OTAN é um grêmio de sócios menores dos EUA em matéria bélica. Ela permite diluir as constantes provocações e por a serviço desta atividade de violar espaço aéreo e forçar prontidão das defesas anti-aéreas várias nações europeias.

A Rússia está cercada militarmente por todos os lados, há bastante tempo. Por isso mesmo, teve de desenvolver os melhores sistemas anti-aéreos que há, porque seria muito mais caro tentar uma força baseada em vasto número de aviões de caça. Ao contrário dos EUA, que dispõem da Dinamarca, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Holanda, da Suécia, da Espanha, da Áustria, da Bélgica, da Noruega, da Finlândia para promoverem vôos nas fronteiras, o império eslavo é ele só.

Vistas assim as coisas, o alarme do Guardian soa como é: ridículo, excessivo e rasteiramente maniqueísta. É quase a reivindicação da vassalagem voluntária e a denúncia da pretensão a defender-se. É de um cinismo adolescente supor que haveria qualquer outra coisa depois da OTAN promover um golpe de estado na Ucrânia e instalar algumas dezenas de nazistas semi-alfabetizados no poder.

A puerilidade encontra-se nisto de querer o direito a ignorar as consequências e, ao mesmo tempo, não poder ser chamado de estúpido. 

Depois destas parvoíces do Guardian, vejo outra notícia no El Pais, provavelmente mais infantil que a primeira e certamente mais desonesta intelectualmente. A chamada limitava-se a dizer que Putin ameaça fechar a torneira do gás à Ucrânia. Ou seja, Putin é aquele sujeito malvado que brinca de chantagear com o gás, como se se tratasse de algum capricho de um lunático autoritário.

A Gazprom realmente cogita cessar o fornecimento de gás à Ucrânia, mas não é por algum capricho, vingança, loucura ou coisas do tipo. É porque a Ucrânia não paga! E os novos suseranos da Ucrânia mostram-se incapazes de algum gesto de grandeza, daqueles que se esperam de gentes tão boas, democráticas, apegadas a normas jurídicas.

Na verdade, acredito na hora decisiva a Alemanha abrirá a carteira e pagará a conta, porque sai mais barato que ficar sem energia. Mas, embora esse desfecho previsível o seja para todos quantos pensam no assunto, há que se encenar entreatos de comédia e dar de comer à fome de maniqueísmo barato dos media.

As raízes do ódio medio-classista ao Bolsa Família.

Há meses, escrevi pequeno texto a demonstrar que o programa de rendimentos mínimos Bolsa Família é algo realmente mínimo e inferior ao que os médio classistas apropriam do Estado por meio de simples isenções tributárias, como aquela decorrente de ter um menor dependente. Basta um pouco de informação e de honestidade intelectual para perceber que o bolsa imposto de renda é maior que o bolsa família dos miseráveis.

A cruzada contra os programas deste tipo, e marcadamente o Bolsa Família, não dá sinais de arrefecer-se; antes, ao contrário, assume ares cada vez mais histéricos. Dois argumentos disputam a primazia na composição do sofisma contra os rendimentos mínimos: um, de caráter nitidamente moralizante, diz que estimula a vagabundagem; outro, pseudo-econômico, diz que enfraquece as finanças públicas e corrói o equilibrio fiscal.

O argumento farisáico plebeu é desmentido diretamente pelos números. Ora, ao mesmo tempo em que avançam as políticas redistributivas baseadas em rendimentos mínimos reduz-se a taxa de desemprego para mínimos históricos, à volta de 05%, o que, em termos econômicos, equivale a pleno emprego. É pueril demais até para moralizantes medio classistas brasileiros defender tamanha contradição.

A segunda bobagem tem maior conteúdo político, embora esconda-se sob o disfarce econômico. As contas públicas brasileiras vão muito bem, hoje, com endividamento público relativo ao PIB realmente baixo. Além disso, se se trata de levar o fetiche da redução do gasto público adiante, como idéia fixa, podem-se cortar inúmeras despesas e não necessariamente o Bolsa Família. Que tal suprimir as deduções de despesas médicas e de educação do imposto de renda de quem tem rendas?

As motivações reais percebem-se se nos mantivermos no âmbito do pensamento político, da disputa pelo poder a partir de seus maiores pilares: dinheiro e prestígio social.

Quem fala contra Bolsa Família não acredita seriamente – exceto uma minoria realmente estúpida demais – nisso de estímulo a vagabundagem, nem está preocupada com o número de vagabundos, até porque quanto maior este número melhor para a Casa Grande. Tampouco há alguém seriamente preocupado com equilíbrio fiscal, desde que o desequilíbrio o favoreça.

A Casa Grande e seus médio servos quer mesmo é apropriar-se deste dinheiro. Ou seja, quer que ele seja gasto com ela e não com os miseráveis. Quer que seja despendido na forma de mais isenções de impostos por despesas que fez porque quis. Quer aumento na cota para importar espelhinhos comprados em Miami sem incidência de impostos. Quer redução de impostos nos bens de consumo de luxo e outras formas de assaltar o Estado.

Por outro lado, a obtenção de níveis mínimos de dignidade impede que os miseráveis submetam-se à escravidão da Casa Grande, sempre disfarçada em bonomia e generosidade. Aquela que troca trabalho por três pratos diários de comida e a falsa intimidade dos que se cruzam dentro de casa. Isso diminuiu, encareceu a mão-de-obra não especializada e retirou algo preciosíssimo para as classes médias e altas: a simbologia do servo à disposição.

É notável que se vejam, com frequência assustadora, as figuras tão clássicas como anacrônicas da senhora que caminha à frente da babá com o filho nos braços. São muito simbólicos o andar à frente e o não precisar fazer esforço físico. Esta é a simbologia do prestígio social, a permanecer quase inalterada mais de cem anos depois das belas pinturas de Debret.