Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: maio 2014

Absolutamente tutelados.

A rebelião das massas é indissociável do mito da invulnerabilidade e da crença irracional e fetichista no progresso. Portanto, é indissociável da pequena-burguesia, seu meio de cultura por excelência.

Essas crenças, hoje triunfais a ponto de não se indagar do estado anterior de coisas, como se estágio anterior não tenha havido, não resultaram de alguma evolução natural. Realmente, a história e as conformações sócio-culturais nada têm de naturais, assim como não há natureza humana. Essas coisas são criadas dentro das possibilidades e da plasticidade social.

Aquilo que uns anteviam nos anos de 1920, estabeleceu-se avassaladoramente depois da segunda grande guerra. O modelo norte americano de superficialismo, consumismo e auto-engano triunfante dominou os dois lados do Atlântico e parte da Ásia. E fez estragos duradouros, que não mostram sinais de reversão. Antes, contrariamente, a rebelião das massas continua a dar seus mais patéticos exemplos.

Não é no povo mais pobre que a massificação revela-se no seu mais profundo ridículo, mas na classe média alta. Está última adotou o plebeísmo supremo que é viver conforme à moda como estratégia constante de uma ação que parece pressupor a inexistência de história, ou seja, o presente contínuo. Há um aparente paradoxo em viver na moda e estar como em um presente contínuo. Mas, como dito, somente aparente, basta pensar um pouco.

Incapaz de construir a própria narrativa de suas aspirações e defesa de seus interesses de classe – por demasiado ignorante e insincera – ela recebe da imprensa o que reputa ser um discurso a revelar absoluta comunhão de interesses entre os emissores e os receptores. Não percebem que os pontos de contato são esporádicos e que a imprensa defende-se apenas a si própria.

Essa incapacidade de percepção decorre de ter acreditado – entre outras dezenas de tolices – na inexistência de classes. Assim, recebem discurso pronto desde cima e creem que ele representa a defesa de interesses comuns a vários grupos muito diferentes. Há nisto, obviamente, algo mais patético, que é o constante achar-se parecido com o 01%, ou seja, o identificar-se por cima, que é muito revelador do espírito do servo.

A moda, a poucos dias do início do mundial de futebol no Brasil, é torcer contra a seleção nacional. Torcer contra a seleção brasileira é, para a classe média alta, uma forma de reclamar do governo central, porque queriam apropriar-se do que é gasto com os mais pobres. Foi-lhes ensinado pela imprensa que esta é atitude eficaz e de gente cosmopolita, ou seja, de gente que já foi comprar tudo que podia em Buenos Aires e Miami e aborrecer-se em Paris sem poder dizer isso, claro. Mas, esse discurso soa moderninho apenas dentro da classe média alta, embora ela não o perceba.

Acontece que a imprensa faz e desfaz o discurso anti seleção brasileira conforme seus interesses comerciais e é certo que ganharão muito dinheiro neste mundial. Ou seja, há um momento em que se mostra necessário recuar desta estupidez, sob pena de, além de perder dinheiro, indispor-se com outros setores que também ganham muito e com a maioria da população, que não acha muita graça nesse sentimento contra a seleção do país.

Dos aspectos mais curiosos é que a classe média alta não se sentirá traída quando a imprensa esquecer-se do besteirol de torcer contra a equipe nacional. Sim, porque ela crê sinceramente que a idéia é sua e não algo recebido de fora e assimilado perfeitamente porque a mensagem tinha destinatário certo.

Não apenas ignorante e insincera, esta classe caracteriza-se pela covardia frente ao grandioso a par com a disposição para fazer muito barulho por bobagens. Assim, ela não tem coragem para ir brandir seu espírito anti-copa e anti seleção nacional em frente aos sindicatos dos hotéis, bares, restaurantes, aeronautas, trabalhadores nos transportes em geral, por exemplo. Seria interessantíssimo que o fizesse…

Interessantíssimo também, a revelar que replicam com defasagem o que se lhes ensinou, é que nunca houve coisa semelhante, nas mesmas dimensões, nos outros mundiais de futebol, disputados em toda parte. Ora, se se tratasse de algo pensado e original, sua ocorrência seria mais ou menos estável ao longo do tempo. Mas é histeria e tem todos os ingredientes disto.

Uma parte dos alto médio classistas abandonará esta tolice e torcerá pela equipe nacional, esquecendo-se da anterior fúria discursiva e atendendo à temporária suspensão do discurso pela imprensa, que estará ocupada em ganhar dinheiro com publicidade. Outra parte permanecerá como está, mas não acusará a imprensa de ter cessado a carga, porque é fiel à crença de que este anti seleção saiu das suas próprias cabeças.

Agora, engraçadíssimo será se o Brasil for campeão….

Porco estufado com gengibre e manga rosa.

Ainda surpreendo-me com o tamanho dos porcos criados para abate industrial. Já falei disto antes e não se trata de ter visto os suínos destinados a serem cortes nobres nas prateleiras de mercados. Trata-se de imaginar de onde pode ter vindo um pedaço de lombo de tão largo calibre, porque são quase da mesma largura do lombo de boi.

Pois bem, comprei um belo pedaço de lombo suíno, de oitocentos gramas, com capinha de gordura num dos lados. Um pedaço maciço e sólido da carne de mamífero mais saborosa que há, depois da humana, é claro, a crer-se nas crônicas da conquista castelhana do México. Os astecas levaram consigo esse refinamento estético do consumo de carne humana…

Inicialmente, pensei em mais uma reprodução da maravilha que é o porco de caril – mesmo que sem leite de côco – mas mudei de idéia, embora tenha ficado por sabores ainda indianos ou quase. Resolvi que os protagonistas seriam, além do porco cortado em cubos, o gengibre e a deliciosa manga rosa.

Esse prato é basicamente um exercício de cortar carnes, legumes, verduras, raízes, frutas, dosar bem o pouco de sal e mexer o que vai na caçarola.

Pus a caçarola ao lado da tábua de cortar e comecei. Primeiro, um molho de cebolinhas, fatiadas bem fininhas. A seguir, um pedaço de gengibre de cinco centímetros por dois, cortado em pedacinhos os menores possíveis. À medida que se cortam, vão-se deitando na panela, o que ajuda a manter a tábua vazia e com espaço para o ingrediente seguinte.

Meia cebola, um tomate e meio, meio molho de coentros, tudo bem picado. Alguns pedaços de brócolis e vagens, previamente cozidos na água e sal. Um terço de uma cenoura ralada. Com tudo isso na panela, põe-se azeite por cima e não me perguntem a quantidade, porque vai de vista o necessário. O sumo de meio limão siciliano, um pouco de cúrcuma – o açafrão da terra ou de pobre, como também se o chama – e um pouco de páprica doce.

Os cubos de carne de porco fervem por meio minuto, em pouca água e pouco sal. Está na hora de acender o fogo, no mais baixo possível e com a panela tapada.

Com pouco, o cheiro do refogado com muito gengibre e mais outras coisas saborosas como as cebolinhas enche a cozinha. É hora de cortar em pedaços pequenos a manga rosa, maravilha de sabor e com poucas fibras, ao contrário da manga espada. Basta descascar a manga e cortar os dois grandes pedaços laterais ao caroço. O restante, come-se enquanto o preparo segue.

Os pedaços de manga entrarão junto com os cubos de porco, porque uns não suportam muito fogo e outros já estão meio cozidos. A manga se desfará totalmente e deixará somente aquele doce espetacular que contrastará com o gengibre, sem se agredirem mutuamente. Ao final de tudo, pouco antes de apagar o fogo, entram os brotos de soja já cozidos.

Entretanto, numa panela pequena, pus um pouquinho de gengibre picado e dois dentes de alho também picados bem pequeninos. Um pouco de azeite e uma xícara de arroz basmati. Tivesse eu talento e vontade, escreveria ode ao arroz basmati, ao seu cheiro e ao seu sabor, e bania as demais variedades… Enquanto duas xícaras de água esperam levantar fervura, o arroz com gengibre e alho é refogado em pouco azeita, mexendo-se sem parar.

Tão logo a água ferve, despeja-se na panela do arroz e espera-se que cozinhe até estar quase toda a água evaporada.

Evidentemente que sou suspeito e que um cavalheiro nem mostra suas mazelas, nem seus êxitos, mas estava de apetecer aos deuses. Acompanhou-se tudo com um chardonnay bem frio.

Linchamento. A imprensa apropriou-se da objetividade manipuladora.

O espetáculo mais feio que o gênero humano pode dar, antes da guerra aberta, é o linchamento. É uma forma de ação direta e, portanto, muito sedutora para as massas, amantes perpétuas do imediato.

Essa forma bárbara de se unirem várias pessoas em torno a objetivo comum renasceu no Brasil. E renasceu, deve-se dizê-lo, porque foi estimulada pela imprensa, como se as piores inclinações necessitassem de adubação.

Depois de dramáticos assassinatos por linchamentos – e não cabe descer ao nível de considerar se as vítimas eram ou não culpadas de algo – a imprensa majoritária entra em cena para faturar em cima da selvageria, como se não a tivesse estimulado anteriormente.

Fiéis à condição de imprensa mais desonesta e iletrada que se conhece, numa breve comparação com as congêneres por aí, passaram do estímulo à apropriação da dramaticidade. De qualquer forma, a postura era previsível e própria de quem quer ganhar sempre e de todos os lados, certos que coerência é algo inexistente.

A estratégia passa por reservar-se a construção da narrativa objetiva, à revelia da efetiva descrição dos fatos. Isso percebe-se facilmente nas entrevistas feitas aos parentes próximos das vítimas de linchamento.

Um repórter qualquer, munido duma pauta pré-fabricada e não munido de qualquer autonomia profissional, pergunta à esposa do sujeito que foi linchado como ela está sentindo-se. É a superficialidade e a patifaria elevados ao máximo, porque é óbvio que o cônjuge de alguém selvagemente assassinado está sentindo-se muito mal.

A pergunta é uma não pergunta, serve apenas para dar ares de reportagem e por dramaticidade subjetiva, abrindo espaço para a objetividade ser delineada em termos de editorial.

O repórter não pergunta ao parente da vítima quem ele acha que foi responsável por aquilo, se houve estímulos a desencadearem o movimento de massa, se acha que os criminosos serão punidos. Enfim, não se faz uma mísera pergunta objetiva ao entrevistado.

A única coisa que se faz à guisa de entrevista é pergunta óbvia de forte conteúdo dramático, que, não pondo qualquer elemento objetivo, reserva ao editorialismo a construção da narrativa da forma que bem entender.

Não é jornalismo, nem acrescenta coisa alguma a quem vê, o ter um parente de vítima a chorar e dizer que se sente mal. Pelo contrário, isso banaliza a selvageria, banaliza as lágrimas da vítima, banaliza o sentir mal. Tudo é tornado em espetáculo banal.

Dado o espetáculo da banalidade, fica para o meio de imprensa o caminho aberto para dar sua teoria rasteira do evento e, possivelmente, dá-la como novo estímulo meio disfarçado da barbárie, o que é evidente nas mal-disfarçadas sugestões de linchar os linchadores…

Shop Suey de camarões e anéis de lula. Um só prato, porque Giscard não é convidado.

Em 1976, o governo chinês ofereceu um banquete a Valéry Giscard D´Estaing. Fala-se que foram servidos 65 pratos, desde as entradas até às sobremesas. Não foi à toa que toda a sofisticação da alta culinária chinesa foi exposta nesta ocasião e não nas recepções a gente mais importante, como Nixon ou Kissinger. Estes últimos não perceberiam e a coisa perderia simbolismo.

Giscard tinha reabilitado o protocolo real Bourbon, no Eliseu, e portava-se como se fosse um deles e não apenas um filho de banqueiro que estudou na Politécnica e na ENA e que serviu ativamente na segunda grande guerra. Pedantíssimo, mas quase nobre, a verdade deve ser dita. Ele impressionou-se com aquela demonstração a evidenciar que a cozinha chinesa elevada era mais sofisticada que a francesa e que a etiqueta à mesa era mais sutil.

Para os comuns dos mortais, nós, enfim, é impossível saber o que é um grande e sofisticado banquete chinês. Imagino que seja fascinante, que seja demorado, que seja necessário beber goles d´água a todo momento, que seja necessária imensa memória para reter tantos sabores, que seja necessário ser muito parvo para não perceber que o anfitrião ri-se do convidado como um conselheiro do reino fazia dum rendeiro seu que vinha dar contas ao almoço.

Embora a alta culinária chinesa não seja conhecida, fato é que a cozinha plebéia cantonesa espalhou-se pelo mundo e é extraordinariamente homogênea nos milhares de restaurantes. Seria tolo achar que vendem em Roma ou no Porto o mesmo que em Guangzou. Mas, seria ainda mais tolo ainda dizer que não é chinesa essa comida oferecida em toda parte. E é deliciosa.

Com um wok, óleo, legumes, molho de soja fermentada e qualquer carne, ou sem carnes, faz-se aquilo que não dá errado: um prato que começa com fritura e envolve sabores pronunciados. Pois bem, resolvi enveredar pela cozinha comum chinesa, de posse de um wok, é claro.

Cortei uma cebola pequena em pedaços à toa, uns finos, outros quadrados. Piquei escrupulosamente um pedaço meio grande de gengibre. Deixei logo a cebola e o gengibre no wok com azeite e um pouquinho de molho de soja. Em seguida, cortei meia cenoura pequena em finas tiras de uns três centímetros, cortei uns poucos de brócolis e de couve flor.

Pus 400g de anéis de lulas e 400g de camarões médios para cozerem na água com pouco sal. Depois de levantar fervura, passam apenas um minuto e apaga-se o fogo e retiram-se da água quente. Tanto os camarões quanto as lulas são saborosíssimos com pouco tempero e pouca cocção.

Entretanto, põe-se para cozinhar macarrão de arroz. Apenas seis minutos depois de levantar fervura bastam. Reserva-se o macarrão escorrido.

É hora de acender o fogo embaixo do wok. Rapidamente, as cebolas, gengibre picado, cenoura fatiada e molho de soja começam a frigir e devem ser constantemente salteados com uma colher plana de bambu. A seguir, entram os camarões e anéis de lula e, pouco depois, os pedaços de brocoli e couve flor. Mexe-se o tempo todo, meio sem método, nesta panela que tem a mesma inteligência da grande frigideira de fazer paella.

Algum tempo depois, deita-se o macarrão, que deve ser bem misturado para impregnar-se do molho de soja. Come-se logo. Acompanhou um tinto forte argentino, Malbec. Mas, dá para comer com um branco forte, também, porque o sabor do gengibre é dominante, junto à peculiar doçura da lula.

O saque do Estado e os dilemas e interesses da classe média.

Não há nobreza senão no proletariado e na aristocracia. E não há inteligência em negar as estratificações que se conhecem pelos nomes consagrados. Isso deve ser dito, aqui no início, porque tornou-se moda negar não apenas a existência de classes, mas a própria classificação e sua terminologia própria.

Convém ainda anotar que classe média, como está no título, significa realmente classe média alta, porque ela pode realmente ser dividida. Dividi-la é negar o grande negacionismo patife que se instalou e oportunisticamente chamou de classe média todo um grupo heterogêneo que se aproxima tenuemente por critério de rendimentos auferidos.

É tolo por duas pessoas no mesmo grupo apenas por terem aparelhos de televisão do mesmo tamanho.

As identidades não se fazem mais fortes por similitude de rendimentos que por outros fatores mais sutis e etéreos. E o alargamento de banda de rendimentos permite colocar no mesmo saco muita gente que está distante, tanto nos rendimentos, como na instrução, nos anseios, na percepção da história.

Assim, essa estória de nova classe média é qualquer coisa de vaudeville ou então estratégia pensada para confundir. Realmente, interessa bastante à parte alta que a parte baixa acredite-se partícipe de um mesmo núcleo de aspirações e não perceba a realidade: a luta. Não há sucesso maior que fazer o oprimido acreditar-se em comunhão com o opressor.

Neste ponto, entrego-me à uma lástima antiga, que sempre me assalta quando penso no Brasil: não há liberais clássicos neste país, exceto por um e outro isoladamente, que recebeu por herança o pensamento juntamente com os bens. Resulta que quase todos os discursos liberais não passam de desonestidade e insuficiência intelectual.

A tal classe média alta deu para achar que faz discurso liberal, quando defende apenas a apropriação do que tem sido gasto pelo Estado com políticas de rendimentos mínimos e outras iniciativas de seguridade social. Ora, o liberalismo não postula o alargamento da desigualdade como objetivo a ser perseguido. Na verdade, o liberalismo define-se bem pela ausência de objetivos definidos; não é um programa, senão uma reunião de meios. Os objetivos têm que ser cuidadosamente disfarçados.

Essa gente, na verdade, sempre está a meio caminho de algum fascismo de defesa corporativa, talvez por nostalgia do que a fez ascender, que certamente não foram os méritos que proclamam. Têm alguma repugnância pela estética puramente fascista, mas desejam ardentemente a impressão de ordem e o assalto compacto do Estado.

As classes baixa e média baixa tampouco são liberais ou têm alguma noção mais precisa do que seja isso. Elas estão em verdadeira ebulição, vivem a mistura dos anseios de progresso material e estabilidade, ou seja, temem profundamente os retrocessos.

São a matéria perfeita para a edificação de um fascismo clássico, que permite ver o Estado a desempenhar o linchamento do diferente, a propósito de dar espetáculo em data certa. Vão em busca da técnica com empenho sincero e dedicam-se à superficialidade nas humanidades clássicas. Seu flerte com o bacharelismo jurídico gera os rebentos mais monstruosos que a sociedade vê.

É difícil conceber um acordo real e consciente entre as classes média alta e baixa, na medida em que não comungam de interesses e de identidades na medida do que a parte de cima quer fazer crer. O acordo é possível a partir de inverdades e traição pura e simples a posteriori. Em bases claras, não vai adiante porque ninguém o aceitará.

Curioso é perceber que a parte alta vem apostando em alguma sinceridade narrativa, nestas vésperas de eleições presidenciais, o que significa dizer que postula abertamente a cessação das políticas de redução das desigualdades sociais. Ora, estas políticas beneficiam as partes mais baixas, o que implica a necessidade de enganá-las para apoiarem a supressão do que as beneficia.

De qualquer forma que se olhe esta tentativa, há que reconhecer que carrega boa dose de audácia e crença na burrice alheia.