Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: junho 2014

Suárez, a FIFA, o fetichismo e a construção da anomalia.

Todas as entidades, sejam públicas ou privadas, com origens culturais no mundo greco-romano-judáico recorrem ao discurso jurídico para afirmar-se. O que caracteriza a cultura ocidental, mais que qualquer outra coisa, é a lógica de tribunal e a hipocrisia.

Justiça, no sentido de equidade, nada tem a ver com lógica de tribunal. Na verdade, esta última é a grande avalizadora da injustiça, o que não representa problema algum para nós, que afastamos esta contradição com boas doses de hipocrisia.

A FIFA é aquela entidade a cuidar do futebol no mundo todo, servindo-se de seus tentáculos em cada país. É um negócio multi milionário mesmo se não se contabilizarem os dinheiros sujos que por ela passam.

Recentemente, a inclinação da FIFA para a delinquência financeira, notadamente o pagamento de subornos e o branqueamento de capitais, vem merecendo mais destaque. Aqui e acolá sabe-se de algum caso e não é de todo impossível que algum funcionário menor tenha que haver-se com a justiça na Suíça.

Suárez é um brilhante atacante uruguaio que atua no Liverpool, atualmente. É o atual artilheiro do campeonato inglês, tendo marcado apenas trinta e um gols…

Eis que Suárez, num lance típico de área, em que atacantes e defensores se agarram numa cachorrada imensa, mordeu o ombro do defensor italiano. Começou um movimento estranhíssimo para tornar esta imensa banalidade num ilícito gravíssimo.

Pois bem, a FIFA puniu Suárez com suspensão de nove jogos, multa de U$ 247.000,00 e banimento por quatro meses, por este nada acontecido no jogo entre Uruguai e Itália. Um dia depois de anunciada esta punição redentora, de caráter preventivo, como tem que ser alardeado para seduzir as massas, a própria vítima da mordida disse que era um despropósito.

Coisas muitíssimo mais graves ou nunca foram punidas, ou mereceram punições muito mais suaves. Basta lembrar a cotovelada de Leonardo em Tab Ramos, que caiu desacordado imediatamente, no jogo entre Brasil e EUA, em 1994. Por esta ação violentíssima, Leonardo foi punido com suspensão de quatro partidas.

O mais significativo desta encenação de vaudeville no caso Suárez é como é fácil tornar uma banalidade, um nada, em algo a espelhar a seriedade da entidade, que pune exemplarmente as ações violentas. A construção dessa fraude discursiva faz lembrar o pensamento de Foucault.

O discurso baseia-se fortemente na premissa de que é necessário punir para evitar que ocorra novamente. E todos dizem, a todo momento, que esta já foi a terceira mordida dada por Suárez, como se isso tivesse alguma importância. Há futebolistas que dão dez ou mais pancadas violentas por partida, enquanto o sacrificado Suárez deu três mordidas em toda a carreira.

Aqui, novamente, algo que Foucault sempre chamou atenção relativamente à construção discursiva da figura do infrator: há que se fazer um arrolamento de condutas, uma listagem pregressa que constitua um fio delitivo contínuo a indicar que se trata de uma personalidade anormal.

É curiosíssimo perceber como a enumeração de três condutas iguais leva a frêmitos e acusações de reincidência, como se não houvesse dezenas de casos muito mais graves e mais constantes, que não merecem qualquer punição.

A coisa tem ares de fetichismo, por outro lado. Das mordidas de Suárez não resultaram quaisquer danos aos outros jogadores. Muito diferente das cabeçadas, cotoveladas, soladas na canela, carrinhos por trás a prender o pé de apoio da vítima, pontapés e até socos, que não são incomuns. Muito ao contrário, o futebol, hoje, é bastante violento e duro.

O que mais escutei falar disso, depois de opinar que se trata de uma palhaçada, foi: porra, mas foi uma mordida! Sim, foi uma mordida, e daí? Acaso é pior que uma cotovelada? O caso é que poucos param para um momento e daí, em que se pensa com calma e se vê a bobagem erigida em delito grave.

Qual o problema que foi uma mordida? Nenhum. O caso é que mordida é como se fosse algo impróprio ao futebol, como se houvesse algum tipo de violência própria a este esporte. Este é o campo da interdição simbólica, do medo e do fetichismo.

Não pode morder, embora possa dar pontapés, por em risco tíbias, perônios, tendões e outras coisas mais cujas lesões são graves e de difícil recuperação. A mordida foi erigida em quase tabu e um mal em si mesma, independentemente de considerações sobre sua lesividade potencial e real no caso concreto.

As interdições de matriz no tabu são assim, elas não são por parâmetros objetivos e racionais dirigidas a condutas mais graves que quaisquer outras. Elas são graves porque subjaz algo de sexual nessas condutas, algo de fetichista e algo de religioso.

A gravidade da mordida que não machuca é semelhante à interdição católica da masturbação, algo cuja lesividade é zero e cuja reprovação é puramente baseada em simbolismo.

Fato é que esta comédia em que se sacrificou Suárez no altar da delituosidade criada a partir de fetichismo serviu à FIFA, que pode pôr em prática o discurso de tribunal, invocar a sedução das punições exemplares e preventivas e distrair a atenção do público das coisas reais que são seus casos de profunda corrupção.

Segregação por aparência.

Toda lógica de atuação social tende a tornar-se inercial e, portanto, autoreplicar-se sem que os agentes percebam claramente o que fazem e porque o fazem de tal ou qual maneira.

O domínio de poucos sobre muitos depende bastante deste tipo de inércia percebida como um estado natural de coisas. Claro que isso tudo, de tempos em tempos, é temperado com pequenas pitadas de razoabilidade e de aparência de igualdade formal.

Em junho, acontece algo extraordinário nestas bandas do nordeste do Brasil: festas de São João que levam quase o mês inteiro. Em Campina Grande, precisamente, há um espaço dedicado à realização desta farra de trinta dias, que hoje pouco tem de tradicional, na verdade.

Como é intuitivo, o espaço fica cheio de gente, e nos finais de semana fica tão repleto que é quase intransitável. Esse tipo de aglomeração é ideal para a prática de pequenos furtos e alguns roubos. Assim, são tomados certos cuidados com a segurança.

Todo o amplo espaço é fechado no seu perímetro, a partir das cinco horas da tarde, e há quatro ou cinco locais de entrada e saída. Nestes pontos, há dois corredores de entrada, um para mulheres e outro para homens.

Neles, fiscais passam rapidamente aqueles detectores portáteis de metais, em busca de armas brancas ou de fogo. Caso os detectores acusem metais, o que quase sempre ocorre, por causa de moedas e chaves, faz-se uma rápida revista com as mãos. Realmente, não é nada constrangedor, nem invasivo.

Não gosto de multidões concentradas, nem gosto dessa música ruim que o atrevimento sem fim da indústria de entretenimento achou de chamar de forró, nem gosto de pagar caro por coisas ordinárias. Assim, só vou lá bem cedinho, pelas seis, sete horas, para uma brevíssima volta, pois nesta altura há pouquíssima gente e apenas trios de forró de verdade.

Eis que entrava e o detector de metais apitou. Claro, tinha um bolso cheio de moedas e no outro as chaves de casa. Parei e fiz menção de meter as mãos nos bolsos e retirar o que lá se encontrava, para provar ao sujeito da segurança. Ele balançou a cabeça e disse: nada, pode entrar, vocês são gente de bem… 

O maluco concluiu que éramos gente de bem – o que quer que isso signifique – e não fez em mim a revista com as mãos, que é de praxe quando o detector apita. Tudo bem, segui em frente. Mas, detive-me brevemente, apenas o suficiente para entrever uma cena que daria uma tese de doutoramento.

Atrás, entravam pai e filho, sendo este último uma criança à volta de quatro anos de idade. O detector de metais apitou quando o pai entrou e ele foi rapidamente apalpado nas pernas. Em seguida, entrava o menino, que devia ter qualquer coisa metálica no bolso e foi revistado manualmente.

A revista não teve nada de agressiva, intrusiva, humilhante, nada disso. Foi rapidíssima e superficial. Acontece que um menino de quatro anos foi revistado e eu não fui, mesmo que o detector de metais tenha apitado nos dois casos.

O menino de quatro anos e o pai eram pretos, assim como o sujeito da segurança…

Mais médicos: o porquê da histeria e do ódio da classe dominante.

Indicador muito seguro de algo favorável à maioria dos brasileiros e ser alvo do ódio e da histeria da classe dominante, materializados nos discursos da imprensa, repercutidos incansavelmente pela pequena-burguesia.

Tudo que se fez a beneficiar o maior número foi atacado violentamente e o programa mais médicos evidentemente não seria exceção a esta regra de ouro. Foi bombardeado diariamente na imprensa majoritária e estes ataques mereceram amplificação constante pela classe média alta, que além de repetiu o que lhe foi ensinado, acrescentou mais tolices por sua própria conta.

Ontem tive a preciosa ocasião de almoçar com doze médicos cubanos que estão por aqui, no âmbito do programa mais médicos. Um bom almoço e aprazível tarde de convívio com os cubanos. Percebi à perfeição porque a classe dominante vota tanto ódio ao programa e principalmente aos cubanos que vieram. Eles são um perigo real à estrutura de segregação social tão bem montada e mantida no Brasil.

É absolutamente desconcertante para um brasileiro munido do mínimo de auto-crítica conversar com médicos normais, com médicos a se comportarem como pessoas comuns. E os cubanos são assim totalmente normais e mais bem instruídos em termos de cultura geral que seus similares brasileiros. Dispostos à conversação, falantes de um castelhano fácil de compreender, esforçadíssimos para falarem português, curiosos mas não invasivos, disponíveis para responder à nossa curiosidade.

A ameaça reside exatamente em que os mais pobres emancipam-se a pouco e pouco na medida em que têm acesso a serviços de saúde prestados por pessoas que não se portam como semi-deuses nem pensam só em dinheiro, nem trabalham primordialmente para a indústria. Depois que descobrem ser possível outra realidade diversa daquela do inacessível, caro, grosseiro e funcionário de laboratório, quererão o serviço a que têm direito.

As pessoas que utilizam os serviços de cuidados básicos de saúde estão encantadas com essa acessibilidade, disponibilidade, assiduidade que realmente observa-se nos cubanos. Elas são capazes de perceber as diferenças, entre elas a mais evidente: a presença física do médico cubano em todo o período de trabalho. Na verdade, bastaria a assiduidade para perceber as diferenças.

Aparentemente, a histeria da máfia de branco brasileira não tem muito sentido, além de reação contra a diferença, até porque os estrangeiros do mais médicos não podem fazer qualquer coisa além de trabalhar em programas de saúde da família – PSF. E somente podem passar até três anos no Brasil, depois têm de retornar. Ou seja, os estrangeiros do mais médicos não representam qualquer ameaça ao mercado dos médicos brasileiros, pois com eles não competem.

Acontece que os médicos brasileiros trabalham para a indústria de medicamentos, equipamentos de imagens, próteses e etc. Assim, reproduzem os discursos destas indústrias e voltam-se contra uma medicina de cuidados básicos que não pede exames desnecessários, nem preceitua remédios inutilmente.

Faz bem a classe dominante em temer os médicos estrangeiros, pois eles fornecem os parâmetros para o povo perceber a aberração que é a indústria da medicina no Brasil, que só trabalha para si e seus patrões, relegando o principal, que são os pacientes, para prioridade penúltima.

A pequena burguesia e a necessidade de levar a classe baixa ao suicídio político.

A política é o espaço dos conflitos de interesses de grupos e classes, ou seja, o espaço próprio da luta de classes. Na política, está pressuposto o escolher, o tomar decisões a partir de alternativas possíveis. Não se trata, portanto, do âmbito do bem e do mal, não é o campeonato da moralidade. Aqui, está em jogo a apropriação de parcelas da riqueza gerada num certo espaço; quem fica com quanto.

Os grupos minoritários precisam esconder essa realidade a qualquer custo e, por isso, oferecem o discurso moralizante como forma de afastar o que efetivamente está em jogo. Os grupos minoritários, que correspondem aos dominantes, precisam evitar que os maioritários percebam que não há correspondência de interesses entre as diversas classes.

No Brasil, a disparidade na apropriação das rendas é de fazer corar qualquer pessoa bem alfabetizada que não esteja a soldo de interesses maiores. Ela, em resumo, justifica-se discursivamente na mitologia do mérito, o nome que se usa para inércia social. 90% dos meritocratas brasileiros estão onde estão porque nasceram onde nasceram. Mas, para a rapina é preciso crença, então essa gente acredita na mistificação da meritocracia.

Pois bem, de alguns anos para cá, anos que correspondem precisamente aos dois governos do Presidente Lula e aos quatro da Dilma, a desigualdade recuou. A melhora na distribuição das rendas resultou bem para todos, mas evidentemente esses benefícios não foram proporcionalmente iguais para todas as classes.

Os mais acima ganharam muito, tanto vendendo bens de consumo e imóveis, quanto vendendo dinheiro. Os mais abaixo ganharam mais, relativamente, porque tiveram acesso a pouco, depois de muito tempo com acesso a nada. Os do meio também ganharam, mas menos que os demais estratos. Os do meio e principalmente da parte superior do meio, são a pior gente que há, não apenas no Brasil. Incapazes de guerra, recorrem à sabotagem.

A redução das desigualdades fez-se de maneira óbvia: programas de rendimentos mínimos e aumentos do salário mínimo. Isso, além de certo conforto material, levou às fronteiras do rompimento do pensamento da eterna servidão e às raias da crença quimérica na igualdade. Os de muito de cima acharam ótimo, à exceção de um e outro profunda e sinceramente imbecil e fascista in pectoris. Os de cima celebram o aumento do mercado interno, salvo quando são entreguistas a ponto de trabalharem contra si próprios.

A classe média alta, esta não perdoa a inclusão social de vastos milhões de concidadãos. Ela é capaz de perceber que o movimento de ascensão dos pobres reduziu tensões e criou mercados para seus serviços, mas não tolera que o Estado tenha despendido com os ascendidos dinheiro que ela classe média alta queria para si. A questão é de divisão do roubo e de simbologia do poder.

Hoje, às vésperas de eleições presidenciais, a classe média alta vota para tomar para si os dispêndios estatais com programas de redução de desigualdade social. São contra aumentos do salário mínimo e contra o bolsa família porque querem estes dinheiros para si, na forma de isenções de imposto de renda e de isenções de imposto de importação de automóveis.

Para essa gente, a disputa é por dinheiro e, secundariamente, por manutenção de símbolos de poder. Os funcionários domésticos encareceram, no Brasil, de doze anos para cá. O trabalho doméstico é estigmatizado como o mais próximo ao nada e ainda permanece destituído de direitos e assimétrico a todos os outros trabalhos, sem que haja razão para isso.

A classe média alta viu-se obrigada a gastar mais para manter seus servos domésticos e, mais que isso, obrigada a fazer de conta que os considerava iguais, embora apenas pessoas com salários menores. No íntimo, encheram-se de rancor e buscam reverter esta situação. Aí está a esperança de quantos se oferecem contra a candidatura da Presidente Dilma: o rancor da classe média alta.

Precisam convencer os da classe baixa a votarem contra quem lhes melhorou a vida materialmente. Contam com a preciosa ajuda da imprensa dominante, que é contra qualquer coisa que diminua a concentração de riquezas, porque teme que venha na esteira a desconcentração do poder mediático. Só há uma forma de levar a classe baixa a votar contra si mesma: fazer acreditar na identidade de interesses.

Para tanto, é fundamental fazer acreditar na inexistência da luta de classes e na indiferenciação política. Isso implica espetáculo e moralismo, o que é ofertado maciçamente na imprensa. Tal estratégia tem boas chances de êxito, mas resta algo a considerar.

Caso a direita ganhe as eleições presidenciais de outubro e tenha mandato para executar seu programa concentrador e entreguista, terá que dispor de meios para aplacar as reclamações que emergirão inevitavelmente dos que rapidamente regridirão. Será difícil fazê-lo somente com editoriais de jornais televisivos e novelas. Mais difícil ainda será fazê-lo com repressão policial.

Como quer que seja – e não é remota a possibilidade da direita ganhar – fica para a classe baixa e para a esquerda clara a necessidade de evidenciar que política é conflito de interesses e não campeonato de moralidade.

A juridiquice a serviço da demofobia e contra a constituinte da reforma política.

Resultou da assembléia constituinte instalada pela emenda nº 26 à constituição de 1969 o que se esperava dela: um documento de compromisso, muito longo, mal redigido, apto a alimentar o fetichismo litigante, enfim, uma obra feita à semelhança dos seus autores, tanto quanto às suas capacidades, quanto relativamente às suas aspirações.

Claro que há coisas boas e elas são, basicamente, o elenco dos direitos fundamentais, abrigados sob a cláusula de imutabilidade exceto por rutura institucional plena. Não podiam escapar a esta tendência jurídica à irrealidade, a par com a não aceitação de suas pretensões geológicas. A conformação do Estado, essa ficou especialmente mal feita, o que não se sabe se foi de caso pensado ou por puro descuido.

A federação não apresenta incompatibilidade com o parlamentarismo e deveríamos ter adotado esta forma naquela ocasião. Posteriormente, sempre foi adiada ou afastada a discussão, porque ela sempre retornou como golpe de ocasião contra o grupo instalado no poder. Semelhantemente dá-se com a reeleição para cargos executivos, que deveria ter sido prevista no texto original e que foi criada como golpe, depois, ao sabor de circunstâncias.

Curiosamente, os constituintes quiseram proclamar, logo no início, que o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos, ou diretamente. A fórmula, a despeito de meio piedosa, está suficiente e merece o destaque. Tanto merece, que foi esquecida pelos guardiões das juridiquices, que aspiram muito mais à criação de um Estado tecnocrático que à democracia.

Certamente que a puseram lá no início e sem ambiguidades – algo raro nos textos legais brasileiros – porque nela nunca acreditaram. O poder nunca emanou do povo, nunca foi por ele exercido e a expectativa das classes dominantes é que nunca fosse, ainda que timidamente.

Agora, fala-se na convocação de plebiscito para consulta popular sobre a instalação de constituinte parcial a visar a reforma política. Melhor seria dizer reforma do Estado, mas o nome não compromete a ótima idéia. A governação do presidencialismo de maioria circunstancial é especialmente complicada no Brasil e as coisas precisam ficar mais claras, até para ficarem mais baratas.

Parece-me que mais uma vez perder-se-á a ocasião de afastar a figura do Chefe-de-Estado das intrigas mesquinhas do dia-a-dia, ou seja, não haverá parlamentarismo. De qualquer forma, convém redesenhar o presidencialismo brasileiro e retirar do congresso nacional as possibilidades tão amplas de ser chantagista e pusilânime, ou seja, dar-lhe responsabilidades a par com seus vastos poderes.

O espectro político ideológico não comporta tantas variações quantos são os partidos políticos. Conclusão óbvia é que várias agremiações representam as mesmas coisas ou representam coisa nenhuma, o que vem a dar praticamente no mesmo. Não se cuida de querer alguma espécie de bipartidarismo, mas da evidência da utilidade da cláusula de barreira.

O financiamento das campanhas eleitorais tem de ser público, a partir de um fundo a ser repartido conforme as representações existentes antes do pleito futuro. Isto evita a captura despudorada dos partidos pelos interesses econômicos e afasta a insegurança jurídica subjacente aos financiamentos privados por caixa 2.

Todavia, além dos aspectos puramente eleitorais, ou seja, relativos diretamente à forma de se fazerem eleições, é ocasião para reformar o Estado e inibir um jogo perigosíssimo que se tem visto aprofundar-se. É necessário estabelecer o que é o poder judiciário, que padece da legitimidade do voto popular.

O aplicador – e excepcionalmente intérprete – da lei não vai além disso, porque não pode escolher nem criar a regra sem para isso ter sido escolhido pelos cidadãos. O judicial brasileiro viola esta regra básica há tempos e fá-lo sem quaisquer críticas consistentes nem dá sinais de querer retornar a ser o que pode ser num panorama estritamente formal.

O Brasil tem uma aberração chamada justiça eleitoral, que avança sempre no seu afã de legislar sobre as eleições, superpondo umas às outras camadas de resoluções confusas e muitas vezes contraditórias. Vezes há que avança contra competências do poder legislativo como se fosse uma brigada de ungidos de Deus.

 É comum a insegurança persistir até depois das eleições e é possível entrever que situações mantidas em suspensão servem bem à causa da desmoralização da política, algo que interessa às corporações burocrático-jurídicas, mas não ao país.

Evidentemente, a corporação jurídica, dentro e fora do Estado, cerrou fileiras contra a convocação da constituinte exclusiva para a reforma política. A demofobia funciona como o medo do fogo nos animais que não falam: é instintiva. É tão forte que a primeira barreira violada é a da coerência.

Ora, nada há de juridicamente impróprio na convocação de uma constituinte parcial e específica, por meio de plebiscito. A própria constituição vigente previu os instrumentos de participação popular direta, bem como as duas formas de consulta aos cidadãos: plebiscitos e referendos.

Por outro lado, a reforma que se busca não atinge os fetiches supremos dos juridiquistas, as cláusulas pétreas. Aqui, não me contenho e abro um parêntesis para admirar o gosto do ridículo e o romantismo tardio do juridiquismo. O sonhar com regra petrificada beira a loucura! Não se petrifica nada na história e o direito está dentro dela, não fora.

Se os constituintes não tiveram a coragem de evitar fórmulas democráticas e a criação de instrumentos de participação popular, seus sucessores deveriam obedecer às aparências e jogar o jogo pelo regulamento. Aberrante é, com medo do que pode resultar, trabalharem contra a idéia socorrendo-se de grupos que, se puderem, suprimem o próprio congresso.

Enfim, não interessa à melhoria da governação do país afundar-se em discussões tão bizantinas quanto insinceras sobre a possibilidade da instalação da constituinte parcial e específica, após aprovação popular da convocação. É perfeitamente possível submeter a idéia ao povo e instalar a assembléia constituinte, porque, afinal, a soberania é popular.