Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: outubro 2014

Mensalão: a ruína de uma farsa.

Um tribunal de segunda instância de Bolonha desnudou completamente uma farsa judiciário-mediática que comoveu a pequena burguesia brasileira por três anos. Arrisco-me a afirmar ter sido a maior de todas, a mais perversa, a mais celebrada farsa com finalidades políticas já produzida no Brasil.

Um dos réus da ação penal 470 – o tal mensalão – foi absolutamente genial: Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil. Ele é cidadão italiano, além de brasileiro, e escapou do linchamento judiciário para a Itália, lá entrando com o passaporte do falecido irmão. Creio que cometeu este pequeno ilícito propositalmente, o que demanda julgamento dele lá.

O interessante é que os partícipes da farsa insistiram para o Estado brasileiro pedir a extradição de Pizzolato, para cumprir a pena que se lhe impôs no juízo de exceção patrocinado pelo supremo tribunal federal. Melhor, para quem queria que a coisa se mantivesse com a aura de restauração da bondade, era não ter feito isso…

O pedido de extradição de um nacional demanda apreciação judicial dos aspectos formais do processo criminal no outro país. Não implica, é verdade, que se entre no mérito do julgamento, desde que se trate de crimes previstos nos dois países. Todavia, verificar a regularidade formal do julgamento foi o que bastou para negarem a extradição de Pizzolato, porque muitas e muito básicas garantias fundamentais foram violadas na farsa.

Verificou-se o que muitos diziam, mas poucos acreditavam, porque a imprensa bombardeou o público diariamente com a noção de que se praticava o maior ato de justiça da história do Brasil. Criou uma comoção moralista que arrastou a classe média a delírios fremitosos de satisfação com o linchamento que se chama julgamento.

O tribunal de Bolonha observou que: não houve duplo grau de jurisdição; houve ocultação de provas favoráveis ao réu, mantidas sigilosas em inquérito paralelo.

São duas violações gravíssimas, a revelarem a aberração que é o estado mental das pessoas que tiveram a idéia e a levaram adiante. Qualquer encenação em que se suprima o duplo grau e se escondam provas favoráveis aos réus é tudo, menos um julgamento.

Esta farsa foi montada visando a dois objetivos principais: primeiramente, afastar o valoroso José Dirceu da vida pública, encarcerando-o e privando-o de direitos políticos injustamente; o segundo, criar um escândalo de grandes proporções e alto conteúdo dramático, a ser explorado pela mafiosa imprensa brasileira contra o governo atual.

Inicialmente, os dois objetivos pareceram plenamente atingidos. Mas, o fascismo moralizante despertado com o linchamento não foi suficiente para evitar a vitória da Presidente Dilma nas recentes eleições, o que era o grande fim visado.

Terrível, nisto tudo, é perceber o nível de vale-tudo a que chegou a parcela fascista da direita brasileira, que serviu-se da imprensa e do maior tribunal do pais para encenar uma farsa imensa, mesmo que isso levasse, depois, ao descrédito dessas instituições, ao menos nas pessoas mais informadas e capazes de pensarem com as próprias cabeça.

Compro, logo existo.

A proposição cartesiana, a estabelecer relação causal entre pensar e existir, sempre me pareceu alguma ironia, porque não me permito achar Descartes tolo. Acresce que ela é perfeitamente inversível, pois existo, logo penso, faz também sentido, à partida e sob perspectiva lógica formal.

Descartes era muito antropocêntrico, como seu século, e assim toda sua ontologia. Soa meio infantil, mas é inegavelmente uma proposição direta e servível. Ele não cogitava do fim da história, isto é certo…

Fato é que experimento mais uma das boas visitas à terra dos que se lançaram ao mar, há quinhentos anos, e se entregaram ao decadentismo mais lento e constante já visto. Não uso desta oportunidade para falar das minhas impressões, que não mudaram substancialmente.

Não venho com este texto para comentar alguma beleza, alguma sutileza percebida, alguma coisa interessante ou original. Isto aqui tem a ver com deselegância, brutalidade, novo-riquismo. Tem a ver, portanto, com a classe média alta e alta brasileiras. Elas são piores fora do Brasil que nele, o que inicialmente soa contraditório.

Fora, estão mais à vontade e não conseguem evitar o destaque, por contraste ao que circunda. Não é uma questão de ser percebido por características étnicas ou pelos trajos. Essas coisas estão já bastante baralhadas e, relativamente aos trajos, a classe dominante viajante brasileira é vanguarda, ou seja, aquilo que está a um átomo de ser ridículo.

A questão é: os brasileiros, no exterior, compram tudo quanto vêm pela frente. Precisamente os estratos sociais que nutrem mais ódio contra o governo atual, que lhes melhorou sensivelmente as condições econômicas, são os que mais viajam e mais compram. É superlativo o consumismo desta gente e totalmente diversificado.

É de tal maneira brutal, que constrange até alguns que vendem e ganham a vida com isto, posto que a ausência de gosto e necessidade de afirmar a posse de dinheiro sobrepõe-se a tudo. Há setores em que o comprar e vender envolve um jogo de regras conhecidas, em que se fingem curiosidades e se afirmam refinamentos, além de se discutirem preços. Conversam vendedor e comprador em certos ramos do comércio, a valorizarem a transação.

Com a invasão brasileira isto não acontece. A compra é um ato isolado, a ser repetido à exaustão. Tanto faz que sejam souvenires comuns, daqueles que se vendem nas áreas mais turísticas, quanto sejam roupas, relógios caros e ruins com marcas de roupas, cosméticos, bebidas, eletrônicos, computadores, qualquer coisa, enfim.

A preparação que antecede a ida de um grupo alto médio classista brasileiro ao aeroporto, depois de suas jornadas aquisitivas, é coisa a ser observada ao menos uma vez, que mais de uma tende a intoxicar ou deprimir. Em frente ao hotel está o ônibus que conduzira os humanos ao aeroporto; em frente ao veículo, um guia atarefado, a pedir ordem, a lembrar que o avião não espera…

Descem as malas e isto é o que importa; é a imagem que gostaria, se o talento fosse suficiente, de pintar com palavras: a descida e acumulo das malas no saguão do hotel e, depois, na fila de cheque do aeroporto.

Há velhotas a conduzirem malas de 40 Kg, algo prodigioso que me faz pensar no descompasso entre os limites mentais e os físicos. O consumo, a posse do que foi avidamente consumido, estende muito os limites físicos e permite que estas malas tão grandes quanto um pigmeu sejam empurradas, roladas e afinal cheguem aos seus destinos.

Claro que ainda há destes viajantes mais ligados ao século XIX e que necessitam de serviçais para carregar suas bagagens dignas de mudanças definitivas. Terrível é não gratificarem os serviçais, coitados deles que pensavam ter saído da escravidão até depararem hordas de brasileiros neo ricos ainda a supurarem as feridas narcísicas.

Alguém que perca seu tempo a ler este retrato do feio poderá obstar que as personagens aqui comentadas são mais universais que se supõe. Ao que direi previamente que há elementos a provar a originalidade.

A franquia de bagagem por peça, nos voos saídos do Brasil e com retorno a ele, se comprados os bilhetes no Brasil, é a maior do mundo: duas peças de até 32 Kg! Esta massa, se se compuser de roupas e outras coisas de higiene pessoal, é suficiente para uma pessoa comum viajar seis meses ou mais. Não se entregue ninguém à tolice de achar 64 Kg de roupas pouquinha coisa.

A acomodação destas dúzias de volumes pesadíssimos no veículo que conduzira o homo qui emit leva mais tempo que o habitual, quando se trata de conduzir outras variações do que Lineu chamou generosamente homo sapiens. A chegada à aerogare, contudo, é o momento triunfal!

Uma simpática funcionária da companhia aérea perguntava-me se as coisas estão assim tão caras no Brasil. Compreendi perfeitamente. Respondi-lhe que sim, estão mais caras que lá, mas nada que justifique um furor aquisitivo tão desenfreado e tão difuso. E nada que justifique o pagamento por excesso de bagagem, algo frequente a despeito da enorme franquia para o homo qui emit.

Cobrar do alto médio classista brasileiro a taxa por ter excedido o imenso limite de peso para as bagagens é um martírio para o coitado do funcionário da companhia aérea. Acontece que muito candidamente o pequeno-burguês brasileiro não tem em mente que seus limites são superiores aos de todos os demais cidadãos do mundo. Eles creem-se aquinhoados muito naturalmente por algo que não poderia ser diversamente.

Aqui outro ponto interessantíssimo: a classe dominante – ou, melhor dizendo, os servos intermédios da classe verdadeiramente dominante –  não percebe as suas diferenças relativamente a grupos de outros países, que se encontrem mais ou menos nas mesmas condições sociais e econômicas nas suas origens.

Acha-se igual ou melhor, o que revela incapacidade brutal de ver-se, de ver os outros, de perceber diferenças e semelhanças. A gente brasileira que viaja para fora é, insofismavelmente, pertencente aos estratos mais altos da sociedade. Não há bilhetes de menos de 1000 euros, exceto se o destino for a Argentina. Isto não é pouco dinheiro e há que se lembrar dos outros milhares que serão gastos com bugingangas.

Pois esta gente é totalmente autorreferente, ignorante, consumista e desprovida de gosto. E acha-se mal posicionada na escala social brasileira; e acha-se merecedora de mais dinheiro; e lamenta não poder ter mais escravos domésticos; e diz gostar de ir à Europa…. Para quê, afinal?

O espelho de Narciso e o suicídio involuntário.

A pequena-burguesia brasileira foi levada a crer que é importante, ou seja, que é o centro das atenções, o ponto em torno a que tudo gira, que suas opiniões são importantes e principalmente que ela tem algo relevante a dizer sobre tudo, como sói acontecer com Caetano Veloso. Essa obra de ilusionismo deve-se à imprensa mainstream, naturalmente.

Esse tipo de fantasia ajuda bastante a imprensa, na sua cruzada incessante contra qualquer governo que desconcentre, ainda que pouco, a apropriação de riquezas no Brasil. Além de imbecilizar as classes sociais suas clientes, a imprensa consegue aumentar a já enorme auto-referência. O narcisismo exacerbado, por seu turno, retroalimente a imbecilização.

As classes médias altas acham que ganham pouco dinheiro e querem que o dispêndio com programas sociais para os mais pobres seja-lhe dirigido. Por isso, com raivinha da atual presidenta da República, marcham em ordem unida com as outras duas candidaturas viáveis: a de Marina Silva, financiada pelo banco Itaú, e a de Aécio Neves, da direita de longa data e não aventureira.

Acontece que nenhum dos dois, nem a do Itaú, nem o queridinho da imprensa, suprimirá, caso eleito, dinheiro de programas sociais para entregá-lo às classes médias altas. Esse dinheiro, a parte do que for suprimido, será destinado ao grande capital, nomeadamente por meio do pagamento de juros remuneratórios de títulos públicos.

 Mas isso, que não é tão difícil de perceber para quem pensa sem se colocar como centro do mundo e sem recorrer a veículos de imprensa, não ocorre à maioria da pequena-burguesia e principalmente àqueles que são funcionários públicos. Mais extraordinária é a ausência de memória desta gente, que apagou os registros de como foi tratada no exemplo anterior mais próximo à candidata do Itaú e no exemplo eloquente que foi o governo do patrono do queridinho da imprensa.

Nada obstante, o ódio a que foi conduzida larga parcela da pequena-burguesia pela imprensa brasileira cegou-lhe totalmente a vista e obstou-lhe qualquer rasgo de sensatez, ainda que eventual e rápido. Se é verdade que o exemplo ensina, também é que se lhe esquece rapidamente…

Assim, pensando com o fígado e alguns poucos neurônios, muitos votarão contra si mesmos e contra o maior número, porque acham-se injustiçados por não receberem o que se acham merecedores, como centro do mundo que são.