Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: março 2015

A morte de uma estrela. Ou, tentativa de compreender os efeitos da decadência norte-americana.

Este texto foi originalmente escrito em abril de 2010.

Era previsível que o processo histórico acelerado cobrasse aos EUA algum preço. A decadência é real, no sentido de perda de soft-power. A influência é exercida diversamente; não mais organizada e nitidamente, mesmo que por meio da guerra, mas por intermédio do caos, da destruição levada quase como imposição de solidariedade na agonia que se avizinha. As faces mais destacadas do processo são econômicas. É lugar-comum fixar-se no econômico, como nas obviedades em geral. Mas a desordem é para muito além do econômico. Esse é o risco para o mundo em geral e para os sul-americanos particularmente.

Dois processos se distinguem, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas e suas mortes serão diferentes, portanto. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

Ódio golpista e diferenças relativas de classes.

A imprensa conseguiu enfim criar níveis de ódio suficientes para se levar à frente o golpe de Estado fundado na difusa histeria moralizante. Semeou no terreno mais fértil: a classe média.

O interessante é que os sujeitos a serem instalados no poder estatal pelo golpe não são de classe média, nada devem a esse estrato social e nada farão por ela. A classe social onde fermenta o ódio golpista à maior temperatura perderá com o que patrocina.

Cega, não percebe ser instrumento de algo que beneficia a meia dúzia. Todavia, há algo sutil a ser notado. Mesmo que entre a névoa alguns consigam perceber que economicamente nada ganharão com o golpe entreguista, persistem a querê-lo. Por que?

Porque a classe média aceita piorar sua situação econômica desde que os pobres piorem mais. Desde que volte a ter servos mais baratos, que volte a sentir-se segura numa relação esclavagista, que volte a frequentar aeroportos e restaurantes vazios, ela aceitará retroceder também.

O cerne da coisa é a percepção da redução das diferenças relativas. Muita gente não apenas começou a consumir e a frequentar espaços nunca franqueados, como reduziu a atitude mental do servo. Ou seja, passou a perceber-se como gente, como cidadão.

Reduziu-se o número dos que por uma refeição ou roupas velhas empenha gratidão tão cara ao médio classista, que precisa deste conforto. Isso, essa redução das diferenças – não só econômicas, como sociais – o médio classista não perdoa.

Ele entra pra ajudar um golpe entreguista, certamente perderá, mas saíra contente desde que os pobres percam mais e retornem aos seus lugares de serviçais prontos a copiosos agradecimentos por uma refeição.

A excitação permanente das massas.

Sou homem, nada de humano me é estranho.

Públio Terêncio Afro

O grande número é mantido em estado de permanente suspensão e excitação mental, por uma sucessão de fatos escandalizados, dramatizados, pintados em preto sobre fundo branco. Assim mantido por obra mediática, ao contrário de melhorar sua instrução e sua capacidade de ajuizar, torna-se num grupo intelectualmente zumbi.

O típico homem massa vê no mínimo um crime dito bárbaro por dia, na TV e nos jornais baratos que só falam de crimes e de futebol. O alimento da sua histeria é farto e sua contínua digestão nutre o tensionamento constante de suas fibras nervosas. O homem massa vive tenso, escandalizado, histérico.

Brutalmente insincero, diz não entender como as coisas podem passar-se assim ou assado, notadamente quando se cuida de algum crime dos que violam mais que as leis, seja pela violência quase ritual, seja pela relação da vítima com o agressor. Ora, dizer-se incapaz de compreender alguma ação humana é por-se como extra humano ou infra humano, o que é falso.

Tudo de humano é cognoscível para um ser humano. Demanda algum esforço, claro, e saber que potencialmente todos são iguais. Há quem se contenha mais ou menos, que se conheça mais ou menos, eis as diferenças.

A ira, essa energia fortíssima, é objeto de dezenas de milênios de esforços humanos de contenção. Todas as codificações sociais e jurídicas visaram a conter-lhe a explosão. Tarefa exitosa, posto que reduziu muito as oportunidades de explosão, basicamente com a ameaça da exclusão. Mas, a ira em estado puro emerge sem quaisquer considerações prévias, sem ponderações de custos e benefícios. É energia pura.

A forma de obter antídoto ao tétano é clássica. Inoculam-se os cavalos com pequenas e constantes doses e, com pouco, tem-se os anticorpos no sangue do cavalo.

A forma de embrutecer grandes grupos e torna-los incapazes de julgamento e permanentemente imersos numa histeria escandalizada é semelhante. Rações de diárias de informações dramatizadas e desarticuladas; ensinamento diário de que não é possível compreender certas coisas, como se a obras dos homens não fossem humanas.