Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: abril 2015

As prisões formais. Cumplicidade com a fraude, elemento de coesão social e boa consciência individual.

Época de declaração de ajuste anual do imposto sobre a renda das pessoas físicas, relativo ao ano anterior, é um frenesim enorme na pequena-burguesia brasileira. Convém lembrar que este grupo é a caixa de ressonância do discurso da excessiva carga tributária; acham que pagam muitos tributos…

É a mesma gente que viaja frequentemente ao exterior, notadamente para os EUA e para a Europa e de lá nada trás na cabeça, apenas nas malas. Se não fossem totalmente impermeáveis, trariam algo mais que a memória das vitrines; trariam informações a lhes permitirem comparações e certas purgas mentais.

Os tributos, em geral, nos EUA, são mais reduzidos que no Brasil ou na Europa, mas do Estado nada se recebe além de balas da polícia, por coisas tão sérias como ser meio preto ou estar em atitude suspeita, seja lá o que isto signifique.

Na Europa a tributação é muito mais elevada que no Brasil, seja sobre a propriedade imobiliária, sobre a renda, sobre o consumo, sobre as grandes fortunas. O retorno estatal pelos tributos cobrados ainda é considerável, principalmente na rede de proteção social aos mais pobres, mas isto recua velozmente.

No Brasil, a classe que mais reclama do pagamento dos impostos é aquela que não recorre ao Estado para coisas básicas como educação e saúde e benefícios sociais, porque exatamente não precisa disso, embora diga que gostaria de usufrui-los.

Na verdade, a pequena-burguesia instituiu em seu benefício um sistema muito melhor, que consiste em usar serviços privados e dividir a conta com o Estado e toda a sociedade, consequentemente, por meio de deduções de despesas feitas na base de cálculo de seu imposto sobre a renda. Deduções de despesas com serviços que são oferecidos gratuitamente…

Nesta época ouve-se muito o pequeno-burguês prototípico a falar de recibos de pagamentos por instrução com dependentes e principalmente despesas com saúde. Estão à procura de médicos, farmacêuticos, fisioterapeutas que vendam-lhes recibos de despesas e tratamentos não realizados.  É burla, é fraude evidente, não há como suaviza-lo.

E este ser médio, prototípico, trata o assunto abertamente, em clima de camaradagem e cumplicidade, se for com interlocutores da mesma classe social. Não lhe ocorre – mesmo que seja o mesmo sujeito a fazer passeatas contra corruções – que está a praticar nada mais que uma ilegalidade visando à evasão fiscal.

Alguns, diante da objeção mais sutil à pratica da compra dos recibos, veem com um argumento formal que toma o desconhecido como não ocorrido. Dizem que têm os recibos em mãos e que chamados a dar explicação, terão êxito.

Ora, um delito que não se descobre não é um que não aconteceu. A possibilidade de êxito no axcobertamento de um ilícito não faz dele uma prática lícita.

Melhor andaria o Estado se suprimisse todas as deduções da base de cálculos do imposto sobre a renda das pessoas físicas. Obrigaria a pequena burguesia a abandonar sua oceânica hipocrisia e pendor pela mentira e pedir serviços públicos melhores com sinceridade. Hoje, ela não demanda melhoras sinceramente, porque nunca esteve sinceramente preocupada com serviços que não usa, que são coisas para os mais pobres.

A revolução da construção, a autopista e quando o baixo não é mais a base de uma música.

Um texto de Alcides Moreira da Gama.

Existe algo de fascinante nas músicas, mesmo naquelas que pessoalmente não apreciamos, porque, sem explicação, ela consegue mexer conosco. Mais fascinante ainda são as pessoas cujos dons musicais comovem. Não tenho dúvida de que já nasceram com esses dons.

Um instrumento musical que consegue me impressionar é o baixo. Normalmente ele é utilizado para dar base às músicas. É como um alicerce cujas paredes e teto são construídos sobre ele. Previsivelmente, é isso que se espera de um baixo: a música é montada tendo-o como base. Quando são medianamente tocados, suas notas são previsíveis. Supõe-se que, quando é tocado sem muita expressividade, ao ouvirmos uma música qualquer, já deduzimos em qual tempo e tom a nota será emitida. Mentalmente e quase inconscientemente já antevemos e aguarmos aquela nota que será tocada, até que ela é emitida, confirmando o que já era esperado.

Mas há casos que extrapolam a normalidade, e a surpresa de cada nota milimetricamente tocada no devido tempo musical é um espetáculo à parte. O que era uma previsibilidade quase monótona – o que se espera de um baixo tocado sem muita expressão – é um espanto e sobressalto a cada nota musical lançada. O ouvinte fica pasmado, quase congelado. A imprevisibilidade e eloquência das notas do baixo assim tocado tomam conta de todo o enredo musical. É um prazer inesperado para o ouvinte, que tem a sensação de que, embora cada nota seja temporalmente calculada, a imprevisibilidade impera.

É o que se pode dizer de revolução na construção: é quando o alicerce deixa de ser alicerce, e as paredes e teto passam a ser a base; é quando o baixo deixa de ser a base da música, e a música se torna a base para o baixo; é quando a música serve de autopista para o baixo desfilar sobre ela. Aí está a demonstração:

O poder do dinheiro e o vácuo de outras forças sociais.

Muito se tem falado em corrução, presentemente, em termos de moralismo político. Muito embora seja abordagem quase destituída de sentido, por difusa e histérica, aponta para algo que se repete na história: o escândalo com o poder social do dinheiro.

Vários períodos históricos viram a acusação veemente do excessivo poder social do dinheiro e poucas coisas em comum tinham estes períodos, exceto terem-se revelado épocas de transição, em que não se anunciavam claramente os novos princípios retores a predominarem na sociedade.

O dinheiro, ao contrário do amplamente aceite, não é uma força primária de conformação social. Os destacados princípios hierarquizadores das sociedades são pertencimentos a raças, clãs, religiões, círculos intelectuais. O dinheiro destaca-se como critério de hierarquização quando os princípios primários recuam na sua importância. Ele impõe-se no vácuo dos outros, embora esteja sempre presente, como força meio.

Afastando-se de concepções puramente economicistas da história, percebe-se que toda a dinâmica social não está em função do que se pode comprar, embora seja notável uma aceleração desta motivação, a partir de quando a quantidade de coisas passíveis de aquisição aumentou muito.

Em momentos históricos de pouca disponibilidade de coisas comerciáveis, o dinheiro raramente sobrepõe-se a outros princípios de poder social, embora o público o anuncie com surpresa e escândalo. Raramente sobrepõe-se ao poder social do guerreiro ou do sacerdote, até bastante recentemente.

Não é demasiado, nem deve ser escandalosa a menção por si só, lembrar que no medievo europeu o dinheiro, ou pelo menos grande parte dele, estava em mãos dos judeus e estes eram destituídos de poder e ocupavam baixa posição na hierarquia social. Evidência do predomínio de outras fontes de poder social, como religião e raça.

Crises de transição histórica geralmente oferecem o espetáculo da acusação indignada do poder do dinheiro, que nada mais é que o libelo confuso contra uma corrução crematística, por parte de quem se vê na correnteza de águas turvas sem saber para onde vai. O surto moralista e moralizante é muito efeito do aturdimento com o entorno em mudança. Incompreensão, enfim.

Todavia, a afirmação do poder do dinheiro – não sua acusação como falta ou consequência de corrução – passa a fazer mais sentido na sociedade industrial, porque a oferta de coisas aumenta exponencialmente. Se não assume realmente condição de princípio primário de poder social, atua em paridade com outros que se destacaram mais preteritamente.

Alguém poderia ver nisso algo positivo, na medida em que o critério hierarquizador das sociedade assumiria ares mais objetivos, a partir da detenção de dinheiro. Sucede que esse modelo levado aos limites eliminaria a própria base do avanço técnico e consequentemente material da sociedade. Se os homens de idéias e de ciência virem-se destituídos de qualquer poder social que emane precisamente desta condição, é previsível que seu número reduza-se até o ponto do regresso técnico.

Seria, assim, demasiado audacioso vaticinar o predomínio do dinheiro como fonte primária de poder, a fazer sucumbirem todas as outras. Principalmente porque as organizações de marca clerical, como as religiosas, acadêmicas e as militares sempre se insinuarão a fazer, no mínimo, papel de intermediação.

Mas, o destaque do dinheiro como fator de poder é notável e crescente. De minha parte lamento apenas pelo correspondente recuo na sensibilidade estética e cultural. Não é preciso ter artesãos dedicados para saciar a vontade do possuidor de muito dinheiro. A indústria sacia o colecionador de bens materiais…