Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: maio 2015

O medo e o grau zero da racionalidade.

Ocorreu algo bárbaro, mas não propriamente raro nestas terras: uma revolta na penitenciária local, desencadeada pelas péssimas condições de encarceramento e por brigas de facções internas. A confusão acelerou-se a partir do momento em que decapitaram um preso e passaram a jogar com a cabeça separada do corpo.

As pessoas acham – bárbaras que são – que as penitenciárias devem ser cópias do inferno. Ignoram que o Estado tem poder de privar de liberdade, que é penalidade, mas não tem direito de privar de dignidade. A humilhação e a imposição de condições degradantes ainda não estão previstas legalmente como sanções penais, embora muitos queiram isso. Assim, é legítimo que os presos queiram condições adequadas.

Claro que a forma de reclamar é também bárbara, mas não seriam ouvidos de outra maneira e nem são mesmo com linguagem tão eloquente. O fato é que desencadeou-se onda de boatos e surto generalizado no vulgo de medo.

Um dos boatos, repercutido por gente que não aceitaria ser chamada de ignorante, dizia que os presos amotinados tinham fugido do presídio e rumavam para o centro da cidade, precisamente para o terminal de integração de transportes urbanos.

É algo muito estúpido até pelos largos padrões de tolerância que se tem de adotar recentemente. O vulgo não pensa antes de repetir algo. Ele age a projetar-se sobre o mundo, age diante do espelho. Ora, é difícil imaginar uma caravana de presos fugidos marchando para o centro da cidade para fazer um protesto! É o grau zero da racionalidade, porque presos fogem para se esconderem.

Mas o vulgo, principalmente o médio-classista que tem feito protesto gourmet contra governo que redistribui riquezas, acha que ele e um preso amotinado tem as mesmas preocupações e anseios. O sujeito estreitou-se a ponto de conceber o mundo à sua total semelhança e fica incapaz de pensar.

Esse estado de ânimo revela campo fértil para a semeadoura do medo, para o alastramento da cultura da repressão, de que a violência decorre da falta de violência. As pessoas repetem acriticamente que tem havido aumento significativo da violência, o que não é verdade. Se não houve recuo, não houve aumento. Basta um pouco de memória para aqueles que passam dos quarenta anos de idade para constata-lo.

Ganham com isso apenas os agentes do aparato de segurança, o que sempre ganham com o medo e a violência. A sociedade nada ganha, porque se pancada resolvesse violência, o Brasil era o país mais pacífico do mundo, tanto já se deu pancada, tiros, torturou-se, tudo à margem da lei e à discrição de selvagens investidos em poderes policiais.

Na esteira dessa cultura do medo histérico, pre-condição para um estado policialesco e de exceção, vem o habitual discurso por redução de maioridade penal e por pena de morte. Duas coisas que já existem, todavia! No Brasil, a maioridade penal do pobres pretos ou mulatos inicia-se no nascimento. Pena de morte é praticada todos os dias pela polícia, sem julgamentos…

A ferida de narciso ainda supura.

Em 1654, acabou-se o Brasil holandês. As batalhas vencidas por tropas de índios, pretos, mestiços, portugueses inserem-se num panorama maior, o da Restauração portuguesa. As grandes batalhas – Monte das Tabocas, Guararapes – na realidade, deram-se anos antes da saída total dos holandeses.

Era muito claro para os líderes envolvidos que se retomava o Brasil holandês para reintegrá-lo ao reino. Não havia aspiração a fazer daqueles pedaços de Pernambuco e Paraíba qualquer coisa autônoma. Por outro lado, era claríssimo que essa recém constituída nobreza de espada da terra queria reconhecimento.

No Obelisco da Praça dos Restauradores, há menção às batalhas em Pernambuco, o que evidencia que a expulsão dos holandeses claramente era percebida num movimento mais amplo, como foi a restauração de Portugal com a subida do duque de Bragança, que seria João IV.

Acontece de ser difícil agradar aos que obtiveram glória militar e se alçam à fidalguia pela espada. Por um lado, o reino tinha de reorganizar as finanças e, por outro, relutava em elevar à nobreza mais alta aquela gente bronca que já se enraizava na terra, principalmente no negócio do assúcar.

Essa fidalguia da terra daria trabalho aos governos, pois conservaria por dois séculos a memória do combate e sua altivez seria rastreada historicamente. A segunda metade do século XIX viu a perda total do seu impulso original. Ficariam a arrogância, o espírito de predação e a hipocrisia, traços fortes dos decadentes.

Isso, essa origem da fidalguia local e seu processo de decadência, marcou um espaço geográfico: o Recife. Era uma cidade aberta – reluto em usar cosmopolita – muito por conta de seu porto privilegiado. Havia muitos estrangeiros e, como havia comércio internacional, circulava dinheiro.

A gente local achava-se importante, mas sabia que o mundo ia um pouco além de suas próximas fronteiras. Até antes do golpe militar de 1964, o Recife era, de certa forma, um local florescente e aberto, mesmo que a decadência econômica já cobrasse alto preço.

As décadas de 1980 e 1990, todavia, são de uma caipirice profunda. Misturavam o orgulho dos ignorantes e pobres com a crença no novo mundo liberal: uma tragédia. As pessoas continuavam a julgar-se importantes, mas não sabiam mais que havia o resto do mundo – o resto do mundo é mais que Miami, devo advertir – e não tinham mais conhecimentos históricos.

Essa gente, nessa época, era caricatura de antepassados remotos cuja história não conheciam. Não sabiam de onde viera aquela sua arrogância, aquele seu apreço por símbolos da terra, algo sempre notado pelos de fora. Tornou-se lugar comum celebrar-se a peculiaridade e o orgulho bairrista dos pernambucanos, como se fosse de se imitar essa permanente e vazia referência a si mesmo, sem saber porque.

Não é algo feio ou reprovável em si, mas celebrações autoreferentes como as que se faziam do hino de Pernambuco, nomeadamente nos anos 90, são algo a beirar o patético, dadas as circunstâncias. Súbito, num acesso de modismo, tocava-se e cantava-se o hino a propósito de qualquer coisa ou nada. Ostentava-se a bandeira do estado em roupas, nos carros.

O surto simbolista bairrista, creio que poucos perceberam, era tudo menos alguma manifestação cosmopolita. E o recifense prototípico acredita-se cosmopolita enquanto celebra-se sem celebrar um passado que conheça.

Recordo-me que havia, no Recife dos anos 80, consulados de EUA, França, Alemanha, Japão, Portugal e outros mais. E nunca percebia o sentido que aquilo fazia numa cidade tão provinciana, decadente, pobre e fechada. Porque não fazia sentido algum. Claro que tinha feito, anteriormente.

O contraste é a técnica mor da caricatura e o destaque por excelência do grotesco. Depois de perdido o pólo petroquímico para a Bahia e de ter a Sudene passado a ser emprestadora de dinheiro para criação de bois de papel, a decadência econômica foi brutal.

Mas as classes dominantes permaneciam com a mesma mentalidade e cada vez mais sem história. As demais não poderiam tentar imitar outro modelo senão o que havia. Essa fauna povoava aquele ambiente…

De certa forma, parece voltar a haver vida, de maneira menos arrogante e com mais presença estrangeira. Lastimavelmente, num momento em que a cidade ruma para a inviabilidade absoluta, por impossibilidade de locomoção. Triste retomada…

As pequenas transgressões e a ilusão da originalidade.

O vulgo é muito inumano racionalmente e, portanto, humano. Banalidade e falta de energia não provieram de outra coisa senão da racionalização do quase nada, feita com instrumentos precários. A racionalização da banalidade leva-o a buscar ilusões de originalidade.

A pequena transgressão dá ilusão de originalidade, assim como a moda, que sempre vai e volta, mas é percebida como original em cada tempo de retorno.

O caso é que há um parque na cidade. Pequeno, é verdade, mas relativamente agradável, arborizado, com algum relvado, equipamentos para exercícios físicos e uma pista de aproximadamente um quilômetro, para caminhadas e corridas.

A pista tem uma largura média de dois e meio metros e tem setas pintadas a indicarem o sentido, que é anti-horário. Não é sem razão, nem é alguma violência ou supressão de direitos determinar-se um sentido para os caminhantes e corredores. É uma questão de facilitar a vida de todos.

O sentido único maximiza a eficiência de uma pista relativamente estreita, porque todos podem antecipar-se nos movimentos, já que vêm quem vai à frente. Além do sentido único, há uma faixa de mais ou menos 50 centímetros, dedicada exclusivamente à corrida.

Pois são frequentes as pessoas que caminham e correm no sentido inverso e fora das faixas adequadas, o que gera encontrões, paradas, saídas da pista para desviar dos que vêm em sentido contrário e outros aborrecimentos que simplesmente podiam não haver.

É notável que os caminhantes e corredores do sentido inverso fazem-no voluntariamente e trazem um discreto sorriso de canto de lábios. As setas pintadas no pavimento são grandes demais para se ignorarem e a maioria dos frequentadores é alfabetizada e, assim, capaz de ler a palavra corrida, escrita no chão.

É o prazer da pequena transgressão, aquela impune – até porque seria mais vulgar punir isso que o fazer – que dá ao sujeito a sensação de originalidade.

O vulgo adora a pequena transgressão na mesma proporção em que é incapaz de grandes atos, sejam estes crimes ou criações de outros tipos. Não tem energia vital para o grande ato, não tem inteligência para perceber que a originalidade do banal é ilusória.

Ele precisa desta ilusão, como precisa da moda, o retorno contínuo que não parece uma roda a girar. A moda se auto disfarça, faz crer na novidade, banaliza a idéia de originalidade. E foram todos levados a crer na necessidade de originalidade e, portanto, a ignorar o que isto seja.

A pequena transgressão não faz mais que gerar embaraços e manter apagada a força humana.