Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: agosto 2015

Exportadores ou contrabandistas e pequenos burgueses ávidos por espelhinhos?

Eis que o dólar norte-americano aproxima-se de custar quatro reais e isso parece ser uma mudança de patamar na taxa de câmbio, mais que apenas esquizofrenia e chantagem de mercado. E isso é bom, pois a moeda brasileira estava muito valorizada. Claro que esta desvalorização a par com aumento dos juros dos títulos públicos é a ante-sala do suicídio, mas esta é outra conversa…

O dólar barato encarece coisas brasileiras como soja, café, assúcar, carnes, minérios, aço processado, alumínio processado e outros produtos mais de pouca elaboração e pouco dependentes de insumos importados. A perda de competitividade na exportação dessas commodities é dramática para o balanço de pagamentos e para a manutenção de reservas em moeda conversível.

Claro que não é algo tão elástico a ponto de ser desejável ter a moeda nacional extremamente desvalorizada, porque resultaria inflação, na medida em que importa-se muita coisa banal e insumos importantes. Como está, atualmente, parece um ponto de razoável equilíbrio.

Acontece que isso desagrada quem sempre está desagradado: a classe média que nunca viajou tanto ao exterior em busca, na enorme maioria das vezes, de comprar bugigangas baratas, seja para as acumular em casa, seja para as revender aos deslumbrados seus semelhantes.

Nos espaços de convívio forçado com a pior parte da classe média brasileira – o trabalho, basicamente – essa desvalorização do real é assunto candente. Todos a lamentam, como uma verdadeira traição ou o último prego no caixão. Ficou mais caro ir a Miami! Como se vive assim?

O engraçado é que o pequeno-burguês a lamentar a alta do dólar tem de, logicamente, lamentar o aumento do custo da atividade de contrabando ou de compra leviana e enlouquecida de tudo quanto vê pela frente. Ora, fazer contrabando é ilícito; fazer compras como a satisfação de um vício é superficialidade em forma pura.

Lembraria o pequeno-burguês contrabandista-consumista que os dólares usados para estes deleites têm de entrar no país de alguma forma? Que esta forma primária é a exportação de produtos nacionais? Que esta exportação depende muito dos preços relativos?

O grande capital não é o único poder.

Com relação ao golpe de Estado que se processa no Brasil, a ser consumado por meios que lhe conferem aparências de formalidade, muitos começam a dizer que não ocorrerá porque não interessa ao grande capital nacional.

Esta negação parte da premissa – muito sedutora e difundida – de que o grande capital é a única coisa a basear o poder. Chamam-no base do poder real, esteio deste a agir por intermédio de vários delegados nas estruturas do Estado e na imprensa. Isso é, em grande parte, verdadeiro. Não de todo, nem em todas as épocas, todavia.

O dinheiro não é sempre e em todas as épocas o maior poder social, mesmo sendo a grande força de cooptação de estruturas burocráticas e da imprensa. Corporações e grupos de interesse que vivem à margem do Estado apresentam dinâmicas próprias e nem sempre é possível guiar-lhes os passos estritamente. Sempre há alguma imprevisibilidade.

É óbvio que para o grande capital nacional e para partes do capital estrangeiro com interesses no Brasil não interessa o golpe de Estado, pelo caos subsequente que trará. De regra – exceto para a grandíssima finança – a desorganização e a insegurança que dela resulta não são coisas boas. Reduz os ganhos, evidentemente.

Acontece, por outro lado, que o processo de semeadura do fascismo na pequena burguesia já dá bons frutos. Bons são os semeadores e boa a terra que cultivaram. Chegou-se a um ponto de não retorno e a imprensa não pode simplesmente passar a desdizer todo o discurso de ódio e estupidez que fez nos últimos quatorze anos.

Nem a imprensa por seus donos pode fazer isso agora – porque o ódio pequeno burguês voltar-se-ia contra eles – nem os seus empregados editorialistas e jornalistas querem desdizer-se, porque são como os vendedores de cocaína viciados nela. Eles acreditam nas tolices e brutalidades que dizem, enfim.

Por isso, mesmo que o grande capital não tenha sob uma perspectiva lógica interesse no golpe, será muito difícil, a estas alturas do processo, travá-lo. Por outro lado, se perceber que a coisa está consumada, o grande capital não verá grandes problemas em pagar os custos da readequação e partirá para compensá-los com mais espoliação financeira.

O fato terrível é que tiraram do baú um grande poder e poder descontrolado: a fúria moralizante dos que tudo ignoram e pensam a partir de notícias de televisão. Esse poder é dificílimo de arrefecer antes de entrar em reação em cadeia. Historicamente, seu controle só é possível com ditaduras…

A pequena burguesia, a hipocrisia e o direito a ganhar na loteria só porque jogou.

Deve haver por aí neste vasto mundo algo mais deformado que a classe média alta brasileira; eu, contudo, não sei onde isto se encontra. Duas marcas são-lhe inerentes e indeléveis: a hipocrisia e a percepção monstruosa do que seja risco.

Esta gente, que brada furiosa contra corruções que vê por todas as partes, sem saber bem de quê se trata ou como ocorra, é ávida pela exceção, pela relativização da regra, pela vantagem de algibeira, pelo argumento impertinente. Enaltece o estrangeiro precisamente pelo que ele tem de diferente deles e pelo que são incapazes de cumprir.

Tenho o infeliz encargo de administrar o prédio onde moro, porque exige muita paciência e dar explicações a gente que não admite ser contrariada. Prédio pequeno e antigo, com bons apartamentos à moda meio antiga; bom tamanho e bom acabamento, coisas de muito antes do fetiche do piso em porcelanato e de depois do bom gosto do piso em mármore.

No prédio, há um salão de festas na cobertura, onde também está uma pequena piscina. De regra, o salão está à disposição dos moradores, desde que o solicitem previamente e se comprometam a deixá-lo, depois, nas condições de limpeza em que o encontraram. Ou seja, o salão mantém-se fechado e a piscina é área sempre aberta.

Esta sala é nada mais que um espaço retangular de aproximadamente 250 metros quadrados, com mesas e cadeiras, dois banheiros e um pequeno balcão em granito e uma pia. É agradável; claro e bem ventilado. Não é adequado para banquetes ou grandes festas, evidentemente.

Eis que uma família moradora pede o salão para uso no domingo, das dez da manhã às dez da noite. Pede na quarta-feira, ou seja, com grande antecedência, e eu firmo a autorização e a ponho no elevador, no quadrinho de avisos, como de regra se faz para que os demais fiquem avisados.

Na sexta-feira, o porteiro procura-me com a cara meio contrariada e diz: a senhora fulana, do apartamento tal, quer falar com o senhor. Era a senhora da festa do domingo e perguntei se ele sabia o que ela queria. Disse-me que queria a chave do quartinho que fica lá na cobertura, acessível por uma porta ao lado da entrada do salão de festas.

Estranhei. Esse quartinho nada mais é que a casa de máquinas do elevador e espaço que tem uma escada de ferro que dá acesso à caixa d´água e, portanto, ao topo do edifício, onde não há muretas de segurança. Era óbvio que não poderia ser atendido o pedido da senhora fulana, tanto por não ter sentido algum, quanto por razões de segurança. Disse logo ao porteiro que não desse a chave.

Como infelizmente havia de ser, a senhora veio procurar-me…, hoje. Seguiu-se mais ou menos um diálogo assim, que que ela é fulana e eu sicrano:

– Bom dia.

– Bom dia senhora fulana.

– O senhor sabe, vou fazer uma festa de aniversário do meu filho, no domingo.

– Sei, sim. O porteiro me disse que queria conversar e me adiantou o que era. Acho que ele lhe disse que não pode usar o quartinho?

– Ele me disse e por isso venho explicar.

– Senhora fulana, permita-me interrompê-la. É uma questão de segurança, basicamente. Sei que a senhora compreende.

– Mas senhor sicrano, é o seguinte: contratamos um bufête. Vêm uma senhora e dois garçons. Eles precisam de um lugar para esquentar as comidas e preparar os pratos. Não dá pra fazer isso no salão! Fica feio!

– Eu compreendo senhora fulana, mas a casa de máquinas do elevador não é lugar pra fazer isso. Pode acontecer um acidente e será uma festa com crianças. Aquilo não é área de circulação. Se acontece um acidente, o condomínio fica exposto a ter de pagar uma indenização de quebrar as finanças.

– Mas senhor sicrano, é tudo gente responsável e não será área de circulação.

– Minha senhora, acidente é aquilo que conceitualmente acontece a despeito de serem todas as pessoas cuidadosas. Não estou dizendo que seus garçons, seus convidados e as crianças sejam irresponsáveis. Podem ser todos responsáveis e dar-se um acidente.

– Mas senhor sicrano, se não for assim perco a minha festa, o bufête!

– A senhora devia ter pensado nisso antes. Ao invés de achar que a sala de máquinas do elevador seria usada como cozinha.

– O senhor vai estragar minha festa!

– Não sei. Sei que não se pode usar uma área que não é do salão de festas para dar apoio a festa.

– O salão de festas não tem cozinha!

– Sim, não tem. A senhora sabia disso.

– A taxa de condomínio daqui é cara!

– É. São doze apartamentos só. A senhora sabia disso também antes de alugar o apartamento.

– Não tem jeito então?

– Não, não tem jeito. Espero que compreenda. Seria leviano e irresponsável se consentisse nisso.

– Mas meu filho onde o pessoal do bufête vai preparar as comidas? No meio do salão? Isso tá errado!

– Minha senhora, antes de contratar um bufête ou qualquer outra coisa, a senhora devia ter feito pensando no espaço disponível. Não devia contar com a sala de máquinas do elevador para isso. Isso é questão de segurança! E a sala de máquinas não é parte do salão de festas.

– Vai ficar mais caro pro condomínio, senhor sicrano! Vão ter que fazer na cozinha do meu apartamento e usar o elevador pra levar e trazer do salão de festas.

– Tudo bem. Pagaremos todos os custos adicionais da sua festa…

– Não tem jeito, então?

– Não. Não tem jeito. E não é um capricho. É que a sala de máquinas não é parte do salão de festas. Não sou irresponsável e isso pode dar problemas, acidentes. Espero que compreenda.

– Tchau.

– Até logo, dona fulana…

Este diálogo aconteceu. O que tem de formal e aparentemente falso deve-se a ter sido assim mesmo. Fui formal e preciso; não me alongo nestas ocasiões e uso de linguagem que beira o artificial. De certa forma obriguei minha interlocutora a também ser meio formal. Não no foi todo o tempo. Houve falas que extravasaram a raiva dela e a vontade da exceção.

Isso é um nada. Vários nadas desses são um retrato do caráter dessa gente. A gente que grita, que agride, que se indigna com corruções e outras coisas de moral de pequenos burgueses. Os indignados que pedem para instalar uma cozinha ao lado das máquinas do elevador…