Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: setembro 2015

Carros com adesivos religiosos. Sua inveja é a razão do meu sucesso!

Esta frase transcrita no título torna-se, a pouco e pouco, tão frequente quanto o consagrado Deus é fiel. Na verdade, serve-lhe de subtítulo, a acrescer lógica de rancor, comércio e mesquinharia ao que originalmente era apenas um vazio enorme.

Está em carros de adeptos de seitas evangélicas não históricas e, quase de regra, em carros um tanto baratos. Claro que aqui emerge uma primeira contradição, exceto se nos pusermos a relativizar todas as camadas de sucesso e considerar todos os patamares comparativos possíveis. Mas, não é a contradição que chama atenção nesta frase tão pouco, ou nada, religiosa.

Aqui, destaca-se a lógica; a proposição é toda impregnada de lógica; ela faz sentido internamente, formalmente, se considerarmos os dois substantivos ligados. E esta tamanha logicidade é outra coisa a afastar caráter religioso, pois que crença e lógica não se precisam, nem se implicam reciprocamente.

Mas a lógica aqui é do rancor e da vingança e não resiste a algumas brincadeiras com lógica  material. Evidentemente, a inveja de alguém pode fazer o sucesso de outrem, mas numa perspectiva psicológica, ou seja, interna à pessoa alvo da tal inveja e dentro duma espécie de sinalagma dual.

Admitindo-se que haja um sucesso – assim mesmo, não definido nem parametrizado – o que seria dele se não se encontrasse a inveja que foi postulada como sua causa? Deixaria de existir! Se uma coisa foi posta como causa de outra, a supressão da primeira atrai a da segunda…

Daí que, antes de tudo, é necessário haver a inveja. Ora, não é confortável para pessoas anacrônicas como eu ter de por a inveja na condição de categoria fundamental ou necessária. Mas, para quem postula o sucesso como causado pela inveja, é!

Muito romanticamente, preferia não ter de render homenagens à existência da inveja e mesmo ansiar por sua disseminação, se quero também que haja sucesso.

O fulano que homenageia a inveja como causadora do seu sucesso precisa que exista inveja e, interessante notar, até nas axiologias mais rasteiras e massificadas é consenso reputar a inveja algo indesejável! Como ficamos então, se a inveja é algo indesejável, mas condição necessária do sucesso, que é desejável?

Evidentemente que, do ponto de vista material, que é o que está em jogo, a inveja não é absolutamente causa de sucesso algum. Nisto a frase é apenas tola. O sujeito talvez precise invocar a inveja alheia como motivo para sua tenacidade no trabalho e no acúmulo de mais posses. Todavia não é um sentimento alheio a causa de melhora patrimonial de alguém.

Postular um absurdo tal dá mostras do nível de subjetividade em que se vive. Uma situação em que as intrigas cotidianas pelas mais pequenas coisas passa a ocupar o altar principal onde se rende culto. E a que se rende culto? Às pequenezas da alma vulgar, claro.

Por que faz? Porque pode!

Este blogue ficou fora do ar alguns dias. Fez alguma falta? Não sei e, na verdade, acho que não, do ponto de vista da necessidade de alimentação de novidades, o que move a maior parte de quem anda a ver coisas na internet. Esse, afinal, não é um sítio de novidades.

Aqui não há furos jornalísticos nem inovações. Há muita chatice e coisas que interessam aos que aqui escrevem. Mas, soou como agressão o que o fez ter ficado fora por vários dias. Agressão não pessoal, mas à lógica do que permeia nossa vida: o mercado.

O domínio apocaodepanoramix.com estava registado na empresa UolHost. Este registo venceu-se e esqueci-me de pagar a renovação. Deu-se que no tal UolHost o domínio foi cancelado. Tudo bem.

Acontece que na confusa página da empresa registadora consta a possibilidade de resgatar o domínio, mediante o pagamento da renovação e um outro valor, estratosférico, diga-se logo.

Entrei em contato com o tal registador e pedi a emissão da guia para pagamento de quanto era necessário. Começou então uma romaria de contatos com vários atendentes despreparados. Todos a dizerem as mesmas tolices e a resolverem nada.

Ao final de um dia a conversar as mesmas idiotices com gente que se porta como barnabés resolvi registar o domínio em outro canto, com sutil alteração.

Ocorre que insistiam em perguntar o que havia e nada havia. E mantinham meu cadastro associado a um domínio já cancelado!

Ora, se já estava cancelado, porque manter meus dados relacionados com a criação de um domínio já cancelado? Chantagem, o que percebi logo.

Diante da insistência em cancelar meus registos os atendentes do UolHost limitaram-se a dizer asneiras e a pedir, ao final, que telefonasse para eles. Poucas coisas podem ser mais inúteis que telefonar para um serviço desses, em busca de cancelamento.

Aliás, há recente norma da ANATEL a prever que os consumidores têm direito a cancelar seus serviços contratados sem terem que penar ao telefone em ligações que sempre caem, passam de um a outro ou simplesmente não se completam.

Esse é o tipo de serviço privado que os privatistas dizem ser bons. Os mesmos tipos que se tratam à custa de todos os brasileiros no SUS, que dizem ser ruim…

O altar da Metafísica.

Júpiter enlouquece primeiro aqueles a quem quer perder.

Supostamente Eurípedes.

As Luzes, no século XVIII, tiveram a extravagante pretensão de ter expurgado do âmbito legítimo de cogitações a metafísica. Alguns, menos audaciosamente, pretendiam tê-la mantido no seu lugar próprio, na zona localizada entre o mito e a fé. De qualquer forma, a ela não era mais dado postular o lugar sagrado agora ocupado pela ciência.

O que aconteceu, desde então, parece ter sido precisamente o inverso, contudo. A Metafísica desceu dos céus e instalou-se confortável entre os homens. Passou a inspirar-lhes as ações mais cotidianas, a impregnar todos os juízos, mesmo os mais supostamente epistemológicos.

A ciência não passa de uma religião, tamanha a carga axiomática que carrega nos pressupostos a partir de que as teses supostamente neutras são desenvolvidas. A economia, esta principalmente, é um credo permeado por equações matemáticas a serviço de conclusões desejadas previamente.

Quem apontou algo interessantíssimo a aclarar a presença entre nós da metafísica – aquela que teria sido sepultada pelas luzes – foi Carlos Marx, ao tratar o fetiche da mercadoria. Esse fetichismo não poderia surgir de outra coisa senão da impregnação metafísica no cotidiano. Não é apenas resultante de um processo consciente e muito ordenado para apropriação capitalista.

Ou, melhor dizendo, um tal projeto, concebido à semelhança do que hoje chama-se marketing de massas, não teria tamanho êxito se o terreno não fosse antes fértil. Ele é fértil, ou assim foi tornado, exatamente pela incorporação da metafísica a quase tudo que move as pessoas.

O fetiche é antes de tudo o estado da ausência de razão, de razão entendida mais sob o aspecto utilitário. Nisso diverge um pouco da metafísica, que é por demais utilitária, mas convergem na ausência de razão. Nessa convergência encontra-se uma quase sinonímia entre os termos.

A metafísica no cotidiano forneceu a base segura da fetichização da mercadoria, pois a valoração para além do uso e a partir de balizas míticas ou simplesmente inexistentes somente pode amparar-se numa crença. Capitalismo acumulador e crença são, portanto, inseparáveis…

Prends la soupe, petit garçon!

Agosto é um mês terrível no entre-douro-e-minho. O calor é infernal e os dias são demasiado longos até para quem gosta deles longos. O sol é inclemente e fico a pensar na quantidade de problemas cutâneos que terão no futuro os locais e os europeus do norte, todos a sonharem com uma tez acobreada, que obtém.

Este inferno de calor e sol tem suas compensações; bem poucas, é verdade. A cidade, Braga, no caso específico, fica esvaziada de seus moradores das classes médias e altas; pois estão todos a cumprirem suas obrigações de veraneio nas praias vizinhas. Torna-se mais fácil caminhar e tomar um fino aqui e acolá, exceto ir a centros comerciais, é claro.

Não faz muito sentido está necessidade premente de ir à Póvoa, a Esposende, à Vila do Conde e a onde mais próximo seja. Isso seria perfeitamente compreensível se se estivesse na Suécia, mas onde há quatro meses de calor e oito de relativo frio, é um pouco como arremedar hábitos suecos. Não é disso que se trata, todavia.

Em agosto, todo o êxito obtido pelos emigrantes em França, Suíça e Luxemburgo mostra-se. Quem saiu de seu país obrigado precisa mostrar aos filhos dos privilegiados de antanho que prosperou. E assim se faz! Não são poucos os automóveis de último tipo com registros de França e não é pouco o francês que se escuta por toda parte.

Dizer que na cidade ouve-se tanto francês quanto português seria sucumbir à sedução do exagero. Mas, dizer que no Sá Carneiro ouvia-se tanto uma quanto outra língua em iguais proporções seria apenas cumprir dever de honestidade.

Nos centros comerciais, esses infernos menos quentes, a coisa pode tornar-se cômica. Estava num deles – o maior de quantos na cidade – e, sentado a comer algo, prestava atenção em um grupo sentado ao lado. Havia duas gerações e muitos colaterais.

A senhora, mãe do menino a quem alimentava, dizia-lhe, com ar impaciente:

– Prends la soupe, petit garçon.

E nada resultava, porque o menino fazia birra e divertia-se com primos e amigos e um previsível telemóvel. Ao que a senhora insistia:

– Prends la soupe, petit garçon!

E nada do menino tomar a sopa…

– Prends la soupe, garçon!

Eis que a senhora, muito velha pra ser de língua mãe gaulesa e muito nova para se ter esquecido da língua mãe, torna a ser aquela de há quarenta anos, despe-se da bem assimilada língua de Molière, e explode em autenticidade:

– Toma logo esta sopa, menino, senão parto-te os cornos!

O menino, que certamente fora alfabetizado em francês, porque nascido em França, percebeu logo que a brincadeira terminara. Curioso, porque certamente entendia melhor as exortações na sua língua nativa, mas não ignorava a gravidade do retorno súbito da sua mãe à língua nativa dela.