Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: outubro 2015

O dr. Stanley Milgram tem algo a ensinar ao contra-golpe.

Além das experiências e posteriores teorizações dos professores Roger Sperry e Michael Gazzaniga com secção dos corpos calosos e suas assombrosas consequências em termos de consciência e vontades autônomas, as investigações do doutor Stanley Milgram parecem-me o que há de mais interessante em termos de humano.

O doutor Milgram elaborou o experimento em obediência à autoridade, na Universidade de Yale, a partir de 1964. Dez anos depois, descreveu os experimentos e avançou hipóteses de conclusões no livro Obedience to Authority: An Experimental View.

Feliz ou infelizmente – mais provável o segundo advérbio – a coisa veio a seguir ao julgamento de Eichmann, após sequestro dele e condução para Jerusalém. Infelizmente porque tudo que se associa, por mais tenuemente, ao holocausto dos judeus entre 1940 e 1945 torna-se complicado, mais ou menos proibido e passível de interpretações axiomáticas. Mas, deixemos Eichmann para lá.

A experiência, em termos de equipamentos e tecnologia envolvidos, era muito simples. A encenação que ela implicava, também. Nem tão simples são as conclusões que se podem extrair, notadamente se nos detirvermos, ao depois, no que pode significar autoridade, no alcance deste termo, no que a constituiu e suporta.

Basicamente, três pessoas estavam envolvidas no experimento: o pesquisador e dois voluntários supostos. Destes últimos, um faria o papel do educador e o outro do aluno. Milgram convocava os voluntários por meio de publicações em jornais e oferecia uma módica recompensa – quatro ou seis dólares, não sei ao certo – para quem se dispusesse a participar da experiência científica. O propósito declarado era investigação sobre memória.

À partida, no recinto do experimento, o pesquisador trajado adequadamente de cientista, com jaleco branco e a indefectível gravata, recebia os dois voluntários; um dos voluntários era um ator, circunstância desconhecida do voluntário real. Em seguida, apresentava ao real voluntário dois papéis dobrados que seriam a forma de sorteio dos papéis. Ambos os papéis continham o nome educador. Sempre o voluntário real seria o educador, portanto.

O experimento consistia no seguinte: educador e aluno ficariam em salas diferentes, sem se verem. O educador leria para o aluno uma série de substantivos relacionados a adjetivos. Vinte pares associados, como, por exemplo, céu azul, vento fresco, maçã vermelha, carne apetitosa, etc. O aluno deveria prestar atenção à leitura inicial e pausada dos pares de substantivos e adjetivos relacionados.

Depois, o educador diria ao aluno, por um sistema de comunicações entre as salas diferentes, substantivos da lista, a que o aluno deveria responder o adjetivo correlato, conforme ao que tinha ouvido na leitura da lista toda, anteriormente. A cada erro do aluno, o educador deveria aplicar-lhe um choque elétrico que era incremental de 15 em 15 volts, a cada resposta errada, até ao máximo de 450 volts, choque potencialmente mortal. O educador, isto é essencial, não sabia que o aluno era um ator e que os choques na verdade não ocorriam.

Muitas vezes, antes do início do experimento, era dito ao educador que o aluno sofria de alguma cardiopatia. Os equipamentos dispunham de um sistema que a cada choque, conforme a intensidade, reproduzia gritos previamente gravados. O pesquisador, com ar fleumático e importante, ficava ao lado do educador que perguntava e aplicava choques punitivos no aluno.

Contrariamente ao que esperavam cientistas previamente ouvidos por Milgram, na primeira rodada de experiências, 65% dos voluntários no papel de educador foram capazes de chegar ao choque máximo de 450 volts…

A enorme maioria chegava ao ponto extremo com sinais imensos de estresse e desconforto psíquico. Hesitavam, ficavam aturdidos com os horríveis gritos dos alunos que supostamente levavam os choques, mas iam adiante. O pesquisador ao lado do voluntário educador, a sinais de hesitação e conflito interno, mantinha postura compenetrada e instava o educador a continuar, com frases padrões como: por favor, continue; a experiência necessita que você continue; é totalmente essencial que você continue; você não tem alternativas, deve continuar.

Essa experiência foi replicada em outros locais com resultados muito pouco divergentes. Os voluntários eram capazes de punir e infligir sofrimentos imensos a terceiro sem qualquer outra razão além da obediência à autoridade, representada pela presença do cientista. Há uma variação significativa na ida aos máximos em função da proximidade física do cientista e do educador; isto é relevante.

Observou-se uma redução da disposição a punir severamente quando o cientista estava mais distante fisicamente do educador ou quando o instava menos a prosseguir. A obediência é uma relação dinâmica, percebe-se. Com o cientista fleumático, de poucas e objetivas palavras, perto e pronto a instar o educador a seguir adiante, este continuava a fazer sofrer o aluno, mais e mais, mesmo em tensão psíquica.

O senso-comum rápido propôs a conclusão meio simplista: a obediência à autoridade suplanta os valores morais. Mesmo não apreciando nada que se sirva do termo moral, tenho de dizer que esta conclusão tem sua verdade. Mas, há mais que isso. Inicialmente, há para além disso: o conflito, em muitos casos, cessa. Um dos pólos da comparação extingue-se e há apenas obediência.

Em certo momento e em alguns casos, não se vai adiante a despeito do conflito entre obedecer à autoridade e valores morais, prossegue-se porque o conflito foi superado. Não há mais isto ou aquilo. Acaba-se a relação, na medida em que um dos pólos de comparação já foi excluído. Esta exclusão é basicamente decorrente da cessação do pensar autônomo. Deixar de comparar é deixar de pensar.

Na esteira da experiência e das hipóteses e mesmo conclusões avançadas pelo próprio Milgram e outros que se aventuraram a teorizar sobre a experiência, surgiu, claro, outro simplismo enviesado. Numa correlação ideologicamente óbvia demais, a autoridade foi imediatamente associada ao Estado.

Ocorre que o Estado não é, hoje, nem de longe, a maior autoridade a incidir nas vidas das pessoas, para desespero de quem ler Orwell como se tivesse sido escrito hoje ou há poucos trinta anos. Orwell é genial, mas 1984 é uma teoria em que no lugar do Estado pode-se por outra coisa, conforme mais adequada segundo o tempo. A teoria é boa, mas as personagens não são estáticas.

Muito mais que o Estado, a ciência, a imprensa e o tribunal são autoridades aptas a conduzirem à obediência cega. São mais legitimadas, para se usar linguagem jurídico-social da moda. Essa legitimação da autoridade advém da maior de todas as mentiras: a imparcialidade.

Certas instituições conseguiram criar e estabelecer o mito das suas imparcialidades, quase sempre a partir do discurso de verniz científico. Aqui, cabe menção a Foucault, que viu bem a narrativa e o discurso científico como indutores de legitimação para exercício de poder, do poder indiscutível e impassível de objeção dialética, exceto se se tratar de uma falsa dialética exercida dentro do círculo.

A imprensa e o tribunal tiveram de tornar-se científicos; perceberam-no logo. E foi fácil, porque alguém disse as palavras mágicas: método e sistema. Especializaram-se e se apropriaram da autoridade da ciência, esta, na origem, não destinada a basear narrativas para obtenção de poder.

Era bastante óbvio que instituições quisessem para compor sua narrativa algo como tudo que se soltar cai. Elas precisavam de suas leis da gravidade e as criaram a partir do uso da linguagem própria para enunciar leis físicas. Perderam o talvez e assumiram o axioma, com a chatice das mil e uma falsas dúvidas e da insistência em afirmar metodologias.

Hoje, especificamente no Brasil, imprensa e tribunal se retroalimentam  no jogo da afirmação que é legítima porque é e pronto. E, claro, isto tem propósitos políticos; isto visa ao comando do Estado sem a necessidade de jogar o jogo político, que foi tornado coisa feia, não científica, não imparcial. A autoridade da imprensa e do tribunal atua sobre os alunos como no experimento do doutor Milgram: eles a seguem, não a despeito de conflitos, mas sem conflitos.

 O problema disto – e aqui falo da situação do Brasil atual – é o mesmo da reação em cadeia dos núcleos de urânio que se desintegram: há um ponto em que não há barras de grafite que cessem o processo. Neste ponto, o conjunto dos cidadãos parece ter seus corpos calosos secionados e agir apenas pelo hemisfério direito do cérebro – aqui não há trocadilho, devo dizer.

A travagem deste tipo de processo tem a mesma chave de sua abertura: a autoridade. Ela cria-se; ela pode ser desfeita também, por outro discurso a ela contrário. As objeções dentro do modelo não resultam senão em morte lenta, retórica de nada e frustração.

A autoridade que alimenta os comportamentos irracionais e selvagens da pequena-burguesia brasileira deve ser contraditada. Ela não tem – porque não existe isso – as bases que afirma ter: imparcialidade e ciência. A imprensa e o tribunal não são veículos da verdade, não são instituições desinteressadas; são partes num processo. Isso deve ser dito.

ENEM e ódio de classe.

Viajar é bom, desde que não seja a trabalho. Retornar pode ser bom também, mas é sempre meio complicado e trabalhoso. De volta a casa, constato que nada há para comer e beber, além de lembrar da necessidade de desfazer mala e pôr roupa para lavar. Tudo com a pressa de quem vai trabalhar no dia do retorno…

A obrigação de ir ao mercado com pressa é ruim, embora ir ao mercado, para um velho como eu, seja bom. Vou comprar coisas básicas: pão, queijo, fiambre – recuso-me a chamar presunto o que não é – alho, cebolas, tomates, alguma carne, feijões, cerveja. Mesmo rapidamente, o mercado agrada-me.

Chego ao caixa, ainda vazio, e há apenas um cliente na minha frente, na fila. Percebo que a funcionária do caixa conversa animadamente com a funcionária que põe as compras nos sacos, algo que estranhamente perdura por aqui e que deve perdurar, afinal é um emprego a mais.

Conversam sobre o ENEM, que a menina a empacotar as compras tinha feito, no final de semana imediatamente anterior. Era uma segunda feira e o exame ocorrera nos dias anteriores. O ENEM, deve-se explicar rapidamente, é o exame nacional do ensino médio.

Uma coisa tão óbvia quanto tardia; veio substituir o exame vestibular, como meio de seleção para ingresso no ensino superior. Trata-se de exame de avaliação a que se submete quem concluiu o ensino médio, o que antes chamava-se segundo grau. A nota obtida neste exame pode ser usada para concorrer a vagas nas faculdades que o aceitam como meio de seleção. Hoje, quase todas aceitam-no, a provar a eficácia do modelo.

Somado ao Sisu, ele aumentou imensamente as chances de preenchimento de vagas nas universidades, universalizou a concorrência e permitiu menores gastos para os pretendentes ao ingresso nas faculdades. Um só exame permite ao candidato concorrer aos cursos que quiser, no país inteiro, em igualdade de condições com os demais. O exame vestibular feito por cada universidade, para cada curso, era um filtro sociocrático, não meritocrático.

Na sistemática do ENEM e do Sisu, um candidato obtém nota e com ela candidata-se ao que quiser, onde quiser, em disputa com todos os demais, do país inteiro. É a ampla concorrência em forma quase pura.

Mas, retornemos à fila do caixa do supermercado. À minha frente havia um fulano com muitas coisas e ares de preocupação. Não estava contra a, b ou c, especificamente, mas estava preocupado com algo da vida. Esperou passarem todas as compras e pagou. As moças conversavam animadamente.

Atrás de mim estava uma dondoca. É impossível – e seria artificial também – não a caracterizar assim, porque era isto mesmo. Uma senhora jovem, de cabelos pintados a loiro, assim como loiros eram o relógio e os anéis. Vestida para festa, às oito horas da manhã, e com ar de discreta abjeção pela realidade, o que é diferente de distância ou devaneio. Não disfarçava a impaciência, embora não houvesse qualquer demora excessiva, nem fosse crível que tivesse algum compromisso.

Chega a minha vez. A moça do caixa vai passando as compras e logo pergunto à dos sacos se falavam do ENEM. Ela responde imediato que sim. Perguntei das provas. Respondeu-me que as primeiras tinham sido de língua portuguesa, matemática e não sei o que mais. Explicou-me, enfim, quais as provas e a ordem delas. Perguntei se ela tinha se saído bem. Disse-me que sim e continuou a falar, bem tecnicamente, para minha surpresa.

A senhora atrás não se conteve e nisso não deveria haver surpresa. Não se conteve mesmo que a conversa não tenha atrasado o andar da fila. Eu não me propunha a conversar a ponto de retardar a marcha normal de passar produtos, pô-los nos sacos e afinal pagar a conta. Ela não se conteve por conta do fato da moça ter feito o tal ENEM e dele falar com tanto desembaraço.

Virou-se para mim e disse: Esse negócio de ENEM é o fim do mundo, coisa desse governo! Ao que repliquei: Por que, minha senhora?

Continuou – e se dirigia apenas a mim – a dizer: O mérito, o mérito, era vestibular, as vagas dos melhores… isso tira a concorrência.

Respondi: Olha, isso aumenta muito a concorrência. A concorrência agora é todo mundo.

Ela ouve e não compreende, é claro, e segue: O senhor vê que acabaram com a justiça na faculdade.

Perco a paciência: Qual o problema? A moça não deve estudar? É pra ficar sempre onde esteve, não pode melhorar?

Ela: Não, não é isso, ela deve ser premiada pelo esforço!

Eu: Minha senhora, o esforço dela é maior que o meu; que o seu não sei, que não sei o que diabo faz ou estuda ou estudou. O meu mérito é simples: foi ter nascido onde nasci, estudado nos jesuítas, ter sido alfabetizado em três línguas, passado no exame vestibular mais difícil que havia há vinte anos. Só isso. Menos era vagabundagem. E eu não tenho raiva da menina que fez ENEM.

Não pude deixar de acrescentar, em epígrafe: A senhora, com mais méritos que eu, não pode ter medo dessa menina estudar!

Felizmente a dondoca calou-se. Deve ter percebido algo. Pouco é verdade.

O homem-massa não pensa, projeta-se.

Inicialmente, a advertência sempre necessária: o homem-massa ocorre tanto entre os pobres, quanto entre os ricos. Ele não é causado, nem é causa da luta de classes. Esta última sempre houve; o primeiro é assustadoramente novo.

Tocqueville traçou-lhe o esboço, surpreso que as palavras despotismo e tirania não servissem à perfeita caracterização deste tipo ameaçador da democracia, na América do Norte. Isto foi nos anos da década de 1830, mais ou menos.

Em Nietzsche, no último quarto dos 1800, não há esforço sistemático na definição de tipos psico-sociais. Nem há, contrariamente ao convencionalmente aceito, o panegírico da transvaloração ou do super-homem. Há, sim, profecia. O super-homem aconteceu, é o homem absoluto, algo possível quando os valores absolutos estão todos ultrapassados e o homem-massa torna-se absoluto e simulacro de relativos.

O niilismo e a ignorância histórica são as bases do homem-massa, suas condições iniciais e necessárias. Sepultados os valores absolutos – e aqui não se cuida de valores morais – o homem assume a posição dos absolutos e conforma-se em um ambiente de vários absolutos reunidos, o que somente poderia ser uma reunião de deuses ou um simulacro. A sociedade torna-se em simples convívio de inúmeros absolutos.

O absoluto a que me refiro talvez fosse melhor nominado categoria. O belo, o verdadeiro, o feio, o falso, como categorias, não são axiologias apropriáveis intelectualmente, por esforços do espírito. A partir do momento em que se lhes retira toda a objetividade, tornam-se projeções subjetivas e assim podem ser qualquer coisa, desde que se lhes dê qualquer capa de ciência de almanaque.

Ortega y Gasset desenhou o homem-massa, que estava triunfante já. Escandalizou-se que o tipo fosse prenúncio do extermínio de uma forma de convívio que lhe tinha permitido o surgimento: a democracia liberal. E antecipou o fascismo que viria e não seria exterminado pela vitória russa e dos aliados na guerra de 39 a 45.

A arte seria superior às teorizações, mesmo que aparentemente não seja prospectiva. Albert Camus põe na boca de dois médicos a percepção da volta do mal inominado. Os ratos morriam em Orã e não eram brincadeiras de crianças. Era o que não devia, não podia haver, pois estava extinto há séculos, mesmo que o bacilo fique guardado na poeira, à espera da ocasião para mandar os ratos à morte…

A tal democracia liberal, esta coisa inventada na Ática como reação aristocrática, é tão necessitada de prestar serviços ao processo de acumulação que estimula suas próprias crises ou, pelo menos, faz tudo para que elas sejam mais constantes e próximas.

O fascismo é a crise por excelência da democracia recente. Fazer de conta que a vitória militar em 1945 extinguiu o fascismo foi das coisas mais geniais que se viram nos últimos tempos. É algo semelhante à quase proibição da palavra problema pelos norte-americanos, substituída pela moralista desafio.

Foi interditado dizer fascismo, como foi dizer peste. A forma sócio-política teria de ser de impossível retorno, assim como a infecção pelo bacilo gentilmente passado adiante pelos ratos. Nenhum dos dois está banido, nenhum dos dois impossibilitado de retorno, todavia. Na verdade, o fascismo retornou onde seria supostamente improvável, nos Estados Unidos da América e nos seus satélites, regionais ou não.

O triunfo do homem-massa, tipo social dominante, deu solo fértil para retorno dos fascismos. Seguro de si, esta figura não pensa nem desconfia do que afirma. Sensibilíssimo, por gestado na abundância material que crê estado natural – um ponto divergente do homem-massa fascista de 36 – reage a tudo que seja discreto regresso material com fúria. É capaz de ódio por não ter podido acrescentar um alfinete à sua vasta coleção de alfinetes todos inúteis.

A sua linguagem é a do corpo. Portanto, sua última razão é a violência, o ponto final a que a linguagem corporal pode conduzir.

À máxima intumescência deste quisto sucede o esvaziamento aliviado. Mas, até que o tumor exploda, muitos pereceram. O roteiro do fascismo é semelhante mesmo ao da peste e, num, como noutro, há quem ganhe. A peste é um enorme ganho para os que a sobrevivem. O fascismo é enorme ganho para os esquemas financeiro e bélico.

Ambos são ruins para os que morrem sem o terem querido, porém…

Golpe paraguaio é mais barato que impeachment.

Eduardo Cunha será liquidado na máquina de moer carne judicial. Terá de ser assim para se manter a coerência interna da narrativa; o judicial é percebido como jogo pela regra, embora seja ele um fazedor de regras e, portanto, agente do jogo político que não conhece regras.

Uma figura quase mafiosa, que se serve há muito da chantagem como modo de operação, não é fácil de se descartar, nem de fazer acordos. Assim, deve cair por obra do poder moderador, porque o poder político real precisa podar seus galhos ruins por outras mãos.

O golpe, hoje, precisa mais de livrar-se do deputado que de contar com sua ajuda. A presença do deputado como protagonista do golpe é o retardo da derrubada da Presidente. A situação dele é crítica e um processo de impedimento por ele aberto seria facilmente desacreditado, por evidente movimento pendular de vingança ou barganha.

Além disso, o processo parlamentar é caro, tanto nas seduções imediatas – à semelhança do ocorrido  na votação da emenda constitucional da reeleição para cargos executivos – quanto nas seduções de longo prazo, a partir de compromissos  mais ou menos estáveis.

O parlamentar médio não é estúpido nem suicida como o médio classista típico, leitor de revista veja. A ação dos deputados e senadores médios pauta-se por cálculos muito mais objetivos. Realmente, um parlamentar com raiva é, em 80% das vezes, mera encenação.

O impedimento tem outros inconvenientes que os golpistas de alto escalão consideram atentamente. Se o congresso afasta a Presidente da República, o vice-Presidente assume o posto. Muito embora seja um conservador, ele não é exatamente a quem o partido líder do golpismo quer dar a presidência.

A hipótese de se impedirem ambos Presidente e vice-Presidente é remotíssima porque é dificílimo encontrar ou fabricar qualquer puerilidade com ares jurídicos contra quem não tem efetivo poder, como é o caso do vice. Além disso, Michel Temer é do PMDB e seria algo incoerente demais até para os padrões deste partido.

O cenário de três anos de Michel Temer na presidência da república não é precisamente o sonhado pelos líderes do golpismo, que servem marginalmente a si mesmos e principalmente aos interesses entreguistas. Não haveria muitos problemas para Temer abraçar um roteiro entreguista, mas os ganhos marginais dos operadores políticos do PSDB seriam muito reduzidos.

Temer poderia muito bem articular a interlocução direta com os interesses externos e afastar destes entendimentos os intermediários atuais, tornando-os desnecessários. E teria chances de reeleição em 2018, caso não incorresse na tolice de impor retrocessos sociais muito drásticos.

Daí que o golpe paraguaio – o golpe judiciário – é muito mais plausível, por muito mais produtivo para a vanguarda do golpe. Além de aparentar isenção – pois as massas ainda creem nesta quimera – seria muito mais barato em termos de compromissos. Em um tribunal qualquer com dez juízes, dois estão intimamente comprometidos e os restantes vão na onda com medo da imprensa ou por convicção mesmo, porque leem revista veja.

O único empecilho ao golpe paraguaio é quem assume após consumada a derrubada. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, não tem qualquer interesse em patrocinar um golpe que favoreça o senador Aécio Neves. Alckmin sabe muito bem que seria competitivo nas eleições de 2018.

Aliás, com a blindagem poderosa e a propaganda constante contra o governo federal patrocinados pela imprensa, Alckmin seria muitíssimo competitivo nas presidenciais de 2018. Caso Aécio herde a presidência sem a ter ganho nas urnas, evidentemente não haverá espaço para o governador de São Paulo em 2018.

E tampouco em 2022, porque após sete anos de governo Aécio será virtualmente impossível alguém da sua sigla eleger-se presidente.  Para quem não acredite, basta lembrar o estrago feito por oito anos de Fernando Henrique, tanto no país, quanto na imagem dele mesmo e dos seus acólitos.

Daí que a resolução de conflitos internos ao PSDB é essencial no tempo do golpe, seja ele parlamentar, seja judicial, sendo este último mais provável.

Porque o golpe está em regime de urgência.

O golpe de estado atualmente tentado no Brasil, contra o governo eleito legitimamente, segue em ritmo frenético e, por isso mesmo, confuso. A pressa constantemente tem por consequência a confusão, o que pode ser bom ou ruim estrategicamente, a depender das habilidades dos agitadores e operadores.

É fundamental dizer claramente que este processo golpista – assim como seus precedentes – é preponderantemente exógeno. Internos são os agentes operadores localizados na imprensa, congresso nacional, poder judicial e movimentos supostamente populares que ninguém sabe como se financiam.

Sozinhos, estes operadores internos pouco podem. As elites locais sempre atingem acordos em que mantém quase intocados seus altos níveis de apropriação, mesmo em períodos de concessões mais ou menos tímidas às maiorias. Elas ganham em todas as situações, com algumas variações poucas que não invalidam a lógica capitalista. Logo, o núcleo da burguesia nacional, na ausência de estímulos externos, não patrocina golpes.

Provenientes da grande burguesia nacional envolvidos diretamente como agentes do golpe temos apenas os patrões da imprensa. Todavia, essa gente não é propriamente nacional. Historicamente, têm alinhamentos ideológicos fortes com os norte-americanos, além de participação capitalista externa. A imprensa é formatada de tal maneira que serve, queira ou não, aos interesses norte-americanos. É filha do modelo TV – Hollywood do pós-guerra; um modelo de propaganda, basicamente.

Cabem aos agentes locais do golpe duas missões básicas: dar formato jurídico à violação da institucionalidade e cevar o ódio difuso da pequena-burguesia. A segunda missão é de uma irresponsabilidade profunda, porque é a semente do fascismo, mas eles a levam a cabo, sem cálculos de futuro. Estão imbuídos em uma cruzada religiosa; sua tenacidade é quase de devoção.

A pressa explica-se por fatores geopolíticos e pela perda gradual de fôlego financeiro da imprensa local. Á medida que segue a decadência norte-americana – algo que se sabia seria terrível para o mundo e dramático para os vizinhos continentais – encurtam-se os prazos para fazer tudo que do apoio norte-americano dependa.

As decadências tem vários paradoxos aparentes. Um deles é que à perda de influência corresponde a abertura de mais frentes de combate, sejam políticos ou propriamente bélicos. Nisso, a analogia já feita aqui com a morte de uma estrela, creio ser bastante adequada.

Sucede que a perda de capacidades de enfrentar numerosas frentes de combate, a par com o crescente desejo de as aumentar, cobra seu preço em termos de realidade. A capacidade norte-americana de desestabilizar o mundo reduz-se. Recentemente, a entrada da Rússia na Síria, para dar cabo do Estado Islâmico criado pelos EUA, Israel e outros sócios menores, dá provas disto. Além de encurralados na exposição flagrante de suas hipocrisias, os associados da OTAN vêm-se diante de limites objetivos.

Por maior que o Brasil seja economicamente, não é mais importante que o jogo no tabuleiro do oriente próximo e da estepe asiática. Naturalmente os maiores esforços estão lá concentrados e, considerando-se que os recursos são finitos e decrescentes, fica claro que reduz-se sua capacidade de investir na desestabilização nas áreas menos importantes. Por isso a urgência em consumar o golpe no Brasil, pois será cada vez mais difícil financiá-lo e cada vez mais remota a possibilidade de emprestar a sexta frota para o impor na forma clássica.

As forças armadas brasileiras, hoje, não têm interesse no golpe de estado. Seus oficiais generais não estão dispostos a entrar na aventura. A experiência recente com governos da gente que está à frente do golpe mostrou-lhes que perdem dinheiro. Realmente, o período fernandino, de tão entreguista que foi, quase liquida com as forças armadas. Ora, os oficiais superiores tem honorabilidade no que tange às suas capacidades bélicas reais e não acham muita graça no sucateamento das suas armas.

Por outro lado, uma personagem central do esforço golpista parece ter sido muito mal escolhida. O presidente da câmara dos deputados é alguém muito sujo até para ser protegido pelos fortes esquemas da imprensa e do sistema judicial. Fazer sua integral blindagem mediática e jurídica é esforço semelhante ao de segurar água com as mãos. Sempre vazará por todos os lados.

Mesmo que a pequena-burguesia seja terreno fertilíssimo para a propaganda golpista escrita e televisiva, há níveis de contradições que tumultuam o processo e podem implicar massa crítica para uma reação sem quaisquer controles. As contradições da ponta-de-lança do golpe de verniz jurídico tornam-se muito evidentes e fica difícil escondê-las todas. O presidente da câmara é figura complicadíssima. Tirá-lo da posição será também complicadíssimo, porque ele tem apego pessoal à posição e sabe onde todos os outros possíveis substitutos almoçaram no passado.

Há razões para crer que se o golpe não se consumar neste ano de 2015, será inviável ao depois. Perderá inércia, porque os EUA não terão tempo de o ajudar tão intensamente quanto necessário, a imprensa terá de cuidar da sua situação financeira caótica e os agentes imediatos terão de cuidar de inúmeras defesas na arena judicial. Apenas espero que esse eventual fracasso do golpe não deixe em seu lugar algo tão ruim quanto: o desgoverno.