Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: novembro 2015 (Page 2 of 2)

Você sabe atirar?

A esquerda de academia sabota a que assume riscos reais. O que eles produzem já existe, reinventam a roda cotidianamente, fazem auto celebração e menções cruzadas, vivem do Estado, falam bem ou mal dele conforme a ocasião.

Não ganham eleições. Mas, sentem-se à vontade para tentar extorquir algo de quem as ganha. E se a extorsão não resulta em tudo que querem, estão disposto a emprestarem suas penas para a segunda volta da chantagem. Se, afinal, der errado, recomendam mea culpa a quem deu a cara a tapa e pulam fora.

Uma reunião dessa gente é um campeonato de currículos. Cada um que fala faz a declamação do resumo de sua tese de mestrado ou doutorado, ou tudo junto. Não saem das suas teses e ficam a celebrar-se interminavelmente.

Como todo esquema clerical, são perfeitamente compreensíveis a partir da luta de classes. Estão nas classes superiores e, portanto, contra as inferiores, pouco importando a embalagem em que porão seus reais anseios.

Não assumem quaisquer responsabilidades, certos de que ganharão assim ou assado. Têm muita razão em pouco temer, porque nada ameaçam. Não há que temer, nem por razões formais, nem materiais. Acontece que não era necessário ser além de irresponsável oportunista de funeral.

Lula foi o maior presidente que teve o Brasil. Seus oito anos de governo melhoraram as vidas de todos, sem exceções. Ele é um capitalista esclarecido que apostou no mercado interno e na aliança com a grande burguesia nacional. Vem da classe baixa e isso é inédito.

É claro que a esquerda da academia não o tolera. Ele assume riscos e encara responsabilidades. Sacrifica no altar da academia como em qualquer outro, sem mais reverência aqui que acolá. Não tem graduação, nem pós-graduação; não estudou metodologia, não é epistemológico. Ele é apofático. Não é acadêmico, não é comunista, não é direitista, não é escravo da Casa Grande, mas fala com ela.

A esquerda da academia quer mandar nele, todavia. Agora que ele é o alvo de todo o golpismo enraivecido, a esquerda de academia recomenda-lhe penitência. Recomendam-lhe estudar a situação, com ênfase nesse termo estudar, como a lembrar que formalmente ele não estudou. Eles vingam-se.

Dilma Rousseff estudou. Mas, além de ser economista, ela sabe atirar. Isso não agrada o clero, pois ela tem uma competência que denuncia a incompetência do clero: ela já brigou a briga de verdade, algo que o clero nunca fez, pois terceiriza os limites, terceiriza a violência. Mais que temer, sentem repugnância pelo real.

Quem ganhou quatro eleições seguidas não foi qualquer integrante do clero e, portanto, não foi o discurso do clero. Lula é o branco que assim não é percebido na África, onde branco e dominador são sinônimos. Foi ele a ganhar duas eleições presidenciais, depois de perder três. Suas vitórias não foram vitórias do clero, embora um e outro clerical lhe fizesse vênias.

Quem ganhou foi o operário que nasceu pobre e não estudou. Agora, quem ganhou foi a que estudou mas brigou; a que sabe atirar, algo muito mais difícil que alinhar notas de rodapé e citar os citandos corretos.

Não há perdão para eles, obviamente. O clero dirá que não ganhou porque não quis disputar, porque sua posição é alheia e equidistante, é teórica. Dirá que a massa não compreende o discurso clerical, ou seja, que não compreende a verdade, posta em linguagem dos deuses.

O clero não ganha eleições; nem com a ajuda da imprensa. Mas, tem raiva e tem espaço para externa-la.

Eu, centro do mundo…

Pela manhã cedo, costumo estar de bom humor. Isto foi essencial no episódio falado a seguir, porque não é sempre que altas doses de ridículo e egocentrismo levam a reações adequadas.

O edifício em que moro é próximo de um terminal de integração de linhas de ônibus de transporte coletivo urbano. Assim, a rua em que está localizado é roteiro de muitas linhas, ou seja, nesta rua passam ônibus com destino ao tal terminal.

Manobrava o carro na garagem, em vias de sair para trabalhar, quando uma senhora, vizinha, bateu levemente no vidro do lado oposto ao meu. Parei o carro, baixei o vidro e dei-lhe bom dia. Ela respondeu educadamente e de forma meio complicada iniciou o discurso a que se propunha.

– O senhor sabe, aqui na rua passam esses horríveis ônibus. Desde esse terminal aí, o de integração, tem essa maldição.

– Sim, passam ônibus…

– Olhe, é uma poeira que Deus do céu! Fica tudo sujo, o tempo todo, a empregada tem de ficar limpando o tempo todo. Um horror!

– É, realmente o tráfego dos ônibus traz muita fuligem.

– Precisamos fazer alguma coisa. O senhor precisa falar com alguém.

– Como assim?

– Falar com as autoridades, em nome do condomínio. Pedir para não passar mais ônibus na rua!

– Entendi… A senhora quer que eu peça às autoridades de trânsito para proibirem os ônibus de passarem aqui na rua? Certo, certo, vai dar certo isso…

– Vai, eles vão entender o absurdo que é isso.

– Claro, vão… Olhe dona Fulana, vamos fazer o seguinte, pra dar mais substância a essa justa reivindicação…

– Diga?

– Vamos fazer um abaixo-assinado! A senhora, penso eu, é aposentada, não é?

– Sou, sim.

– Pronto, a senhora tem mais tempo que eu e conhece mais gente. Daí, a senhora colhe as assinaturas de todos os moradores da rua. É fundamental pegar as assinaturas de todas as freiras aí do Convento das Clarissas, aí em frente, e dos mórmons aqui do lado; isso tem peso, sabe.

– Sim, sim, tem, mas será que isso é preciso mesmo?

– Claro! Depois é só reconhecer todas as firmas em cartório e nós procuramos as autoridades.

– Olhe, vou ver, vou ver… Até mais senhor Sicrano, tou vendo que o senhor tá saindo para o trabalho.

– Até, dona Fulana. Disponha. Bom dia.

O mais extraordinário deste episódio é que a minha interlocutora não pensou nem um minuto que o desejo dela esbarra nos interesses de toda uma coletividade que se transporta em ônibus, nos interesses do poder público e nos interesses do capital!

Ela simplesmente acha que o absurdo para ela – o tráfego dos ônibus na rua em que mora – é um valor absoluto e que, ou não há milhares de outros interesses, ou eles devem sucumbir frente ao dela. É autorreferência em estado quase puro.

Interessante também é que dá para forçar um recuo quando se trava a tentativa do autorreferente de terceirizar ridículo e trabalho. Neste ponto, muitos começam a pensar um pouco…

“Home” por Warsan Shire.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

 

HOME

no one leaves home unless
home is the mouth of a shark
you only run for the border
when you see the whole city running as well

your neighbors running faster than you
breath bloody in their throats
the boy you went to school with
who kissed you dizzy behind the old tin factory
is holding a gun bigger than his body
you only leave home
when home won’t let you stay.

no one leaves home unless home chases you
fire under feet
hot blood in your belly
it’s not something you ever thought of doing
until the blade burnt threats into
your neck
and even then you carried the anthem under
your breath
only tearing up your passport in an airport toilets
sobbing as each mouthful of paper
made it clear that you wouldn’t be going back.

you have to understand,
that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land
no one burns their palms
under trains
beneath carriages
no one spends days and nights in the stomach of a truck
feeding on newspaper unless the miles travelled
means something more than journey.
no one crawls under fences
no one wants to be beaten
pitied

no one chooses refugee camps
or strip searches where your
body is left aching
or prison,
because prison is safer
than a city of fire
and one prison guard
in the night
is better than a truckload
of men who look like your father
no one could take it
no one could stomach it
no one skin would be tough enough

the
go home blacks
refugees
dirty immigrants
asylum seekers
sucking our country dry
niggers with their hands out
they smell strange
savage
messed up their country and now they want
to mess ours up
how do the words
the dirty looks
roll off your backs
maybe because the blow is softer
than a limb torn off

or the words are more tender
than fourteen men between
your legs
or the insults are easier
to swallow
than rubble
than bone
than your child body
in pieces.
i want to go home,
but home is the mouth of a shark
home is the barrel of the gun
and no one would leave home
unless home chased you to the shore
unless home told you
to quicken your legs
leave your clothes behind
crawl through the desert
wade through the oceans
drown
save
be hunger
beg
forget pride
your survival is more important

no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear
saying-
leave,
run away from me now
i dont know what i’ve become
but i know that anywhere
is safer than here

Warsan Shire é poeta, escritora e educadora. Descendente de refugiados Somalis, nascida em 1988 no Kenya, cujos pais depois imigraram para a Inglaterra, hoje vive em Londres.

 

PS: Os grifos no poema são meus.

Newer posts »