Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: janeiro 2016

O escravo não deve perceber a escravidão. Por isso a imprensa nega a luta de classes.

O capital serve-se da imprensa como se serve da repressão policial. São meios de ilusão e controle social que devem inicialmente impedir a tomada de consciência da luta de classes e, secundariamente, reprimir violentamente qualquer ameaça ao patrimônio.

O discurso é mais eficaz, historicamente. A imprensa, assim como o poder judicial, apropriou-se sagazmente do mito da imparcialidade e ficou livre para mentir e deformar à vontade, em atividades editoriais disfarçadas em jornalismo.

Vendeu a ilusão de que noticia fatos, pura e simplesmente, o que é muito distante da realidade. Ela vende pacotes prontos de idéias simples a serem repetidas pelo público não pensante.

Mas, além da imprensa e do judicial, é interessante perceber que quase toda a sociedade adotou narrativas que tendem a negar a luta de classes, como se os mais díspares grupos em termos de apropriação de rendas tivessem os mesmos interesses.

O discurso corporativo tem exemplos interessantíssimos. Em supermercados, os empregados mais subalternos são chamados colaboradores ou, o que é mais perverso, associados. Colaborador dá idéia de proximidade, de semelhança entre empregado e patrão, algo muito longe de ser verdade.

Associado é perversão e piada. Tudo isso visa a afastar a percepção de exploração e das diferenças imensas na apropriação dos resultados. E resulta bem, a despeito do empregado saber que trabalha muito e que se cansa muito e que ao final ganha pouco.

Essa sagacidade é, talvez, ainda maior nas classes médias, que chamam suas empregadas domésticas pelo eufemismo secretária. Ora, como é que é secretária quem não ganha salário desta função, quem não faz trabalho de secretária? É uma piada de alta perversidade.

Neste caso de secretária, a família médio classista expia um pouco de sua culpa esclavagista, além de suprimir o termo estigmatizante empregada. Claro que do estigma só se extirpa o nome e o restante permanece nesta que é a pior função laboral existente no Brasil.

Mino Carta aponta algo interessantíssimo no âmbito da imprensa. Diz que não conhece outro país onde os jornalistas e repórteres chamem os patrões de colegas. Ora, o fulano que escreve o editorial é o patrão ou funcionário qualificado deste – um quase patrão. O jornalista é empregado, nunca colega de patrão algum.

É necessário expurgar dos discursos todas as menções, todos os termos que indiquem a relação patrão – empregado explicitamente. É preciso que não se percebam com nitidez as diferenças enormes e obscenas entre os 2 ou 4% que se apropriam de mais e os rentantes. Claro que diferenças percebem-se, mas o discurso leva as maiorias a ignorarem qual grandes são elas.

Diferenças que não se percebem nas suas reais e abissais dimensões parecem aceitáveis e podem ser explicadas pelo besteirol comum do mérito e outras mentiras deste tipo. Assim, os escravos seguem a aceitar suas servidões, na medida em que não de veem como servos.

Por conta da negativa da luta de classes – a maior tarefa da imprensa que funciona como uma corporação mundial a serviço do grande capital financeiro – as maiorias são levadas a descrer da política e pensar que o farisaísmo é mais importante que a escolha política. São levadas a acreditar num sistema burocrático supostamente virtuoso, meritocrático e imparcial.

A negação da luta de classes é a negação da política também. Implica a idéia de não haver escolhas, opções, hipóteses, nada variável conforme uma decisão que vise aos interesses próprios de uma classe. É um estado quase religioso de verdade única, de gestão por manuais, ou seja, de naturalização da história. Isso é conservadorismo na forma mais pura.

Por terem tido grande êxito em fazer a maioria das pessoas crerem que compartem interesses com seus exploradores, os avanços políticos, sociais e econômicos, nomeadamente no que se refere a melhor distribuição de riquezas, são espasmódicos, episódicos e sempre sujeitos a travões ou retrocessos.

As pessoas chegaram, em sua imensa maioria, ao grau zero do pensamento autônomo. Não há originalidade para dizer algo belo nem feio, só repetições. Não há noção de história, nem de realidade.

Presentemente, para travar as melhoras nas vidas da maioria das pessoas – algo que repugna às classes médias e altas – a imprensa investe contra governos sob argumentos não provados de haver neles corrução elevada.

Ora, não há hoje corrução mais elevada que em qualquer outro período histórico e só os tolos crêem que há, porque é próprio dos tolos serem ignorantes de história e não pensarem por si mesmos.

Assim, muitos são levados a esquecerem as melhoras de níveis de vida e a bradarem contra algo que é historicamente estável e não mereceu estes ataques, exceto quando havia governos mais favoráveis ao povo, claro.

Conduzido por uma imprensa hedionda o povo busca o suicídio, oferece sua servidão e marcha para um fascismo perigosíssimo.

Uma questão de gênero.

Esse último ano certamente me deu pena do rapaz que teve que preparar uma retrospectiva da política nacional brasileira. Foi um ano intenso, e a cada novo acontecimento de seus últimos dias o ano mais parecia um seriado em que o roteirista brincava de ligar as pontas soltas do ano todo.

Também nesse ano, mais do que em outros, houve um acirramento político no Brasil entre os que se dizem de “esquerda” ou de “direita”, podendo ser considerados representantes de cada lado e tendo visibilidade nacional, estão os deputados federais Jean Willys e Jair Bolsonaro. Um homossexual que defende as políticas de gênero que acha pertinentes, e o outro um ex-capitão do exército brasileiro que as rechaça por completo, ou quase isso.

Esse fato levou à uma distorção não somente do assunto em si, como também de como tratá-lo. Ora, esse não é exatamente um assunto nacional, senão que é discutido em todo o mundo e não é de hoje. Em alguns lugares é mais bem recebido, ainda que não sem resistência a um ou outro de seus questionamentos.

Considerando gênero como a construção psicossocial do masculino e do feminino. há diversos conceitos, para determinar o que chamamos “gênero”: como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de características e potencialidades (FLAX, 1987)”

Entre esses lugares onde o assunto é bem recebido, estão todas as nações ditas desenvolvidas, mais explicitamente América do Norte excluindo-se o México, Europa ocidental e Austrália. Via de regra são os mesmos lugares que o “típico brasileiro” se acostumou a dizer que são melhores em tudo, quando se referem diretamente ao Brasil. Esse costume eu identifiquei, ainda que não massivo como no caso Brasileiro, na Espanha com referência a assuntos pontuais, um exemplo seria um “típico espanhol” dizendo que o cinema espanhol é pior que o norte americano. O caso brasileiro é muito mais conhecido por mim, dai vem o “massivo”, não é que em outros lugares não exista, apenas que a situação de meu país é a que mais conheço.

Acontece que na Austrália um grupo de meninas iniciou um grupo de estudo sobre violencia machista que se formou numa aula de literatura, ou seja, contra violência de… Gênero!

Não somente isso, não satisfeitas com a ausência de assuntos como feminismo nos curriculums escolares australianos, as garotas de 8 a 15 anos ajudadas pela professora, iniciaram uma campanha de Crowdfunding para a elaboração de um KIT contra violência de gênero para ser distribuído e usado por professores e alunos em outras escolas australianas. O objetivo era conseguir 3000U$, as meninas conseguiram 12.000U$. Quatro vezes mais, certamente ajudadas por… Pais e amigos!

Na Espanha, onde de momento estudo e na mesma universidade, que é pública, existe um mestrado em… Gênero!

Nos EUA, mais exatamente em Nova Iorque, uma garotinha de 13 anos, passou a escrever um blog e defender mais ou menos o que defendem as meninas australianas, representando a ONU, que não é pouco, e falando de… Gênero. É um blog para adolescentes feministas.

Agora, eu sou do nordeste do Brasil. Lugar notoriamente conhecido por filosofias avançadas com as quais presenteou a humanidade fazendo-a evoluir muito… Só que não…

Não obstante eu compreendo exatamente como se sente um conterrâneo meu ao assistir um vídeo como esse:

Compreendo exatamente porque eu vejo o vídeo e sou tentado a pensar: “A criança claramente foi treinada nesse discurso!”. E não obstante, por morar ali, eu mesmo vi e tive companheiros de classe “afeminados”, que se vestiam de “homem” e eram ridicularizados inclusive pelas meninas de quem eram mais amigos. Crianças e jovens podem ser e efetivamente são bem cruéis quando querem. Por haver tido tais companheiros, me pergunto o que aconteceria se seus pais tivessem desde o princípio acatado a opção do filho e reagido como os pais dessa criança, defendendo-a incluso de outras crianças e outros pais.

Agora… Não sou pai. Falo sem conhecimento completo de causa, e sem medo de afirmar, quando vejo um pai que compra uma boneca para seu filho, vejo muito mais possibilidades nessa criança do que na nordestina, como eu, que foi, é, e será criada para reproduzir velhos preconceitos.

Acreditar e mais que isso, aceitar que existe o problema e lidar com ele, são apenas primeiros passos. É uma coisa no mínimo engraçada que no mesmo Nordeste em que dizem segundo a situação que você “seja homem”, porque de um “homem” se espera uma série de atitudes tais, adquiridas ao longo do tempo, também seja o Nordeste que rechaça que uma mulher também se edifica, e que em ambos os casos, o corpo biológico é mero detalhe. A referência é clara, as críticas a Simone de Beauvoir e seu texto presente no ENEM. Era preferível TENTAR desconstruir a filósofa, do que minimamente pensar sobre sua afirmação.

Da mesma forma que a aceitação é um dos passos para a solução, a politização exacerbada do problema é o primeiro passo para o abismo. Assumir a preferência por político A ou B que via de regra não fazem ideia do que estão falando e são contra ou a favor de partidos políticos com ideologias tal ou qual, é o abismo em si mesmo, e esse é o caminho que seguimos no Brasil.

Continuaremos durante muitos e muitos anos, vendo gerações de brasileiros visitarem Espanha, Austrália, e EUA, regressando de suas viagens a cantar a perfeição nesses lugares, enquanto são contra as coisas mais básicas que lá existem, em seu próprio país. Ações que caso seus filhos realizassem, com certeza seria motivo de seu orgulho, sendo defenestradas de dentro de casa, pelos mesmos pais que gostariam que seus filhos escrevessem para a ONU.

São Jerônimo: patrono da crítica?

Um bárbaro dálmata do século IV a.C. traduziu a bíblia hebraica e os evangelhos canônicos para o latim. Fê-lo mesmo alfabetizado tardiamente em grego e em hebraico, o que é notável! A Vulgata, tradução dos textos hebraicos e dos textos gregos do Novo Testamento para o latim, deve-se a ele.

O homem fez de tudo e devia ter um senso de oportunidade muito apurado, pois foi de asceta do deserto a proto acadêmico e acompanhante e confessor de senhoras ricas piedosas. Viajou o mundo que a cristandade conhecia, ou seja, a bacia do mediterrâneo oriental, a Palestina, a Síria, a Lídia.

Pegado a livros e principalmente a livros sem autoria definida – o que não constituía qualquer problema – ele desenvolveria a técnica da crítica, que é uma forma de tradução ou, no mínimo, uma derivação desta. Estabeleceu regras para a fixação de autoria, a partir basicamente de conceitos de continência. São critérios de validade e canonicidade por autenticidade consigo mesmo.

Assim, por exemplo, se de vários livros atribuídos a um autor, um apresenta nível inferior, ele deve ser considerado fora da obra. Deve haver uma constante de nível e uma obra inferior às demais retirada do conjunto. A obra que contradiga a corrente ideológica do autor deve ser considerada não dele. Este é um critério de coerência a afastar tudo quanto inicialmente desdiga a linha maior do autor.

O estilo também deve ser homogênio e, assim, a obra que se afaste estilisticamente das restantes tampouco pode ser do mesmo autor. Por fim, lança um critério histórico – o único, talvez, a ter algum sentido – pelo que a obra que se refira a fatos e personagens posteriores ao autor não deve ser considerada dele.

Esse padrão, esses critérios, lançaram as bases da fixação de autoria e, mais que isso, de toda a crítica ocidental posterior. Para ele e na época, isso calhou muito bem, pois tratava com a formação de uma tradição que precisava autenticar-se e autorizar-se. Ele acresceu método, aquilo que autoriza mesmo que signifique nada ou quase nada, posto que sempre dogmático, como qualquer parametrização científica.

O texto sagrado pede autor certo e pede intérpretes, assim como o texto jurídico da tradição judaico-cristã. Se por um lado é aberto e pede intérpretes, por outro precisa fechar seus furos de autoria e estabelecer uma unidade que lhe confira autenticidade e historicidade, mesmo que seja para se afirmar revelado e não histórico.

A crítica gira em torno a isso desde sempre e é crítica de autor mais que de obras. Cuida da unidade da obra a partir de elementos que a própria obra fornece. Ela aponta o diferente que não deveria haver porque proveniente do mesmo autor. Ela percebe melhor da coerência que o próprio autor que tem uma obra glosada por diferente em nível, estilo ou ideologia da linha geral. A crítica é basicamente o fetiche da coerência segundo a definição externa ao autor.

O biografo de autor é uma figura de crítico que sabe escrever mais que cinco páginas e quer ser considerado também autor. Evidentemente, isso é tanto inútil, quanto presunçoso, na medida em que não for história pura e simples. A biografia de Napoleão será uma coisa, a de Stendhal outra. Qual o sentido da biografia dum autor, senão o de lhe retraduzir mais uma vez?

A obra sobre a obra e a obra sobre o autor são a obra de alguém sem obra. Ora, se autor e obra forem o mesmo, escreve-se história. Se o primeiro existe sem o segundo, escreve-se psicologia de uma pessoa que pode ter existido. Se a segunda existe sem o primeiro, escreve-se uma tradução.

Embora não seja o que me levou a escrever essas bobagens, recentemente houve algo que, agora, me vem ao pensamento. Um fulano muito importante escreveu um livro a que chamou: Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia. É extraordinário! Conseguiu ser extraordinário mesmo num mundo com tanta gente e com tanta gente proveniente das terras narcísicas da capitania de Pernambuco.

Uma autobiografia é a história de si mesmo, escrita pelo que a viveu. Uma quase autobiografia é obra de quem é quase o autobiografado. Assim, o autor da quase autobiografia de Fernando Pessoa é quase Fernando Pessoa!

Até então, nunca tinha visto alguém dizer-se quase outra pessoa, embora já tenha escutado a afirmação da identidade total. Quase Fernando Pessoa é algo interessante, porque fica a dúvida se quase o escriturário metódico ou o autor tão aparentemente diverso em estilos de prosa e de versos.

A presunção em afirmar-se quase Fernando Pessoa não passa por ser este autor algo muito grande e inatingível por outrem; não passa por o quase ser impossível de ser quase o paradigma. Não é uma questão de valor do paradigma ou do quase. É que é difícil saber o que é outrem na integralidade, para poder saber que é quase ele.

Quase algo só se afirma por saber-se totalmente o que é o outro. Assim, sabendo-se a integralidade, pode-se saber as diferenças que fazem o quase. Mas, saber a totalidade é quase presunçoso…