Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: abril 2017

A não traição dos intelectuais.

É comum haver surpresa com a cooptação dos intelectuais provenientes da academia pelos think tanks mantidos pelo capital financeiro deslocalizado. Mas, esta cooptação não deveria surpreender, quando se percebem os locais social e psíquico do intelectual de academia. É terreno propício, desde a origem, na verdade.

Por causa das eleições presidenciais francesas, o assunto volta-me à mente. O que um dia foi partido socialista, hoje é um disfarce de partido, dominado por prepostos do sistema financeiro. Alguns migraram para formação de agremiações mais airosas ainda, daquelas que se dizem não agremiações e veículos de um novo todo feito de velho.

Os políticos precisam de discursos estruturados, articulados a uma narrativa maior, que não podem perder tempo a elaborar. Há quem desempenhe esta tarefa de compor os discurso e a narrativa, evidentemente, e que por isto receba paga, também evidentemente. Esses são os intelectuais da academia, que têm a vantagem de parecerem desinteressados.

Mais que serem os sujeitos capazes de estruturar a narrativa, eles são um meio de a estruturar a partir do mito da imparcialidade, porque são científicos. A narrativa política precisou tornar-se negativa da política, fazendo-se forte na ausência de escolhas, ao invés de na sua substância real, que são as escolhas. O impossível de ser diferente entrou nos discursos políticos, por meio das invariáveis teses econômicas e sociais.

O produto oferecido pelo intelectual de academia é axiomático e parcial, por mais que tenha camadas de falsa dialética e de considerações de opostos ou diferentes. A tese serve a um propósito e este é, na imensa maioria das vezes, de concentrar mais e mais a apropriação do que é produzido.

O intelectual de academia – e não precisa provir da ENA – é, antes de tudo, um ser vaidoso e certo de estar a ser constantemente injustiçado no que concerne ao reconhecimento do seu talento e capacidades. Essas características fazem da maioria penas de aluguel potenciais, munidas, sim, de boas capacidades discursivas.

É frequente o encontro dos banqueiros, dos patrões de imprensa e dos intelectuais de academia ávidos por jantares bons…

 

Demofobia. Ou, o anseio de que fossem ao menos invisíveis.

O grande dilema filosófico da classe dominante brasileira é se os pobres deveriam ser escravizados ou, antes, todos eliminados fisicamente. É uma dúvida que seria menos atroz se tivessem rudimentos de economia. Essa dúvida leva a que vagueiem a expressar sua essencial demofobia incoerentemente.

Não me entrego ao grande luxo da surpresa, real ou fingida, frente ao que conheço. Mas, ainda me impressiono, aqui e acolá, com as duas vertentes narrativas principais da demofobia: a clara e a disfarçada. Não sei realmente qual a mais perversa, até porque as duas variantes costumam ser usadas alternadamente pelas mesmas pessoas.

Semana passada tive de escutar uma estória interessante, da vertente disfarçada, que agride mais pela hipocrisia subjacente. Fato é que um fulano disse estar frequentando um parque público da cidade e que havia, gratuitamente, aulas de educação física para os presentes. Atividades específicas para velhos, atividades para jovens. Enfim, alguns educadores físicos à disposição dos frequentadores.

A surpresa do meu interlocutor residia exatamente em que as tais aulas públicas, em um espaço público, funcionavam! Ou seja, eram algo desejável, a custo nenhum. A partir daí, comecei a esperar as objeções e não as esperei somente dos tipos que dizem ser fácil fazer coisas boas. Não sabia exatamente qual objeção viria relativamente a algo que era percebido como bom.

E a objeção veio pelo viés liberal puro, pelo viés privatista. Disse o civilizado que aquilo devia custar muito à municipalidade. Ora, primeiramente isso não custa muito à municipalidade e, segundamente, mesmo que custasse era algo bom. E, em terceiro lugar, insisti, há coisas muito mais custosas e que não promovem o convívio e o bem estar em espaços públicos.

Mas, a insistência no custo persistiu, o que me fez antever o que viria a seguir, pois a estas alturas ficava claro. Meu interlocutor disse: deviam cobrar algo para entrar no parque, algo que fosse ao menos simbólico. Essa proposição é de uma estupidez tamanha que as minhas feições devem ter denunciado o que pensei. Achei que fosse válido ser honesto e redargui: o acesso a praças públicas não é cobrado em parte nenhuma do mundo.

Dizer que algo funciona de uma maneira uniforme no resto do mundo costuma ser eficaz para calar os brasileiros de classe dominante, cuja única vergonha real é a de falar inglês com sotaque. Como vivem a dizer que na Europa isso é assim, nos EUA isso é assado, costumam calar-se quando se diz que algo está exatamente como nestes lugares.

Mas, eis que o discurso demofóbico passou a basear-se nas duas vertentes: a explícita e a disfarçada. Enfatizou meu interlocutor que a cobrança que ele propunha era de um valor simbólico. Ora, se é simbólico, para que cobrar? Afinal, o que é um valor simbólico, o que ele simboliza? Feitas estas perguntas, meu interlocutor desagradou-se, o que era previsível, pois teria de pensar, ou ser sincero até o fim.

Essa estória do valor simbólico é a desonestidade intelectual que quase sempre se insinua impunemente. Se é simbólico no sentido de módico, não tem qualquer sentido como fonte de recursos para custear os serviços oferecidos ao público. Se não é simbólico no sentido de módico, visa a afastar os pobres, pura e simplesmente.

E assim, percebe-se o que é: não tem nada de simbólico como barato, porque nada é barato para pobres e miseráveis e, por outro lado, é sim simbólico, porque simboliza que o espaço pretensamente público é, na verdade, privado. A classe dominante brasileira abomina espaços públicos, porque os pobres podem estar neles, pelo menos potencialmente.

O pobres devem ser invisíveis e, preferencialmente, serem eles mesmos a optarem pela invisibilidade, para que a classe dominante não seja compelida a os mandar retirar e tanger para longe, violentamente. Ter de usar destas violências, inicialmente, fere os escrúpulos desta gente, embora não recuem se for necessário.

Eis que se criou um espaço público na cidade, que tem uma espécie de lago. E, como era evidente num lugar muito quente, as pessoas passaram a usar o espaço público e a banhar-se no lago. Um amigo contou-me as reações de asco de espécimes da classe dominante com os banhos dos frequentadores do espaço público. Viram nos banhos falta de educação!

Não é de educação que se cuida, que essa gente nem na tem, nem se preocupa muito com isso. O problema é percebido visualmente a partir de dois aspectos: a quantidade de gente no local e a cor das peles das pessoas. Se o lago estava repleto de gente a banhar-se, a pular, a mergulhar, a espalhar água e se todos ou quase todos eram de morenos para pretos, era um caso de falta de educação.

Este meu amigo disse que redarguiu para o grupo dos fiscais de educação: Ora, no verão infernal de Roma as pessoas entram na Fontana di Trevi. E o mesmo acontece na França, na Espanha, em Portugal… Foi perverso, muito perverso…

 

 

 

Expurgos e ganho de produtividade.

Uma conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, ocorrida em 1972, foi recolhida no volume intitulado Microfísica do Poder. Em determinado momento, Deleuze diz algo interessante: Se se considera a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global. Quero dizer que todas as formas atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão no ensino, a repressão contra os jovens em geral.

Essa visão total, essa articulação de vários subsistemas, indicam que o poder é muito sutil – como emanação variada, não como meios de atuação prática – e que, por outro lado, consiste em um movimento. Uma roda de bicicleta que desça sozinha uma ladeira é metáfora bem razoável para descrever-lhe a inercialidade.

A representação política é uma de muitas faces perceptíveis do poder atuante à luz do dia. Costuma ser a mais útil, porque geralmente calcada nas narrativas de legitimidade formal para a alocação de recursos do Estado. Mas, não é preciso, ou não é completo, dizer-se que o poder está somente no governo do Estado, ou seja, nas representações políticas e nas demais classes dirigentes corporativas.

Os exercentes de poderes de governo, em maiores e menores escalas, são tão intermediários quanto detentores de frações de poder que se exercem em determinado sentido, contra um núcleo de interesses opostos. Os agentes são identificáveis, mas o poder em si é difícil de identificar tamanha a integração sistêmica dos seus componentes. Acontece, porém, que rearranjos sempre acontecem.

Hoje, no Brasil, há muitos surpresos com os ensaios de expurgos internos no grupo amplo que assaltou o Estado para retomar a compressão social e alienar a soberania pouca que havia. Esses expurgos não são idênticos ao de Carlos Lacerda, por exemplo, mas obedecem praticamente à mesma lógica. Eles não serão apenas o que os apressados querem ver: desculpas para golpes maiores em líderes do campo oposto; não há grande necessidade destas desculpas, pois o mito da imparcialidade não ruiu.

O grupo dos intermediários na representação política reproduz-se e postos elevados podem ser reciclados com relativa facilidade. Os que existem mais ou menos para além da inercialidade são poucos, são os que conseguem por-se um pouco à frete e ao lado, para ver as coisas, e que conseguem fazer da teoria uma prática e vice-versa. Assim, há competição interna nos grupos, o que, de resto, é evidente, embora não tão evidente seja a intensidade a que chega.

Em essência, o expurgo interno tem uma causa principal e mais remota: desnecessidade. Um político pode ser desnecessário por uma de duas razões: ou não é viável eleitoralmente, ou não é útil porque as eleições a que visa não ocorrerão. Este fenômeno acontece em função do poder que advém do dinheiro e é, talvez, onde a parcela financeira do poder se exprima mais claramente, quando ele muda o equilíbrio entre os intermediários de que se serve.

Hoje, a intermediação mediática e pelos subsistemas repressores policial e judicial assume a frente, em detrimento da representação política. Claro que isso, também, sofrerá rearranjos posteriores, depois que façam o que deles se espera, mesmo que mantenham sempre poderes residuais e latentes prontos a ocuparem outros espaços e reivindicarem utilidades.

Feliz ou infelizmente, os preços das coisas importam e importam crescentemente à medida que avança a escassez de dinheiros, ou seja, nas depressões econômicas. O sistema busca ganhos de produtividade, ou seja, produzir resultados semelhantes a custos menores. Isso afeta a parcela apropriada pelos intermediários responsáveis pela produção de narrativas, por quase todos eles. E isso já é o prenúncio de outros deslocamentos e rearranjos de poder.

Afinal, produtores de narrativas não são assim tão raros e o grande número está quase sempre pronto a seguir projetos em que não tem interesses muito claros, como são os financeiros e econômicos. São, ainda como dizia Deleuze, mais desejos que interesses e desejos são mais difusos e profundos que interesses. O expurgo, na espiral moralista, compraz o grande número e só surpreende o expurgado.

Carlos Lacerda não previu nem aceitou seu expurgo. O que significa que, mais que não compreender os novos ocupantes do governo, não entendia o grande número de então.

O grande jogo não busca a imprevisibilidade, embora sirva-se da confusão espetacular. Ora, ao assistir calmamente o expurgo interno de intermediários esforçados, está dando a conhecer que os abandonados e os novos que pretendem substituir aqueles são, ambos, fatores de imprevisibilidade.