Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A banda de música. Getúlio, Goulart, Juscelino e os golpes sucessivos. Parte 3.

Em 1945, Eurico Gaspar Dutra não hesitou em depor Getúlio Vargas, candidatar-se à presidência e eleger-se para o cargo; não tinha alternativas. A deposição era previsível para Getúlio, desde que voltaram 30.000 homens vitoriosos da Itália. Realmente, a coisa mais difícil na história é desmobilizar um exército vencedor e mesmo um perdedor; vejamos o trabalho que teve Xenofonte, por exemplo.

Vargas ainda tentou minimizar o efeito que deve ter antevisto e não enviou os 100.000 homens que os EUA pediram, mas 30.000 foram suficientes. Havia saída possível, que era ter convocado eleições já em 1944, que provavelmente ganharia, mas…

Dutra não foi eleito com maioria absoluta dos votos válidos e a constituição de 1937, então vigente, não exigia mesmo a maioria absoluta. Os músicos da banda que ainda não se formara não levantaram suas vozes nem afinaram os instrumentos contra a ausência de maioria absoluta.

Quinze anos após, em 1960, Jânio Quadros elegia-se presidente sem a famosa maioria absoluta de votos e a banda, já então em plena atividade, não se animou a tomar os instrumentos e fazer seu barulho ensurdecedor. Acreditavam ter chegado ao poder com Jânio, suprema ingenuidade, que ninguém chegava ao poder com ele, exceto ele mesmo.

Jânio nutria tão profundo desprezo por Carlos Lacerda que, em certa ocasião, aceitou recebê-lo em audiência, em Brasília, e simplesmente não o recebeu e saiu para beber. O recado foi de eloquência poucas vezes igual.

Bem, após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, fez-se o vácuo. Um presidente popularíssimo a oferecer o próprio sacrifício é totalmente diferente de um deposto em meio à histeria moralizante da direita predadora que seduz as classes médias. Getúlio deixou um problema imenso e uma valorosa carta com depositário certo.

O vice-presidente era João Fernandes Campos Café Filho. Ele assume a presidência em 24 de agosto e a exerce até novembro, quando licencia-se do cargo por motivos de saúde. Juscelino Kubitschek havia sido eleito presidente da República e João Goulart vice-presidente, este último com mais votos que os recebidos pelo presidente.

A banda de música subiu três tons na escala e iniciou o bombardeio sem sentido contra a posse do governador de Minas Gerais, eleito em perfeita consonância às regras da constituição de 1946. É inútil tentar ver as coisas sob a perspectiva do que chamamos coerência e não é que ela inexista. É que sempre se aposta contra ela em política e, às vezes, com sucesso. A coerência do público alvo das bandas de música é tão enviesada quanto sua moral, sua ética, é conveniência e hipocrisia apenas.

O golpe de Estado toma força em 01 de novembro de 1954, com o discurso tão inflamado quanto obtuso do coronel Jurandir Mamede, por ocasião de homenagem ao falecido general Canrobert. O coronel Mamede excede qualquer parâmetro de razoabilidade, mesmo considerando-se os discretos limites postos ao oficialato, no que se refere a comedimento na agressão às autoridades civis.

Mamede deve ter lido texto de Lacerda. Lá estavam o mar de lama, a preservação dos valores de família e cristandade, as acusações desprezíveis contra um presidente morto e pueris contra um eleito vivo; tudo muito característico, enfim. Ocorre que agressões contra autoridades e incitação ao rompimento da legalidade são infrações ao regulamento de disciplina militar.

O ministro da guerra quer punir o coronel pela indisciplina evidente e pede audiência ao presidente Carlos Luz. Este, exemplar típico do bacharelismo golpista médio classista, não vê coisa mais natural a fazer que impor ao ministro uma espera de duas horas, na antesala. O ministro espera e expõe, quando afinal é recebido pelo arrivista desconhecedor de honra, o que quer fazer. Diante da recusa evasiva de Luz, Lott sai com o contra-golpe em mente.

Não havia o mais tênue problema legal em Juscelino não ter obtido a maioria absoluta, como não na obtivera Dutra. Todavia, todo o discurso udenista contra a posse fundava-se nisso que, do ponto de vista jurídico-formal, era mistura de nada com quase nada. O âmbito jurídico e as pessoas que nele vivem prestam-se a toda sorte de relativizações, todavia.

Café Filho não estava muito animado a integrar o golpe contra a posse de Juscelino, como nunca pareceu muito animado a participar de nada arriscado. Parece-me que o convidaram a entrar no convescote golpista e ele hesitou, tendo então que ficar com a mais ou menos honrada saída da licença por razões médicas.

No impedimento do vice-presidente, assumiu o presidente do congresso nacional, o deputado Carlos Luz, abertamente golpista. Por esta altura, o ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, interveio. Lott havia votado no candidato udenista, o general Juarez Távora, mas era homem apegado à legalidade e não via motivos para impedir a posse do candidato eleito.

Lott teve imensa grandeza e faz falta gente como ele, rara. Deu um golpe preventivo para assegurar a posse de Juscelino, impondo a Carlos Luz o impedimento pelo congresso nacional e a posse na presidência do presidente do Senado da República, Nereu Ramos, o próximo na linha sucessória, conforme a constituição de 1946.

Lott tinha a inteligência de manter nos postos de comando de tropas generais de sua inteira confiança. Assim, inundou o Rio de Janeiro de tanques de guerra e soldados e forçou o afastamento de Carlos Luz, que então protagonizou dos episódios mais patéticos da história recente brasileira, bem acompanhado por Carlos Lacerda.

Luz, Lacerda, Prado Kelly, Sílvio Heck e outros embarcaram no cruzador Tamandaré, fundeado ao largo do Rio. Era o navio de guerra mais poderoso da marinha brasileira, então. Lott não hesitou e mandou as baterias de artilharia costeira atirarem contra o cruzador, sem êxito, todavia, embora tenham chegado próximos ao navio.

Alguma alma inteligente impediu que o Tamandaré abrisse fogo contra o Rio, com suas cinco baterias de canhões, o que resultaria em nada mais que milhares de baixas civis e uma guerra. O navio rumou para Santos, pois julgava-se que o então governador de São Paulo, Jânio Quadros, acolheria o cruzeiro golpista de braços abertos. Ele, Jânio, realmente sinalizou esta possibilidade.

Jânio, que não era burro, apenas açodado, percebeu que não valia a pena unir-se à aventura golpista e negou apoio ao desembarque do Tamandaré em Santos. Lott já contava com duvidoso apoio das baterias costeiras em São Paulo, mas, de qualquer forma, o golpe ficou restrito a um navio fortemente armado. Sem ter onde aportar, essa nave de guerra era quase nada.

Não havia isso que prodigamente chama-se povo, hoje. Havia das classes médias baixas em diante, algo que chama atenção para o extraordinário que foi, tanto a tentativa de golpe, quanto o contra-golpe. Ambos deram-se em âmbito muito restrito, o que destaca uma rara tensão na classe alta, entre legalista e golpistas, nacionalistas e entreguistas, enfim.

O curioso é que Lott parece não se inserir em dicotomias fáceis, ao tempo em que revela toda a sua ingenuidade política. Dificuldade de aprisionamento categórico e ingenuidade política são ingeredientes de uma imensa personagem, insistentemente levada ao esquecimento, como se esse precisasse de trabalho sistemático no Brasil.

Sobre a ingenuidade política de Lott, é suficiente a lembrança da campanha presidencial de 1960, em que ele perdeu para Jânio. O homem ia falar para platéia de sindicalistas de esquerda e fazia discurso anti-comunista. Se falava para católicos, cantava virtudes protestantes e vice-versa. Era capaz de discursos longos e enfadonhos, a discorrer sobre detalhes que não empolgavam a platéia: um não político, enfim.

Mas, em 1954, o contra-golpe fez-se na hora certa, implacável, com o fim de defender a legalidade e a posse do eleito.

Os golpistas teriam que esperar mais dez anos para terem sucesso relativo. Deles, o destino de um é revelador: Carlos Lacerda corre para a embaixada dos EUA e pede refúgio. Era excesso de medo e talves de culpa, pois Juscelino contra ele nada manda fazer.

10 Comments

  1. Sidarta

    No episódio da visita de Lacerda a Jânio já presidente em Brasilia, conta-se que Janio mandou que colocassem as malas de Lacerda fora do palácio presidencial, onde Lacerda pretendia pernoitar.
    Lembro-me das campanhas politicas de Lott e de Janio. O simbolo de Janio era uma vassoura e o de Lott uma espada. Gastou-se muito na campanha de Janio.
    Lá em Finismundi, onde eu morava, lembro-me de que martelaram tanto o folclorico lider do PTB para votar em Janio que ele errou na chapa e nao marcou Lott, indo depois falar com o presidente da sessao para votar de novo, no que nao foi autorizado.

    • Andrei Barros Correia

      Sidarta, coitado do chefe do PTB, mas são os efeitos do bombardeio de propaganda.

      Andei lendo sobre a campanha de Lott e sobre seus discursos e percebi que realmente não empolgaria ninguém.

      Lott era o melhor candidato, evidentemente, mas impossível de eleger-se. Acho que Juscelino escolheu-o para perder mesmo e ele retornar em 1965.

  2. Sérgio

    Jânio Quadros, professor de português, usou a vassoura como
    metáfora de sua campanha de à corrupção, porém foi o primeiro e único, por enquanto, presidente brasileiro flagrado com dinheiro num paraíso fiscal (Suíça). Perto de morrer, escreloraso e inválido, fora esquecido no aeroporto de Guarulhos pelos familiares que brigavam por sua herança milionária.

  3. Sérgio

    A Irônia do destino é que Jânio Quadros, que usou a vassoura como símbolo de combate à corrupção, fora o único, por enquanto, presidente do Brasil que teve uma conta descoberta em paraíso fiscal (Suíça). Se não me engano foram 21 milhões de dólares encontrados pela família.

    • Andrei Barros Correia

      Sergio, eu, particularmente, desconfio de todo discurso de louvação da própria honestidade e de erradicação da corrupção.

      As comissões de investigação que Jânio criou assim que tomou posse eram simples instrumentos para chantagear os parlamentares do PSD e do PTB.

      Ele queria desqualificar o congresso.

      Errou na avaliação. Inimigo do congresso, o golpe dele só teria êxito com apoio popular e o povo era completamente alhio a Jânio, passada a histeria moralizante das vassouras…

  4. Sidarta

    Lembro-me de que no comício de comemoração da vitória de Jânio em Finismundi, o delegado local do PTB, o que tinha votado errado, foi se chegando para perto do palco na praça principal, participou de uma ou duas salvas de palmas e, no final, subiu desconfiado ao palanque, chorou e aderiu a Jânio de corpo e alma. Todos os demais vereadores da oposição já tinham feito isso antes da cerimônia…

    • Andrei Barros Correia

      Sidarta, nas classes médias foi um extase o besteirol da moral e dos bons costumes. Vassouras para varrer a corrupção – que não era maior nem menor que o de sempre – proibições de um rídículo atroz, como biquinis, lança-perfume e brigas de galo.

      Tudo isso leva à histeria, mas não compõe uma massa pronta a apoiar o homem.

      Não aprecio a figura de Jânio, mas não nego que fosse atrevido e audacioso.

      Mas, ele não percebeu duas coisas. Não tinha o apoio popular que o trabalhismo de matriz getulista tinha, sim. Tinha a classe média, mas essa não suporta um golpe.

      E não tinha o congresso, que agrediu sistematicamente.

      Então, foi erro de cálculo achar que o golpe da renúncia daria certo.

      Nem Jãnio era De Gaulle, nem o Brasil a França kkk

      • Andrei Barros Correia

        A saída viável para o golpe era militar, já em 1961, mas aí Jânio era inteligente. Percebeu que se fosse com os milicos estes o descartavam rapidamente.

  5. Sérgio

    Vejam como a história se repete. O mesmo discurso anti-corrupção (os marajás no lugar da vassoura) foram o mote para a eleição de Collor em 89. A classe média comprou as “boas intenções” e deu no que deu.
    É importante reviver a história. A renúncia de Jânio sempre é creditada ao seu vício por uma boa cachacinha (Lula também passará a história como um bêbado de sorte…).

  6. Sérgio

    Na “Revolta da Chibata”, sublevação dos marinheiros da Marinha do Brasil contra os castigos físicos ocorrida em 1910, a cidade do Rio de Janeiro também ficara na mira de vasos de guerra. Segue transcrição:
    “Por quatro dias, os navios de guerra Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro apontaram os seus canhões para a Capital Federal. No ultimato dirigido ao Presidente Hermes da Fonseca, os revoltosos declararam: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *