A ação penal 470, que atende pelo nome vulgar mensalão, pôs em cena violações a princípios jurídicos básicos: liquidou a presunção de inocência, liquidou a necessidade de lei penal anterior, liquidou o duplo grau de jurisdição e liquidou o princípio do juiz natural.

Estas violações abertas foram praticadas pelo tribunal mais elevado do país, o que revela a que ponto se queria e quer promover o expurgo político de alguns, mesmo que isso implique o expurgo de todo o direito e da suposta respeitabilidade intelectual dos juízes do tribunal.

Isso foi possível porque a imprensa televisiva, três grandes jornais diários e uma revista semanal incitaram a condenação sem provas por meio de bombardeio incessante que levou parte do público a esquecer-se de que todos são inocentes até provas em contrário.

Essa parte do público convencida da culpabilidade sem provas divide-se em partes menores. Uma delas constitui o terreno fértil para semeadura de qualquer proposta de juízo de exceção de quantos tenham trabalhado por uma melhor distribuição de rendas e por menos subserviência a interesses externos.

Outra parte dos que se convenceram da culpabilidade sem provas compõe-se das pessoas que precisam ser constantemente estimuladas pela imprensa, em clima de emergência e de escândalo. Esses arrefecem os ânimos linchadores se os estímulos cessarem.

Ocorreu, todavia, algo auspicioso, recentemente. O tribunal que encena o juízo de exceção reduziu um pouco a coleção de aberrações jurídicas que havia perpetrado e afastou uma delas: a supressão do duplo grau de jurisdição. Isto deu-se por meio de uma obviedade, que foi a aceitação de um recurso a dar aos condenados o direito à revisão do julgamento, algo a que todos têm direito.

Foi o que bastou para o pessoal do linchamento indignar-se, embora a reação fosse ela própria uma aberração, na medida em que o duplo grau é garantia constitucional que nunca se pôs em questão e fora suprimida pela primeira vez no país, sob os aplausos enfáticos de uma imprensa pueril, analfabeta e partidária.

À reação furiosa contra o puro e simples respeito a princípio jurídico antiquíssimo sobreveio algo surpreendente: dois juristas respeitados, ideologicamente de direita, insuspeitos de amizade com os réus do processo, proclamaram que houvera nada mais que condenação criminal sem provas, o que é inadmissível.

O que muitos diziam desde o princípio foi dito por pessoas alinhadas ideologicamente aos que promoveram e festejaram o expurgo político disfarçado em processo jurídico. Evidentemente que chama atenção não terem denunciado a farsa e as violações evidentes ao direito antes.

Esses dois juristas deram sinal importantíssimo de que ainda há direitistas bem educados, que receiam a subversão total do Estado de Direito e a celebração festiva e acrítica de julgamentos de exceção violadores de garantias obviamente abrigadas na constituição federal.

Que haja quem perceba a hora de cessar a espiral do linchamento é fundamental para que não seja inevitável desaguar-se no golpe e no rompimento total, ou seja, para afastar-se a lógica do tudo ou nada, tão cara aos irresponsáveis da imprensa que incensam a histeria nas camadas médias já propícias à superficialidade, à bipolaridade e à esquizofrenia.

Os mencionados direitistas alfabetizados perceberam que usar os tribunais assim de maneira a violar tão abertamente as garantias básicas, com o propósito de expurgo político seletivo, é demasiado arriscado. Realmente, esse tipo de conduta assemelha-se às guerras, que se sabe como começam, mas não como terminam.

É muito menos arriscado manter as regras jurídicas em sua aparência de isonomia e não levar os tribunais a operadores de expurgos políticos, que violar abertamente as normas mais básicas a bem de um clamor de moralismo histérico produzido sistematicamente por parte da imprensa.