Em países do que se convencionou chamar mundo desenvolvido, avançam medidas de higiene social. Trata-se de tanger os resultados da concentração obscena de rendimentos para longe das áreas habitadas e frequentadas pelos que ainda se mantém nos 10%.

Vêm à mente os casos de Espanha e EUA. Na Espanha, recentemente, foi aprovada norma que viola as bases do Estado. Ela permite que grupos de segurança privada exerçam poderes de polícia em áreas comerciais, ou seja, permite que detenham, afastem, mesmo que não se trate de agentes do poder público. É aberração por dar função própria da soberania a grupos privados.

Ainda em Espanha, normas recentes criminalizam catar lixo, outra aberração, porque não há violação qualquer ao direito de propriedade no apropriar-se do que ninguém mais quer.

Nos EUA, ressuscitam normas que criminalizam dormir nas ruas, o que visa evidentemente a tanger os pobres para fora do campo de visão dos que ainda se mantém como súditos fiéis do 01%.

Neste passo, convém lembrar que o tal mundo desenvolvido é aquele a não ter crescimento econômico significativo, há pelo menos uma década. A conjunção de estagnação e escalada de concentração de rendas leva à conclusão de que é um processo de enriquecimento de poucos à custa do empobrecimento de muitos. Nisto não há livre iniciativa, nem mérito, nem mobilidade social, nem nada disso que habitualmente se diz para iludir as massas.

Há somente inércia de quem já tem e, à semelhança da física, ela é proporcional a quanto já se acumulou.

Inicialmente, nos EUA e nos seguidores de seu modelo social e urbano, a saída era realmente sair das cidades e residir naqueles condomínios suburbanos em que reinam a harmonia social e a mediocridade dos interesses. Acontece que não conseguiram levar seus escritórios, as escolas e os hospitais para dentro desses micro paraísos. Ou seja, o sujeito precisa sair do paraíso e enfrentar o inferno, que é a cidade e suas desigualdades escancaradas.

Na cidade, o empregado do 01% é obrigado a ver que existem pobres, mal vestidos, famintos, mendigos, loucos, essas malditas motocicletas que a classe média baixa insiste em comprar só para dificultar a vida dos donos de carros e outras mazelas mais.

Daí para principiar a conceber medidas de higiene social é um pequeno salto. As classes altas não têm qualquer compromisso com coerência ou com o sempre aclamado direito e parecem decidir e legislar como se acreditassem estar num mundo de pessoas iguais a elas. Agem, aqui sim coerentemente, como se não houvesse pobres.

Assim, legislam contra a vadiagem, contra a mendicância, como se se tratasse de posturas optativas de algum rico diletante que resolveu trair as origens e agredir seus parecidos com agir diverso. Cuida-se, na verdade, de necessidade, de pobreza, mesmo que um e outro sejam impelidos voluntariamente pela negação de tudo ou mesmo pela preguiça.

Essa ânsia de retirar os pobres da linha do horizonte é reveladora de um mal estar, de um estado de má-consciência dos predadores. Sim, porque se acreditassem no que dizem, ou seja, no mérito, na mobilidade social, na liberdade de escolhas, não se sentiriam tão agredidos pela ocorrência de mendigos, de moradores de rua, de gente que busca comida nos lixos.

É preciso, então, criminalizar a pobreza e dar-lhe a oportunidade, se não quiser parar num presídio, de escapar-se para onde o pessoal de cima não os veja. Pouco serve lembrar aos donos e empregados chegados da Casa Grande que o herdeiro que não trabalha é igual ao mendigo que não pede e apenas expõe sua orgulhosa pobreza e sujidade.

Claro que está tudo impregnado pelo moralismo de raiz luterana que vê no trabalho um valor maior que a perspectiva de ressurreição. Vistas assim as coisas, quem não trabalha é porque não quer, quem não saiu da pobreza foi porque não quis. E quem não quer atingir os máximos valores, trabalho e dinheiro, merece todas as punições, evidentemente.

A Casa Grande dá-se o luxo de querer manter-se hermética e afastada de todos os espelhos que possam refletir suas deformações. A dessemelhança deve ser afastada a qualquer custo para que a inércia social continue a poder ser chamada de mérito e para que ninguém precise ou possa invocar o mérito real, que é manter escravizada a maioria a trabalhar para o enriquecimento da minoria.