Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A manhã passada com Mário de Sá Carneiro.

Acordo cedo, às vezes muito cedo. Agrada-me esse hábito, embora desagrade-me bastante ter que sair de casa cedo, porque não me acordo cedo para isso. Apraz-me ler, pela manhã, e hoje As confissões de Lúcio esperavam-me. Não sei se devia ter lido todo o volume de uma vez, porque um texto pequeno não é necessariamente um para ser lido de um fôlego só.

Talvez conviesse ter lido uma parte, ter saído, almoçado, trabalhado, jantado e voltado à casa. E ter lido o restante amanhã. Mas, não, deixei-me seduzir pela prosa de novela afrancesada, fin-de-siècle, psicológica, fluída, boa de ler, enfim.

Seria possível identificar suas condicionantes cronológicas sem se saber qualquer coisa sobre o autor, nem mesmo as datas próximas de nascimento e morte; muito próximas. Seria possível perceber a proximidade dessas datas a partir do texto.

Claro que as pessoas são, entes de mais algo, elas mesmas. E que, nada obstante, essas pessoalidades também são dos seus tempos. Aqueles tempos foram de aceleração espiralada, vertiginosa, como são todos antecendentes a grandes travadas históricas.

Mas, não se trata de aprisionar Sá Carneiro nas circunstâncias temporais, que a psicologia na obra revela mais que um tempo e mais que um morredor breve. Pareceu-me revelar uma personagem levada pelo tempo ao que deveria visitar e ao que deveria compreender, porque afinal compreende.

A psicologia é, talvez, o xamanismo, como diz Levi-Strauss cientificamente. A tragédia não-trágica da culpa com culpa; a proposta da redenção sem imortalidade.

Lúcio, a personagem confitente, explica porque foi encarcerado por dez anos, condenado por homicídio. Explica depois de cumprir a pena, porque não se animou a explicar-se ou a defender-se no julgamento. E não o teria feito por perceber a inutilidade disso,  ou por simples desprezo pelo tribunal, que Lúcio não foi Mersault.

Talvez não o tenha feito tampouco por julgar-se afinal inocente ou apenas parcialmente culpado. Fica a parecer que deixou-se inerte por assombro, por incompreensão ou por pura inocência material conjugada com culpa eficiente. Lúcio, acho-o eu, não percebeu o que se disse por palavras claríssimas que, todavia, não lhe soaram assim. E não cuida de rearmar um quebra-cabeças, ao depois.

Parecia embrigado pela fada verde, ele que também parecia muito lúcido nos seus escritos. Não convém confundir Lúcio com Mário, todavia; confusão bastante fácil de ocorrer se uma e outra circunstância da vida do escritor é conhecida. Mário é um escritor finíssimo, que mereceu de Fernando Pessoa o elogio com as palavras de Plauto: Morre jovem o que os Deuses amam.

2 Comments

  1. Olívia Gomes

    Que bom que gostasse do livro 🙂

  2. andrei barros correia

    Gostei muito, obrigado.

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