Em 1981, o tenente-coronel da guarda civil Tejero tentou um patético golpe de estado, na Espanha. Tejeros são assim, atrapalham os Armada, embora ambos sejam tipos infames. Hoje, trinta anos depois, ainda se tentam reconstituir os detalhes e encontrar melhor definição dos papéis no golpe.

O general Alfonso Armada foi preceptor do Príncipe João Carlos. Parece que exagerou a crença na influência que teria sobre o Rei João Carlos, o que o levou a tentar um golpe bem armado, aparentemente constitucional e com a benção real. No fim e ao cabo, o Rei mostrou-se um homem grandioso, adequado perfeitamente ao seu papel; está evidente que não há Espanha sem João Carlos.

O golpe planeado por Armada era de tipo clássico e tinha cores institucionais suaves, ainda que se baseasse nas inclinações e insatisfações de antigos e declarados falangistas. Essa gente não aceitava a democracia política e as autonomias regionais e ainda velava o corpo de Franco.

Esse tipo de manobra passa sempre pela exageração de um estado de crise. Ou seja, é preciso dizer e repetir que há tensões, que as tensões estão a ponto de gerar rupturas e que essas rupturas só podem evitar-se com um governo de concertação. É preciso dizer que as forças armadas enxergam essa tensão, preocupam-se com ela e dão fiança ao postulante a líder da concertação.

A partir desse estado de ânimo, uma figura militar de prestígio insinua-se como disponível para a árdua missão. Faz lembrar a todo tempo a proximidade do Rei e insinua – o mais discretamente possível – que tem decisiva influência sobre o monarca, quase a ponto de dar-lhe as ordens.

Como não era burro, Armada queria um golpe institucional, ou seja, queria criar o vácuo de poder parlamentar e apresentar-se ao  congresso para ser votado presidente de governo. Claro que o congresso faria a escolha sob pressão militar e da percepção exagerada de crise e claro que a manobra pressupunha que o Rei fosse meramente decorativo.

Mas, nesses movimentos, os elementos de baixo nível e mais ignorantes atrapalham o andar dos planos. Não compreendem as sutilezas. Tejero não compreendeu que era inviável uma volta pura e simples à ditadura e não percebeu que o Rei não podia prestar homenagens a um golpe contra a constituição. Não percebeu, enfim, que são possíveis golpes aparentemente dentro da constitucionalidade, embora esses não se façam com Tejeros.

Reuniu uns guradas civis, alguns militares, acreditou no empenho de um e outro comandante e partiu a invadir o parlamento e a dar tiros para o alto. Aí, o golpe já estava perdido para ele e, mais ainda para o General Armada. Para este último, a tejerada foi uma tragédia.

Imagino que ele, Armada, tenha estimulado discretamente o coronel Tejero, mas que não tenha imaginado que o golpista vulgar se precipitasse tão escandalosamente. Um erro de cálculo de quem não podia errar, porque o erro foi traição à monarquia e cobrou-lhe um preço.

Alfonso Armada teve ocasiões de falar do episódio, passados vários anos. O tempo, para pessoas sem honra, tem poucos efeitos, além de fortificar o sabor a infâmia do que dizem. Sustenta que na época dispunha-se a sacrificar-se e ainda insinua não compreender a posição do Rei, como se este fosse seu cúmplice e o tivesse traído.

O sacrificar-se foi que me chamou bastante a atenção. Quase todos os patifes que aspiram com toda a vontade a um posto de comando dizem que se oferecem a um sacrifício. Isso ocorre desde as chefias mais desprezíveis àquelas mais importantes. O aspirante não diz que quer, com toda a vontade, por orgulho vaidade ou crença na possibilidade colaborar, diz que se dispõe a um sacrifício, como se não quisesse.

A reforçar esse traço distintivo dos patifes, basta lembra-se que podiam simplesmente ficar calados, ou seja, querer sem dizer o porquê. Ou podiam dizer que aspiram à chefia porque se acreditam melhores preparados para exercê-la, mas não, o rompimento com a hipocrisia teatral não ocorre.

Nunca ocorre, realmente. O tipo de aspirante a que me refiro sempre é o inqualificável sujeito que se dispõe a um sacrifício, como se fosse extraído de um número diferente daquele dos demais homens, como se não estivesse no plano comparativo das habilidades maiores ou melhores.

E, nada obstante, sua fervorosa vontade, seu desejo irreprimível é simplesmente evidente para todos, como uma tara que o tarado pensa ser totalmente despercebida. É um traço estranho esse, porque revela uma vontade de disfarce tão grande que flerta com a ignorância.