Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

As classes médias e a discriminação de tudo quanto não for médio.

É preciso dizê-lo: a luta de classes existe. Essa assertiva não implica que ela deva existir, ou que ela possa deixar de existir. Tampouco implica que ela seja o único móvel das atuações de grupos sociais, nem que seja o ponto de articulação único de todo pensamento político. Ela existe independentemente de quanta axiologia se queira ver antes e depois dela.

Ela não se manifesta somente no desejo de manutenção ou aumento dos níveis de apropriação material.  Também desempenha o papel de matriz de comportamentos, privados e públicos, e do estabelecimento de um acervo argumentativo e interpretativo, até como elemento de identificação. As classes definem-se umas em relação com as outras, assim como as linhas de fronteiras pressupõem os países fronteiriços.

Seguindo nessa precária analogia – como, de resto, todas são – tomemos o caso de algum país que tenha fronteiras apenas com um outro. Este definir-se-á mais facilmente, na medida em que tem um só ponto de referência. Da mesma forma acontece com os extremos de alguma escala. Identificam-se por referência ao imediatamente próximo e como estão nas extremidades, têm apenas um ponto de referência.

O miolo, o centro, de alguma escala, este identifica-se por relação a dois pontos de referência, o que não é pequeno acréscimo de dificuldade no estabelecimento da identidade. Dizer que A é o não-B, embora não clarifique o conteúdo de A, é fórmula muito precisa de definí-lo com relação a B.

Todavia, dizer que B é o não-A e não-C, continua por padecer da falta de clareza quanto ao conteúdo de B, ao tempo em que aumenta em muito a imprecisão relativa, pois estamos com dois parâmetros de identificação por não pertencimento. Isso acontece com as classes médias de alguma sociedade. Elas precisam não ser as alta e baixa, enquanto estas últimas precisam apenas não ser a média.

Qualquer abordagem que assuma a definição de uma classe apenas a partir do critério de rendimentos econômicos será irremediavelmente defeituosa. Evidentemente, o critério econômico tem um grande peso, mas não é o único. O ser-se socialmente médio está muito além do possuir um acervo médio de bens e dinheiros.

O médio traz em si a vontade de deixar de sê-lo. Não pelo tornar-se baixo ou alto – a primeira indesejável e a segunda improvável – mas pelo tornar tudo médio. Aqui, parece que Aristóteles funciona ao contrário e o ato carrega a potência. O médio, sendo em ato, quer que tudo seja ele, quer dizer, é potencialmente nivelador por si. Age como se fora o divisor comum, quando na verdade o único divisor é o um, por razão óbvia, ou seja, porque não divide.

Não há divisor social comum. Aceitá-lo e procurar o que mais próximo exista é melhor que propagandear a falsificação da inexistência dos conflitos e da possibilidade de sua redução a um falso divisor comum. A busca, essa sim pode ser o que mais se aproxima do próprio resultado, na medida em que é empreendimento que pode congregar todos. A crença na existência prévia do resultado, essa é a empulhação que, implicitamente, supõe a inutilidade de buscar-se.

Desacreditando-se na necessidade de buscar o divisor possível, vive-se para conservar e propagandear. Acontece que para conservar é preciso usar muito veneno – porque a tendência é a corrupção – e para propagandear é preciso ter muito pouco respeito pelos outros, porque qualquer proselitismo é deselegante e impudico. Sendo a essência das classes médias o impulso pela conservação e sendo inviável buscar os fins sem assumir os meios, conclui-se que faz largo uso de veneno e de propaganda.

Verá ameaças onde elas não existem, o que é próprio de quem seria capaz de levar a cabo a mesma ação que teme. Aqui cabe uma consideração quanto às personalidades, mais ou menos extensível aos grupos. O patife tem de tão repugnante quanto a própria patifaria o fato de sua atitude mental basear-se na suposição de que todos são patifes. Quer dizer, intimamente o patife age forte na crença de que faz o que todos fazem. Sua existência é uma acusação.

A classe média acredita-se alvo constante dos intuitos destrutivos das outras, incapaz de perceber que os demais talvez estejam preocupados com outras coisas. Mas ela precisa acreditar-se o centro de tudo e disso deriva que seus padrões de atuação são basicamente religiosos. O termo deve ser entendido aqui como postura que se autoproclama inspirada por verdade certa e indiscutível e cuja imposição aos outros não é uma questão de liberdade, mas de obrigação.

Ela discrimina por obrigação. Como é hermética e impermeável, seus parâmetros de discriminação são invariáveis. Dá-se um quase jansenismo social e não há espaços para a graça. Se não há, objetivamente, fins outros que a conservação, verifica-se que tudo são meios e todos eles são lícitos porque a causa inicial é praticamente divina. Ela é que acende as fogueiras! Ora, o espetáculo do fogo é bonito e divertido, mas quase sempre foge ao controle. E deixa-se o trabalho de limpar o rescaldo para os outros, pois as fogueiras terminam por consumir os próprios foguistas.

Nelas, para ficar na história recente, vicejaram os fascismos. Não poderiam ter sido cultivados em outra terra, que não nasceriam. No tempo recente, esses foram os ápices da afirmação média e resultaram obviamente em ampla destruição, mobilização de vastos recursos materiais e humanos para detê-los e no insucesso, claro. Extravagante é sua constante força e vontade de ressurgimento, provando que o exemplo não ensina, ao contrário do lugar-comum dominante.

O exemplo só ensina a quem quer aprender. Em outros seres, ele não é exemplo, apenas repetição acrítica.

2 Comments

  1. Abobrinhas Psicodélicas

    Existe uma frase do velho Marx sobre as classes médias que é lapidar: “A pequena burguesia é a classe onde as contradições perdem as arestas”. E não é?

    Abraços.

  2. Andrei Barros Correia

    É. O médio é homogêneo e sem arestas. Assim afirma sua medianidade por todo lado.

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