Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Ativismo judiciário e mistificação.

Nomear alguma coisa já é condicionar as percepções e análises que haverá desta coisa ou, pelo menos, tentar estabelecer o condicionamento. Os próprios criadores de algo ou praticantes de certa conduta apressam-se a oferecer as balizas de compreensão de suas obras e ações, porque assim sempre se está mais seguro de oferecer tanto a coisa como sua roupagem discursiva.

Quem está fora da corporação atuante tende a deixar-se aprisionar pelos modelos interpretativos oferecidos pela própria corporação, o que leva ao desejado hermetismo e à discussão em círculos. Então, fica-se pelo contra ou a favor, sem que estas posturas consigam estabelecer precisamente sobre que incidem.

Ativismo judiciário é o nome de batismo do exercício ilegítimo de poderes estatais pelo judiciário, em nítida exorbitância do que o sistema prevê. Seus praticantes batizaram-no eufemisticamente, de maneira a pautar todas as análises do fenômeno político em questão. Trata-se, em resumo, de desequilíbrio no balanço dos poderes estabelecidos pela constituição de 1988 e, mais grave, de violação ao princípio de legalidade, que deveria ser a coluna central do estado democrático de direito.

Por outro lado, o nome revela uma contradição em termos, mesmo que isso não incomode os ativistas em questão. Contradição porque o sistema prevê a inércia da jurisdição e, ademais, sua imparcialidade. Daí, é inconcebível, em termos que não violem a lógica mais elementar, que a jurisdição seja ativa no sentido de possuir iniciativa, porque isso viola as duas premissas antes mencionadas: a inércia e a imparcialidade.

A evidente incoerência apontada no parágrafo anterior é contornada pelo mais sutil e perverso argumento de que se trata de interpretar para extrair da lei seu máximo conteúdo. Imagino que pouca gente honesta consigo própria em termos intelectuais se aventure na crença de que a lei tem conteúdos mínimos, médios e máximos, porque o conteúdo da vontade legislativa não é mensurado quantitativamente.

Lastimavelmente, entre as várias tolices que se ensinam nas escolas de direito – protótipos de escolas beneditinas e jesuítas – o postulado de que o juiz interpreta mesmo na clareza é dos mais repetidos e aceitos sem críticas. Mas, como é amplamente sabido, as coisas mais absurdas são as mais fáceis de granjearem simpatias.

Ora, na ausência de dúvida quanto à existência de lei aplicável e quanto à lei específica aplicável, nada há para ser interpretado, sim para a aplicação. Não é objeção viável o dizer que a interpretação estará na base da escolha ou descoberta da norma específica, porque isso dependerá do estabelecimento dos fatos, não de interpretação.

Provado o que ocorreu, encontra-se a norma cabível ou percebe-se a ausência de norma que discipline a situação. Nesta última hipótese, haverá, sim, espaço para interpretação judicial que atraia para o caso a norma mais semelhante possível àquela que se adequaria perfeitamente. Esta ação seria melhor chamada aproximação por semelhança que interpretação, mas sempre preferimos o nome mais propício à ambiguidade.

A lei destina-se a ter vigência e a ser aplicável eficazmente a todos os casos que se insiram nos seus moldes genéricos e abstratos. Por outro lado, o sistema legal brasileiro prevê as hipóteses de suspensão da vigência da lei e da eficácia. Sempre que a norma for contrária à constituição, é lícito o juiz não na aplicar, desde que diga expressamente onde está o conflito e declare a lei inconstitucional.

A suspensão da aplicação de uma lei dá-se em casos específicos, quando a norma inconstitucional é afastada para que se afaste assim a violação de norma superior. Nestes casos, a lei permanece válida abstratamente e segue a incidir em outros casos que não ensejaram a crítica judicial de inconstitucionalidade. Diferentemente ocorre quando a própria lei ou parte dela é atacada abstratamente, sem que isso ocorra em caso concreto, ou seja, em um litígio entre partes.

O supremo tribunal federal pode julgar a validade em si de ato normativo frente aos paradigmas constitucionais e concluir pela sua nulidade e consequente extirpação do sistema jurídico positivo. Nestes casos, a norma perderá completamente vigência e eficácia, o que se assemelha à revogação, embora não seja idêntico.

Negar vigência, pura e simplesmente, a qualquer ato normativo, sem lhe declarar a inconstitucionalidade, isso o juiz brasileiro não pode fazer legitimamente. Não obstante, é o que se tem visto cotidianamente.

Não é apenas no supremo tribunal federal que o voluntarismo judiciário – travestido nessa confusão conceitual que se chama ativismo judiciário – inspira muitas decisões aberrantes e, a rigor, nulas. Em todas as instâncias judiciais generaliza-se o voluntarismo judiciário e se veem decisões a negarem vigência à lei a partir de argumentos pueris e de voltas à lógica.

Raramente alguma decisão traz a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei aplicável, somente o afastamento da incidência legal a partir de generalidades ou disfarçada em crítica judicial da validade de algum ato administrativo, o que é o desculpa mais comum para a negativa de vigência da lei a partir da simples vontade pessoal do juiz.

A disfuncionalidade é enorme, porque se trata de exorbitância de função e desvio de poder, em confronto com as competências do poder executivo e principalmente com as do poder legislativo.

O voluntarismo judiciário provindo do supremo tribunal federal é o mais grave porque foi apropriado e patrocinado pelo discurso superficial e oportunisticamente moralizante da maior parte da imprensa. Aqui, o voluntarismo que não aplica leis senão vontades pessoais está de mãos dadas com a teoria do estado de exceção.

A bem de promover uma moralização – como se a finalidade do Estado de Direito fosse a moralidade e não a legalidade – o mais elevado tribunal do país viola as leis e a constituição, que ele deveria proteger. É ocioso dizer que a cruzada moralizadora é de fancaria e não passa de perseguição política seletiva, porque seria demasiado estúpido, até para nossos padrões, achar que a moral é qualquer coisa mais que vontade de mandar nos outros.

Busca-se retirar da discussão o único âmbito que está a cargo do judicial, que é a legalidade. Assim procedendo-se, as coisas deslocam-se, tanto da política, quanto do jurídico, para o nebuloso campo dos códigos pessoais e grupais de condutas, de resto amplamente cambiantes e precariamente estabelecidos. A marcha da patifaria disfarçada conseguiu até inserir na constituição um nada jurídico que chamou de princípio da moralidade administrativa.

É aberrante postular-se que a administração pública obedeça à vacuidade conceitual que atende pelo nome de moralidade. A administração, como todos os cidadãos, atende, sim, à legalidade, que é o resultado da vontade popular manifestada pelos representantes eleitos legitimamente. Na lei, feita por quem a deve fazer, já estão todos os antecedentes axiológicos que levaram ao estabelecimento de prescrições gerais e abstratas.

Há pouco, o voluntarismo judiciário do supremo tribunal federal chegou aos píncaros. Na ação penal 470 foram condenados sem provas trinta e tantas pessoas e, entre elas, três deputados federais. Inúmeras garantias constitucionais foram violadas frontalmente neste julgamento de exceção, pautado pelo furor de linchamento da imprensa.

O princípio de que cabe à acusação provar a culpabilidade dos réus foi para os confins do sistema jurídico. O de que a ausência de provas e a presença de dúvidas ensejam a absolvição dos réus, idem. O do juiz natural e do duplo grau de jurisdição evaporou-se. Nesta encenação de julgamento, o supremo tribunal federal cruzou o Rubicão.

Porém, depois de passado o rio inviolável, o pior vem: o saque da cidade em que não estacionavam Legiões. Primeiramente, o tribunal que estabeleceu sólida jurisprudência contra a prisão antes da sentença definitiva ensaiou o autoritarismo de prender os réus antes do trânsito em julgado. Apenas impediu essa aberração de consumar-se a falta de habilidade do acusador geral, que tentou manobra infame até para quem à infâmia acostumado.

Depois, a pior violação ao sistema inaugurado e aparentemente regido pela constituição de 1988: a pretensão do supremo tribunal federal de cassar mandatos parlamentares de réus condenados. Aqui, servem-se da confusão de duas situações distintas.

No Brasil, há um anacronismo que é a justiça eleitoral. Ela julga a existência de partidos políticos, recebe pedidos de candidaturas, procede aos registros, analisa-as, julga-as, conta os votos, concede diplomas aos eleitos, nega diplomação aos que descumprem requisitos. Pode ocorrer que algum agente político eleito venha a perder o mandato popular porque a justiça reputou ausentes os requisitos para a elegibilidade e o julgamento final deu-se após a posse.

A perda do mandato, nestes casos, não decorre de cassação, mas de constatação de irregularidade prévia da situação do eleito e empossado. Aqui, quer-se dizer que o eleito não poderia nem mesmo ter disputado votos legitimamente. Trata-se de incapacidade política por fatos anteriores à eleição, constatados definitivamente pela justiça eleitoral após a consumação da eleição e da posse.

O direito brasileiro não conhece a cassação judicial de mandato eletivo de quem foi eleito legitimamente. Quem cassa um parlamentar é a casa legislativa a que ele vincula-se, somente. Trata-se de previsão constitucional expressa e sem ambiguidades, que se encontra no artigo 55.

Se um deputado federal ou senador da república é condenado criminalmente cabe à casa legislativa respectiva abrir processo de cassação de mandato por falta de decorro parlamentar, porque o mandato conferido pelo povo só pode ser retirado por seus representantes.

2 Comments

  1. Sidarta

    Muito bom artigo.

    Estou indicando o site a pessoa intrtessadas.

    • Andrei Barros Correia

      Sidarta,

      O golpe judiciário está ocorrendo, mesmo que o neguem.

      Agradeço que divulgues.

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