Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Comidas

Bacalhau meio à Brás.

Há muitas formas de dividir o mundo segundo gostos e preferências, todas elas igualmente tolas. Eu divido o mundo entre quem prefere salsa e coentro; nunca encontrei critério melhor.

Eis que resolvo fazer um bacalhau à Brás, ou quase isso. É um prato simples, do ponto de vista de quem lê receita e come o acepipe, a olhar, inevitavelmente, para a mistura que é.  De fato, é simples, mas requer cuidados com tempos de cocção.

Comummente, faz-se um refogado de cebolas cortadas às meias-luas e alhos picados, para depois deitar o bacalhau em lascas. Decidi mudar um bocadinho. Pus o bacalhau demolhado para cozer em água quente, mas não fervente. Trata-se de encher uma panela grande de água, com um pouco de sal, pimenta moída e uma folha de louro e aquecer até perto da fervura.

Perto de ferver, desliga-se o fogo e põe-se o bacalhau para cozer na água quente por alguns minutos. Cinco bastam e deixa-se lá até a água esfriar.

Entretanto, cortei duas cebolas pequenas em meias-luas bem fininhas, cinco dentes de alho piquei, um molho pequenino de cebolinhas fatiei e um pedacinho de cenoura ralei. A cenoura não é parte do que me habituei a comer em Portugal, mas achei que saberia bem.

O bacalhau deve ser retirado da água e partido em lascas ou mesmo desfiado e reservado. Nesta altura, batem-se com um garfo três ovos e um pouquinho de leite. Um pouquinho, para preciosistas, deve ser à volta de 100 ml.

Tudo pronto, vai-se ao refogado. Pouco azeite e cebolas, alhos, cebolinhas e cenoura ralada na caçarola grande e tapada. Espera-se dourar um pouco e mete-se o bacalhau, mexendo sempre e sempre. Passados um ou dois minutos, despeja-se um bocado de batatas palha, dessas que só se conseguem em supermercados, industrializadas.

Um minuto ou menos e põem-se os ovos e leite batidos e mexe-se sem parar. A hora de parar é antes de cozerem os ovos, ou seja, na hora em que o bacalhau está ligado e húmido.

Esta iguaria foi acompanhada de um rosé muito fresco e o resultado foi esplêndido.

Porco estufado com gengibre e manga rosa.

Ainda surpreendo-me com o tamanho dos porcos criados para abate industrial. Já falei disto antes e não se trata de ter visto os suínos destinados a serem cortes nobres nas prateleiras de mercados. Trata-se de imaginar de onde pode ter vindo um pedaço de lombo de tão largo calibre, porque são quase da mesma largura do lombo de boi.

Pois bem, comprei um belo pedaço de lombo suíno, de oitocentos gramas, com capinha de gordura num dos lados. Um pedaço maciço e sólido da carne de mamífero mais saborosa que há, depois da humana, é claro, a crer-se nas crônicas da conquista castelhana do México. Os astecas levaram consigo esse refinamento estético do consumo de carne humana…

Inicialmente, pensei em mais uma reprodução da maravilha que é o porco de caril – mesmo que sem leite de côco – mas mudei de idéia, embora tenha ficado por sabores ainda indianos ou quase. Resolvi que os protagonistas seriam, além do porco cortado em cubos, o gengibre e a deliciosa manga rosa.

Esse prato é basicamente um exercício de cortar carnes, legumes, verduras, raízes, frutas, dosar bem o pouco de sal e mexer o que vai na caçarola.

Pus a caçarola ao lado da tábua de cortar e comecei. Primeiro, um molho de cebolinhas, fatiadas bem fininhas. A seguir, um pedaço de gengibre de cinco centímetros por dois, cortado em pedacinhos os menores possíveis. À medida que se cortam, vão-se deitando na panela, o que ajuda a manter a tábua vazia e com espaço para o ingrediente seguinte.

Meia cebola, um tomate e meio, meio molho de coentros, tudo bem picado. Alguns pedaços de brócolis e vagens, previamente cozidos na água e sal. Um terço de uma cenoura ralada. Com tudo isso na panela, põe-se azeite por cima e não me perguntem a quantidade, porque vai de vista o necessário. O sumo de meio limão siciliano, um pouco de cúrcuma – o açafrão da terra ou de pobre, como também se o chama – e um pouco de páprica doce.

Os cubos de carne de porco fervem por meio minuto, em pouca água e pouco sal. Está na hora de acender o fogo, no mais baixo possível e com a panela tapada.

Com pouco, o cheiro do refogado com muito gengibre e mais outras coisas saborosas como as cebolinhas enche a cozinha. É hora de cortar em pedaços pequenos a manga rosa, maravilha de sabor e com poucas fibras, ao contrário da manga espada. Basta descascar a manga e cortar os dois grandes pedaços laterais ao caroço. O restante, come-se enquanto o preparo segue.

Os pedaços de manga entrarão junto com os cubos de porco, porque uns não suportam muito fogo e outros já estão meio cozidos. A manga se desfará totalmente e deixará somente aquele doce espetacular que contrastará com o gengibre, sem se agredirem mutuamente. Ao final de tudo, pouco antes de apagar o fogo, entram os brotos de soja já cozidos.

Entretanto, numa panela pequena, pus um pouquinho de gengibre picado e dois dentes de alho também picados bem pequeninos. Um pouco de azeite e uma xícara de arroz basmati. Tivesse eu talento e vontade, escreveria ode ao arroz basmati, ao seu cheiro e ao seu sabor, e bania as demais variedades… Enquanto duas xícaras de água esperam levantar fervura, o arroz com gengibre e alho é refogado em pouco azeita, mexendo-se sem parar.

Tão logo a água ferve, despeja-se na panela do arroz e espera-se que cozinhe até estar quase toda a água evaporada.

Evidentemente que sou suspeito e que um cavalheiro nem mostra suas mazelas, nem seus êxitos, mas estava de apetecer aos deuses. Acompanhou-se tudo com um chardonnay bem frio.

Shop Suey de camarões e anéis de lula. Um só prato, porque Giscard não é convidado.

Em 1976, o governo chinês ofereceu um banquete a Valéry Giscard D´Estaing. Fala-se que foram servidos 65 pratos, desde as entradas até às sobremesas. Não foi à toa que toda a sofisticação da alta culinária chinesa foi exposta nesta ocasião e não nas recepções a gente mais importante, como Nixon ou Kissinger. Estes últimos não perceberiam e a coisa perderia simbolismo.

Giscard tinha reabilitado o protocolo real Bourbon, no Eliseu, e portava-se como se fosse um deles e não apenas um filho de banqueiro que estudou na Politécnica e na ENA e que serviu ativamente na segunda grande guerra. Pedantíssimo, mas quase nobre, a verdade deve ser dita. Ele impressionou-se com aquela demonstração a evidenciar que a cozinha chinesa elevada era mais sofisticada que a francesa e que a etiqueta à mesa era mais sutil.

Para os comuns dos mortais, nós, enfim, é impossível saber o que é um grande e sofisticado banquete chinês. Imagino que seja fascinante, que seja demorado, que seja necessário beber goles d´água a todo momento, que seja necessária imensa memória para reter tantos sabores, que seja necessário ser muito parvo para não perceber que o anfitrião ri-se do convidado como um conselheiro do reino fazia dum rendeiro seu que vinha dar contas ao almoço.

Embora a alta culinária chinesa não seja conhecida, fato é que a cozinha plebéia cantonesa espalhou-se pelo mundo e é extraordinariamente homogênea nos milhares de restaurantes. Seria tolo achar que vendem em Roma ou no Porto o mesmo que em Guangzou. Mas, seria ainda mais tolo ainda dizer que não é chinesa essa comida oferecida em toda parte. E é deliciosa.

Com um wok, óleo, legumes, molho de soja fermentada e qualquer carne, ou sem carnes, faz-se aquilo que não dá errado: um prato que começa com fritura e envolve sabores pronunciados. Pois bem, resolvi enveredar pela cozinha comum chinesa, de posse de um wok, é claro.

Cortei uma cebola pequena em pedaços à toa, uns finos, outros quadrados. Piquei escrupulosamente um pedaço meio grande de gengibre. Deixei logo a cebola e o gengibre no wok com azeite e um pouquinho de molho de soja. Em seguida, cortei meia cenoura pequena em finas tiras de uns três centímetros, cortei uns poucos de brócolis e de couve flor.

Pus 400g de anéis de lulas e 400g de camarões médios para cozerem na água com pouco sal. Depois de levantar fervura, passam apenas um minuto e apaga-se o fogo e retiram-se da água quente. Tanto os camarões quanto as lulas são saborosíssimos com pouco tempero e pouca cocção.

Entretanto, põe-se para cozinhar macarrão de arroz. Apenas seis minutos depois de levantar fervura bastam. Reserva-se o macarrão escorrido.

É hora de acender o fogo embaixo do wok. Rapidamente, as cebolas, gengibre picado, cenoura fatiada e molho de soja começam a frigir e devem ser constantemente salteados com uma colher plana de bambu. A seguir, entram os camarões e anéis de lula e, pouco depois, os pedaços de brocoli e couve flor. Mexe-se o tempo todo, meio sem método, nesta panela que tem a mesma inteligência da grande frigideira de fazer paella.

Algum tempo depois, deita-se o macarrão, que deve ser bem misturado para impregnar-se do molho de soja. Come-se logo. Acompanhou um tinto forte argentino, Malbec. Mas, dá para comer com um branco forte, também, porque o sabor do gengibre é dominante, junto à peculiar doçura da lula.

Perna de carneiro assada, com tabule e homus.

Comadre e compadre vieram almoçar. Não costumo cozinhar para mais que os moradores da casa, mas os convidados são estimados e bem-vindos e, além de tudo, gentis: caso resulte mal, abstêm-se de me dizer. A princípio, parece-me que ficou bom, até porque quase nada sobrou.

Pensei em algo fácil e ao mesmo tempo pouco comum. Pensei numa refeição libanesa, ou quase.Passei num bom açougue e comprei uma perna de carneiro pequena. Pedi para desossar e cortar em pedaços como se fossem para assar na brasa, ou seja, como se fossem para churrasco. Era bastante carne, mais que dois quilos. Então, separei quatro pedaços mais ou menos rectangulares, a perfazerem um quilo, mais ou menos, e congelei o restante.

Numa assadeira de metal, deitei um copo de vinho branco seco, sal, pimenta preta moída, meia cebola picada, alecrim, um pouco de cominho e um pouco de pimenta calabresa em flocos. Os pedaços de carneiro, previamente limpos do excesso de gordura, repousaram nesta marinada por cinco horas. Convém retirar boa parte da gordura das peças de carneiro, porque ela fica rançosa, ao contrário da gordura do porco, que é apenas bom sabor.

Os pedaços de carneiro foram ao forno em lume baixo, o mais baixo possível, por mais de uma hora. Assim, eles ficam tenros e ainda resta o suco da marinada misturado aos sucos da carne.

Para o tabule, trigo daquele usado para fazer quibes. Não tenho a mínima idéia de que parte do grão de trigo é esta, mas é certo que é delicadamente saboroso. Basta deitar à volta de 200 g do trigo, em uma travessa grande e meio funda e pôr água que dê para o cobrir. Ele deve hidratar-se por duas horas. Se, ao final, ainda estiver muito molhado, retira-se o excesso de água espremendo uns bocados com as mãos. Não precisei fazer isso, porque coloquei pouca água.

Em seguida, piquei meia cebola em pedacinhos mesmo pequenos. Cortei um molho de cebolinhas, piquei um punhado de coentros e cortei oito tomates cereja em quatro partes, cada tomatinho. Tudo isso, junto a folhas de hortelã, repousa por meia hora num prato fundo, juntamente com o sumo de um limão siciliano e uns 100 ml de azeite.

Entretanto, faz-se o homus. Fazer é força do hábito linguístico, porque homus, em árabe, significa grão-de-bico, apenas. O que chamamos homus é uma pasta de grão-de-bico e algo mais. Resolvi misturar os grãos e um pouco da água da sua cozedura, com gergelim, um pouquito de sal, pimenta preta moída e azeite. A maior parte das receitas fala em misturar os grãos e tahine, que é uma pasta de gergelim.

O homus depende apenas das quantidades. Para 200 g de grãos e um pouco de água, bastam duas colheres de sopa de gergelim, uma colher de sopa de azeite e poucos sal e pimenta. Resulta delicioso, depois de misturado no robot – os mais anglófilos chamem-no de mixer. Nestas proporções, fica cremoso sem deixar de ser uma pasta.

É hora de finalizar o tabule. As cebolas, cebolinhas, tomates, coentros e hortelãs banhadas em sumo de limão siciliano e azeite são simplesmente misturadas, com as mãos, ao trigo para quibe já hidratado. Simplesmente misturadas com ambas as mãos que, a depender do gosto do cozinhador por comidas, serão depois lambidas e depois lavadas. Ajusta-se o sal, porque tinha decidido hidratar o trigo sem qualquer sal.

Neste passo, convém olhar o andar do carneiro. Para mim, estava no ponto ideal, porque metade do suco da marinada tinha-se evaporado e a carne estava mesmo tenra.

Esse repasto a evocar o mediterrâneo oriental foi acompanhado de tinto chileno vivo, forte e jovem. Ainda fiquei na dúvida e cogitei de algum branco forte, porque tabule e homus os convidam. Mas, havia o carneiro…

Picanha na grelha, no forno, com alhos laminados e pouco sal.

A melhor forma de preparar picanha é também a mais simples, desde que haja espaço aberto, é claro. Realmente, fazer um churrasco dentro do apartamento é meio complicado, por causa da fumaça.

Prepará-la na panela, como carne estufada, é próximo ao desperdício herético, porque nem adquire tanto os sabores dos temperos, nem destaca o sabor conferido pela famosa capa de gordura. Fritá-la às postas é uma alternativa saborosa, mas tem o inconveniente do fortíssimo cheiro que impregnará tudo, além das gotículas de gordura que se espalharão por toda parte.

Resta, como boa alternativa, o forno, mas convém ter alguns cuidados para não ressecar a peça. Pode parecer excessivo falar em cuidados e pensar que bastaria assá-la por pouco tempo, mas não é tão simples. Uma picanha mal passada no churrasco sobre brasas é diferente de mal passada no forno. Outro probleminha do forno é o contato da parte de baixo da peça, aquela na face contrária à capa de gordura, com o fundo da assadeira.

Resolvi, então, por uma grelha de assar peixes em cima da assadeira, evitando assim o contado da picanha com a chapa de metal. Fatiei a peça em postas de mais ou menos dois centímetros de largura, sem chegar a separá-las totalmente. O corte, é meio óbvio mas convém dizê-lo, faz-se da face da gordura para baixo.

Entre as postas fatiadas, que ficam bem próximas, pus finas lâminas de alho, um pouquito de sal e azeite. Usei o forno na temperatura mais baixa possível e deixei a picanha lá por quarenta minutos, o que foi suficiente para uma carne tenra, ainda molhada dos maravilhosos sucos da cozedura lenta da carne e do derretimento da gordura.

Para acompanhar, farofa de cebola e bacon, feijão verde e uma vinagrete preparada com algum rigor. A farofa é simples, mas convém usar farinha de mandioca bem fininha e, se possível, da amarela. Piquei meia cebola e um pedacinho de bacon. Deitei na frigideira um pouco de manteiga – sim, farofa é das poucas coisas que sempre ficam melhores com manteiga – e refoguei a cebola e o bacon, mexendo sempre.

Uma coisa fortuita contribuiu para essa farofa: havia fritado, na mesma frigideira, duas fatias bem finas da picanha, como experiência antes de me decidir pelo forno. Assim, a frigideira tinha um pouco de sangue e de gordura da picanha, o que acresceu sabor, evidentemente. Na sequência, põe-se a farinha e mexe-se até misturar bem tudo.

A vinagrete levou dois tomates pequenos e bem maduros, um molho de cebolinhas, meio pimentão verde, um pouco de coentros e um pouco menos que meia cebola grande. Não há problemas em fazer muito, como sugere a quantidade de ingredientes, porque não se estraga rapidamente e pode ser usada a semana toda.

Numa tigela de vidro, deitei aproximadamente 200 ml de vinagre de vinho branco e, em seguida, os pedacinhos dos ingredientes mencionados. Após, o sumo de meio limão siciliano grande, o que não é arriscado porque ele não é muito ácido. Um pouco de sal e um pouco de pimenta preta moída. E, por fim, uns 100 ml de azeite. Convém fazer a vinagrete cedo, pois os sabores apuram.

Como está quente, cerveja!

Caril de porco sem leite de coco.

Na colonização do Brasil houve menos marranos que se acredita. O número de cristãos-novos foi menor do que querem historiadores superficiais, judeus conversos recentes e palradores em geral. Foram muitos, é claro, mas não a totalidade. A leitura de Evaldo Cabral de Melo é bastante recomendada quanto a este assunto e, especialmente, O nome e o sangue.

Muito embora não tenhamos surgido exclusivamente de colonização de marranos a se misturarem aos índios e aos africanos, ficamos com hábitos que permitem ver traços longevos de nova cristandade. Por estas terras, come-se pouco porco. Isso, mesmo sendo o porco muito mais barato que o boi e mais saboroso, é claro.

Ao contrário do que sucede no Brasil, come-se bastante porco em Moçambique, assim como na Índia e na Europa em geral. Estas poucas palavras vêm à propósito do caril de porco, de origens indianas, que achegou-se a Portugal por Goa e que consagrou-se, na região lusófona, em Moçambique. Evidentemente que Moçambique teve muitos indianos em seu território e isso deve ter seu peso na tradição gastronômica.

O caril, tanto de Goa, quanto de Moçambique, tem duas coisas marcantes: é muito picante e leva leite de coco. A princípio, nada que se afaste da culinária baiana, mas pouco que se aproxime da culinária do dia-a-dia brasileiro. Realmente, temos alguma parcimônia na mistura de leite de coco com muito picante, porque fica de digestão complicada.

Resolvi, entretanto, fazer um caril de porco sem leite de coco. A saída era abusar do tomate, porque no refogado ele libera bastante suco e engrossa o caldo. Outra necessidade, na ausência do leite de coco, era bastante cebola, e assim foi feito.

Com um dia de antecedência, cortei a peça de porco em pequenos rojões e os coloquei a marinar em vinho tinto, alhos, sal e muita pimenta preta moída. No dia seguinte, retirei os rojõezinhos marinados e os lavei em água corrente.

Cortei uma cebola e meia em pedacinhos mesmo pequenos. Cortei também quatro tomates médios em pedaços pequenos. Enfim, cortei duas pimentas-de-cheiro em pedacinhos miúdos. Tudo isso foi ao fogo baixo, para refogar, de panela fechada, evidentemente. Passados bons quinze minutos, com duas ou três mexidas, deitei os rojões de porco e aumentei o fogo.

Mais quinze minutos, era tempo de deitar uma colher de sopa cheia do pó de caril e um pouco de sal. Feito isto e mexido o que estava na panela, subiu o cheiro delicioso do caril em contacto com o azeite quente e as cebolas.

Daí em diante, era questão de mexer, para os tomates e as cebolas se desfazerem e a carne impregnar-se do caril. Entretanto, cuidava-se d0 arroz basmati. Essa variedade indiana, de grão fino e longo, é muito aromática. Cortei em pedacinhos um dente de alho, deitei duas colheres de azeite numa panela pequena, uma chávena de arroz e fogo!

Mistura-se sem parar, enquanto duas chávenas de água aguardam fervura noutra panela. O tempo de ferver esta pouca água é o de dourar o arroz basmati com os alhos. Eles cozinham mais ou menos vinte minutos depois que a água fervente é posta na panela do refogado do arroz.

Para mim, resultou esplêndido. O porco marinado conservou muito picante, mesmo depois de lavado e isso agradou-me, pois não usei qualquer pimenta, exceto a de cheiro, que é só aromática. Mesmo com temperaturas não muito baixas, foi comido com um tinto alentejano bem razoável.

Espaguete com tomates, manjericão e brie.

Sou carnívoro. Mas, a necessidade de variar o paladar, o clima e o fato de que há muitas outras coisas boas além de carnes, levaram-me a pensar uma massa para este quente e seco domingo. E devia ser massa leve, sem carnes no molho.

Os tomates e as folhas de manjericão casam-se tão bem quanto os jovens apaixonados do século XIX, da mesma classe social. O azeite reduz atritos deste matrimônio e a pimenta moída não consegue devolver todo o atrito reduzido pelo azeite. Então, todos estarão presentes.

Era necessário um queijo, para isto tudo ficar um pouco menos vegetariano e ter o sabor que as proteínas animais têm consigo. O óbvio era mussarela de búfala, fresca e ainda muito gordurosa. Todavia, optei por um brie, porque duas vantagens teria: um sabor tantinho mais pronunciado e porque derrete-se mais facilmente e torna as coisas mais untuosas.

Enfim, tomei uma caçarola grande, de fundo grosso de aço, enchi-a quase até às bordas de água, e fogo até levantar fervura. O espaguete seria cozido primeiramente, porque o molho era coisa simplíssima e ainda por outra razão que explico a seguir. Espaguete, convém que seja de bom trigo e, nisso, tudo está resolvido com qualquer desses italianos, mesmo de grandes marcas e comuns, como Barilla.

Sete minutos de cocção a partir da fervura, com punhado de sal e fios de azeite, e o espaguete estava pronto, no ponto certo, meio durinho e solto. Escorre-se o espaguete e deixa-se reservado. Relutei em confessar pequena heresia, mas, afinal, confesso-a: cortei o espaguete a faca, tornando os feixes a metade do seu original. Isso facilitaria a parte final.

Na mesma grande caçarola que cozeu o espaguete – agora vazia e seca da água – pus nove colheres de sopa de azeite e duas de vinagre balsâmico. Não falei acima do vinagre balsâmico porque a idéia ocorreu-me no momento em que deitava o azeite. A narrativa segue a cronologia do preparo, na media do possível e no limite das contradições… Temi pelo acréscimo desse pouco de vinagre, mas ao final resultou bem.

Deixei na caçarola o azeite, o vinagre balsâmico, pimenta moída, um pouquito de sal, e quatro dentes de alho fatiados em pequenas lâminas. Isso ficou na caçarola uns vinte ou trinta minutos, enquanto cortava os tomates e retirava as folhas do raminho de manjericão.

Acendi o fogo no mais elevado e não deixei de mexer um momento. Estava em jogo reduzir um pouco o azeite misturado ao vinagre balsâmico e deixar o alho soltar sua natureza álhea, o que faz melhor quando toma calor no azeite esquentando com ele e não chegando a fritar. São coisas bem diversas por alho no azeite quentíssimo e esquentar alho e azeite ao mesmo tempo.

Isso de azeite, vinagre balsâmico, alho e pimenta moída foi mexido por dois minutos, no máximo, e a seguir deitei os tomates. Devo dizer que não cortei os tomates em cubinhos muito pequeninos, como é de meu hábito. Cortei-os em pedaços rectangulares, de mais ou menos três centímetros por meio centímetro. Não queria ser perguntado por que este formato, apenas sei que os queria maiores que os cubinhos.

Nessa altura em que entram os tomates, não se deve parar de mexer, de saltear, nem um minuto. Nem se deve tampar a caçarola. Pouco depois que os tomates começam a deitar sua água, põem-se as folhas de manjericão, sempre revirando tudo. Passados, uns cinco minutos disso de mexer tomates que se vão escurecendo pela influência do pouco de vinagre balsâmico, deitam-se os pedaços de queijo brie.

Pouquinho tempo, coisa de dez, vinte segundos após a queda dos cubos de brie nesta mistura quentíssima, deita-se o espaguete que, como disse não sem alguma vergonha, havia sido partido ao meio. Agora é saltear, com colher de pau grande. Saltear é fazer saltar e misturar-se e não deixar pegar ao fundo e às bordas da caçarola quente, é mais que mexer.

É claro que se tivesse uma frigideira grande o suficiente teria salteado nela. E digo isso para não escandalizar nem induzir a suposição de ignorância muito grande que pode insinuar-se no improvável leitor que cozinhe. Saltear numa caçarola não é tanto impossível quanto difícil…

Dois minutos depois, põe-se nos pratos e come-se. Mesmo com temperatura muito alta, um tinto com pouca madeira e bem fresco é melhor que cerveja para acompanhar esta massa. Qualquer chileno de uvas Carmenère que não tenha feito estágio em carvalhos franceses e norte-americanos por mais de seis meses acompanha bem. Esses têm mais vivacidade e frutas que madeira e fumo.

Arroz de pato.

Este prato tão minhoto é das coisas que me despertam imensas saudades bracarenses. Acho delicioso o arroz de pato que se come frequentemente em Braga, sendo os melhores nos restaurantes e cafés mais simples, principalmente quando é um dos pratos do dia. A carne do pato é saborosa e seu único problema é ser meio dura, o que demanda muita cocção.

Comentei, na semana passada, com uma colega de trabalho com quem converso bastante sobre culinária e que é muito gentil, sobre minha dificuldade de encontrar pato nesta cidade e disse-lhe que visitas a todos os mercados médios e grandes tinham resultado no encontro de nenhum pato! Ela deve ter ficado com isso na cabeça, pois trouxe-me ontem um pato inteiro!

Aconteceu desta senhora minha colega de trabalho viajar até uma pequena cidade distante, no sertão, para comparecer àlgumas audiências de julgamento. Na ocasião, ela perguntou a um e outro se era possível comprar um pato por lá. Disseram-lhe que havia uma senhora fulana, na zona rural, que criava patos. Pois ela dispôs-se a ir até ao sítio desta senhora e comprar o pato, que foi lá morto, e trazê-lo para cá. Além disso, tratou de depenar o pato em casa e mo entregou morto, depenado e sem a maioria das tripas.

Que preciso agradecer tamanha gentileza é óbvio, menos óbvio é como o farei, mas isso é outra estória.

Tomei o pato, ontem à noite, cortei-o em alguns pedaços, retirei-lhe parte da pele, deitei sal, noz moscada moída, sumo de um limão e um pouquito de vinagre branco e mandei-o à geladeira, descansar.

Busquei receitas de arroz de pato e uma delas interessou-me. Basicamente, segui esta tal receita com uma modificação. A receita sugeria refogar em panela de pressão os pedaços do pato, com alho picado e cebola e, depois de dourado, deitar na panela dois litros de água já a ferver e cozinhar por vinte e cinco minutos. Apenas deixei de fazer o refogado e de dourar os pedaços do pato na panela de pressão.

Como os pedaços da ave estavam marinando desde ontem, coloquei-os na panela de pressão diretamente para cocção, com água e meia cebola inteira, sem previamente refogar e dourá-lo no azeite. Mesmo que panela de pressão não me agrade muito, no caso do pato é recomendável para amolecer a carne.

Deixei lá por quarenta minutos e desliguei o fogo. Retirei os pedaços de pato e os desfiei com uma faca, pois estavam já bastante moles e separavam-se facilmente dos ossos. Entretanto, pus três xícaras de arroz integral, um pouco de bacon cortado em quadrados e um pouco de linguiça fumada cortada em quadrados numa caçarola grande e deitei lá a água da cocção do pato, ainda bastante quente. Isso tudo ficou no fogo baixo, a ferver, por quinze minutos.

Então, pus na panela o pato desfiado, para cozer nos últimos cinco minutos juntamente com o arroz, que já se impregnara na água do pato.

O resultado foi divino e matou pequena porção das minhas saudades culinárias minhotas!