Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Desimportâncias (Page 2 of 13)

A hesitação da Veja e da Globo deixou a classe média sem opinião por uma semana.

Tem havido manifestações em grandes cidades brasileiras, que inicialmente voltavam-se contra os aumentos das passagens de ônibus urbanos. É fora de dúvidas que são preços altos e pesam significativamente nos orçamentos dos usuários. Essas manifestações tomaram dimensões muito grandes e persistem com a força inicial, agora voltadas contra quase tudo que envolva aspectos de interesses individuais e de grupos.

Não compreendo bem as movimentações – que são algo relevante – mas acho realmente difícil e até arrogante pretender compreender coisas assim amplas rapidamente. É preciso perceber, além do presente e dos interesses em jogo, os episódios históricos semelhantes que se podem por como termos de comparação.

Mas, não escrevo para tentar perceber as manifestações, que envolveram muita violência policial, inclusive. Escrevo para rir-me de algo realmente cômico.

Dois meios de comunicação hesitaram por uma semana antes de se posicionarem taxativamente sobre as manifestações, o que deixou a classe média sem ter o que pensar delas também, porque não pensa exceto pelo que pensam para ela.

É verdade que um e outro, isolada e apressadamente, expuseram opiniões advindas das profundezas duodenais. Foi o caso do tolo enfurecido Arnaldo Jabor, que desfiou lugares-comuns como baderna, arruaça e coisas do gênero, aptas a emocionarem seu público cativo de superficiais propensos ao linchamento e à defesa da atividade policial como prende e arrebenta.

Acontece que os patrões, após a hesitação inicial, perceberam que havia dividendos políticos a se obterem da coisa, dizendo, enfim, que era revolta popular contra o governo. Demoraram um pouco, mas perceberam que servia aos designios monômanos de atacar governo que cometeu o pecado de trabalhar mais pelo país que por patrões estrangeiros e promoveu discreta redução nas abissais desigualdades socias.

Não vejo Globo, mas creio que o patético Jabor já deve ter-se desdito, na mesma linguagem tão exasperada quanto cheia de verdades que adota. O patrão dele deve ter-lhe dito da imbecilidade em que incorrera, deixando-se levar pelas categorias poucas que o pautam. Devem ter-lhe dito que a coisa era boa para falar mal do governo e ele, tão gênio, não percebera, mais afeto ao pensamento duodenal que ao cerebral.

O caso é que comicamente, por uma semana, era impossível encontrar alguém com opinião sobre as manifestações, porque a Veja e a Globo ainda não lhas tinha fornecido.

Café… Colombiano, italiano, brasileiro… Ou com Poesia…

Outro dia, aconteceu uma dessas situações inusitadas, dessas que a oportunidade de estudar fora do próprio país proporcionam. Tenho como companheiros de classe, alguns colombianos, um italiano, e outros tantos brasileiros. O caso, é que em um desses intervalos entre classes, quando acontecem as conversas mais descontraídas, o brasileiro estava falando sobre um cappuccino, de marca Carrefour, fabricado na Alemanha, e disse que era bom. A despeito disso tenho que dizer, que por aqui, a “marca” Carrefour, é o que eles chamam de “marca branca”, ou seja, a marca do próprio super mercado, há de se dizer também, que existem bons produtos vendidos pelos mercados, produzidos por indústrias proprietárias de outras marcas comerciais, que fazem concorrência direta com seus rivais de “marca verdadeira”. Pois o brasileiro observou que dava atenção onde o produto era fabricado, porque apesar de ser de marca Carrefour, pode ser fabricado em algum dos diversos países da União Européia, e que essa atenção era justificada, pois via de regra, se decepcionava com produtos fabricados na Espanha.

Acontece que um brasileiro falar de café, que seja um cappuccino, junto a um colombiano, e um italiano, gerou um certo clima de disputa, afinal, de uma forma ou de outra, são países de tradição, seja no consumo, seja na produção. O brasileiro, disse também que havia tomado bons cafés na Itália, com o que, o italiano, já cheio de orgulho, disse que ali se tiravam os melhores cafés do mundo! Claro, feriu os brios do colombiano, que imediatamente em resposta, disse que na Colombia se produzia o melhor café! O brasileiro tentou jogar uns panos quentes, dizendo que no Brasil, também se produziam bons grãos, mas que seu consumo se dava mais em Portugal, por motivos óbvios. Mas o italiano não arrefeceu, e saiu com uma frase que acabou com a discussão, disse que lhe parecia muito adequado afirmar que os melhores grãos de café fossem produzidos na Colombia, mas que na hora de prepará-lo, quem o fazia melhor, eram afinal, os italianos. Menos mal que estávamos em clima de brincadeira, e não se iniciou um problema diplomático por qualidade de cafés.

E justo da Itália, apareceu uma idéia interessante, que é: deixar um café pago para uma pessoa que não pode pagá-lo, em cafeterías que aceitem esse tipo de “promoção” por assim chamar, seria um tipo de café solidário, baseado, claro, na confiança dos usuários na cafetería em questão. Em Salamanca, onde faço os meus estudos, uma cafetería começou tal promoção, que eu achei bastante interessante, portanto a passei ao Café e Poesia, um café de Campina Grande, que por algum tempo fechou as portas e agora reabre, no Museu Assis Chateaubriand, trazendo de volta uma agenda da qual a cidade ficou orfã pelo tempo em que permaneceu fechado, com saraus e exposições de arte, dentro do próprio ambiente do café.

A idéia foi repassada. Mas afinal, se encontra uma barreira, será que a clientela de um café desses moldes no Brasil, aceitaria a presença de uma pessoa que vai ali aproveitar a promoção do café solidário? Será que a clientela aceitaria ser o dínamo que impulsionaria a quebra do “status quo” social? Democratizando o consumo de um simples café, de um local que é público, e que para o público foi erguido??? E será que tal pessoa necessitada realmente se sentiria a vontade no ambiente? Talvez ainda existam diferenças sócio econômicas e culturais, que inviabilizem um projeto como esse no Brasil… Mas afinal que seja bem-vindo de volta o Café e Poesia, e caso alguém por lá resolva aparecer, que busquem sempre falar com o proprietário, garantia de uma boa conversa, e de um bom café.

Joaquim Barbosa, os sindicatos dos juízes e a típica esquizofrenia institucional brasileira.

Os donos do poder põem seus cães amestrados para brigarem, esquizofrenicamente, claro, como deve ser no Brasil.

Joaquim Barbosa era deus até há pouco, elevado a essa dignidade pela imprensa, que saboreava o molho grosso do linchamento dos opositores a ela.

Eis que Barbosa começa a escorregar na faixa qualitativa de deidade, para o lado oposto. Breve será considerado das hostes do príncipe do mundo…

A nova e deliciosa briga, que o poder observa sentado a bebericar quem sabe uma Veuve Clicquot – por economia, claro, que as melhores são para espetáculos mais vívidos – envolve o ex-deus e os sindicatos de juízes.

O ex-deus disse coisas disparatadas, em meio a coisas sensatas. Disse, por exemplo, que o poder judicial brasileiro é conservador. É claro que é. Disse, por outro lado, que o pessoal do ministério público é rebelde, o que é sumamente falso. São da mesma compleição intelectual, as duas magistraturas.

O ex-deus vê diferenças onde elas inexistem, porque as duas magistraturas são igualmente conservadoras, auto-referentes e anti-democráticas. Essa gente toda pensa em salário, poder e chantagem, com exceções, é claro. E pensa e busca e obtem vantagens sem ter que pedir um mísero voto.

O ex-deus é profundamente maniqueísta e, pior, intelectualmente rasteiro, ao diferenciar o que se distingue, talvez, por meio ponto. A grandeza dos loucos que nada têm a perder recomendaria o atirar contra todos, mas o ex-deus não na tem, evidentemente. Ele precisa distinguir entre bons e maus.

Os sindicatos dos juízes atacam o ex-deus, coisa que não faziam até há pouco. O revide é tão tolo quanto o ataque: contraponto ligadíssimo ao ponto inicial e dele dependente. Esquizofrenia pura…

Filet mignon na manteiga, pimenta-do-reino, sal grosso e vinho tinto.

O filet mignon bovino é peça extremamente mole, quase sem gorduras nem nervos, mas pouco saborosa, de si. É uma peça cara, por essas bandas, também, basicamente por ser pequena, muito macia e por perder-se pouco depois de tratada.

Para que tenha vantagens além da maciez, dado o pouco sabor intrínseco da peça, convém que seja temperado e que esteja fresco e sanguinolento. Ele adquirirá o sabor aos temperos que se usarem e o sangue ajudará bastante na composição.

Há, basicamente, três maneiras de prepará-lo: em medalhões, em escalopes e como rosbife. Particularmente, prefiro o rosbife, mas dá mais trabalho e estou com preguiça.

O rosbife implica passar a peça inteira previamente temperada em óleo ou manteiga muito quentes, em uma caçarola, rapidamente. A peça ficará frita por fora e suculenta por dentro; depois, mete-se numa assadeira e rega-se com um pouco de vinho, por exemplo, e vai ao forno baixo por vinte ou trinta minutos. Resulta em uma panela e uma assadeira para serem lavadas ao depois…

Uma peça de trinta e poucos centímetros pode ser cortada em medalhões até aproximadamente um terço do seu comprimento; depois, se se continuar a cortá-la contra as fibras, resultará em medalhões muito pequeninos. Então, o restante da peça, na parte que se vai estreitando, pode ser cortada em finos escalopes, ou seja, no sentido das fibras.

Tomei uma peça de filet relativamente pequena, de menos que um quilo, e pus para repousar com sal grosso e pimenta-do-reino moída e um pouquinho de vinho tinto. Duas horas bastam para adquirir algo dos temperos. Depois, cortei-a em medalhões e escalopes e os mantive no mesmo suco, agora já com o sangue que havia dentro. Mais meia horinha.

Seria demasiado longo falar das vantagens e desvantagens da manteiga e do azeite para se fritarem os escalopes e medalhões. A preferência varia de dia para dia. Evidentemente, a manteiga resulta mais pesado, talvez por somar gosdura animal a gordura animal. Mas, é mais saboroso e foi a escolha para hoje. Convém lembrar, todavia, que a manteiga queima e a janela de oportunidade é menor que com o azeite.

Pois bem. Cortei cebolinha – essa planta filha dos deuses, quem sabe deuses mediterrâneos – em rodelinhas bem fininhas. Pus um grande pedaço de manteiga na caçarola e deixei-a derreter e se liquefazer; em seguida, a cebolinha entra na panela e fica a impregnar-se desse lácteo derretido e quente por quatro ou cinco minutos. Nesse ponto, tudo estará muito quente, como convém.

Começa a parte mais sedutora, olfativa e sonoramente: deitam-se os medalhões na mateiga quentíssima com rodelinhas de cebolinha já douradas. O cheiro da carne mole e ensanguentada no primeiro contato com a manteiga fervente é de fazer salivar alguém que não preze a culinária! O crepitar destes pedaços de carne frios subitamente apresentados ao calor gorduroso apraz até a um parcialmente surdo.

Aqui, um parêntesis, como sempre se devem fazê-los para falar do que veio antes: o sal grosso, daquele em grãos que parecem pedriscos, deve ser retirado de tudo que vá para uma caçarola, senão o resultado é desastroso. As carnes que vão para grelhas altas, como em churrascos, podem estar recobertas de sal grosso – que depois basta sacudi-las e retirar o excesso –  mas as que vão para panelas não.

Os medalhões devem ser virados algo rapidamente, pois não se pretende esturricá-los. Pouco tempo depois, deita-se na panela o caldo de sangue e vinho que havia acolhido a peça inteira, anteriormente. Nesse momento, baixa-se o fogo e tampa-se a caçarola, para os sucos impregnarem-se na carne e apurar-se o caldo que cozerá por dez ou quinze minutos.

Para acompanhar essa carne molíssima, gosto de arroz branco cozido com pouco ou nenhum sal. Há quem prefira batatas, que realmente acompanham bem o filet, principalmente se ele for cortado em medalhões grossos e resultar em pouco molho.

Um Malbec, argentino, obviamente, vai multiplicar o sabor dessa carne amanteigada. Quase todos são bons. Convém abrir as janelas de par em par, porque é provável que gotas de suor desçam discretamente das têmporas…

E quando finalmente a Yoani Sánchez fala…

A blogueira cubana superstar do momento, Yoani Sánchez, está de visita ao Brasil. Depois de anos pedindo permissão para sair de seu país, Cuba, e outros tantos vivendo na Suiça e por ai vai. A blogueira é polêmica por criticar as consequências atuais do que aconteceu em  Sierra Maestra há tempos atrás, mexendo assim com os brios de uma esquerda latino americana que não deixou, não deixa, e creio, nunca deixará de idolatrar os mesmos feitos.

Pois desde de que conseguiu a tal permissão de viagem, e desembarcou no Brasil, vinha enfrentando protestos onde quer que chegasse. Recife, Salvador, Feira de Santana, enfim… Por outro lado, li algumas contra-manifestações falando que no Brasil as pessoas mantivessem blogs anti-governo sem maiores problemas, assim como em qualquer lugar do mundo.

Pois pra não entrar nos feitos de Sierra Maestra, e nem da Yoani por enquanto, vou falar um pouco do prato principal, mas que ninguém se dá conta, os blogs. Não, não tem nada demais em ter o seu blog, e fazer dele o que quiser, como bem diz Andrei, usando de respeito e bom português, mas, o blog tem uma coisa pela qual os jornais não primam. E disso, quem pode falar é um blogueiro, que eu não sou, aprendi com o Cris Dias, esse sim, blogueiro. O que o blog tem que os jornais não primam, e por vezes tampouco têm, é credibilidade, assim simples e ponto final.

Porque só o blogueiro pra saber disso? Porque vive de seu blog. Jornalista não é blogueiro, blogueiro não é jornalista, são coisas diferentes, muito embora possam coincidir. Os blogs têm que primar pela credibilidade porque possuem audiência frágil, se eu que te leio, descubro que tu elogiou uma marca, porque foste pago, e não me disseste, deixo de ler o que tu escreves. Assim de fácil. Então qualquer blogueiro sabe que se começa a enganar seus leitores com frequência, os perderá, e por conseguinte, seus patrocínios.

Então, voltando pra Yoani… Ela chega no Brasil, enfrenta protestos, e todo mundo acha bonitinho ela calada, sorrindo, ou dizendo que as manifestações contra ela são um exemplo da democracia que não existe em Cuba. Ok… Mas nada dela falar…

Só ai ela resolve abrir a boca… E as primeiras palavras dela?

“A blogueira cubana Yoani Sánchez, em visita ao Congresso Nacional no início da tarde desta quarta-feira,  fez um apelo ao senador Aécio Neves: pediu que ele monitore a situação da restrição da liberdade em Cuba permanentemente. “

“Yoani Sánchez cobra posição “enérgica” do Brasil em relação a Cuba.”

Mas peraí cara-pálida, tu vais ao congresso nacional fazer palanque pra oposição, beleza… Que cada um joga com as cartas que tem… Agora tu saiu do teu blog, que é de conhecimento do reino mineral que se financia pela CIA (como diria Mino Carta), e quer ditar a política do meu país, sobre o teu? Além da ingerência aqui no meu quintal, tu ainda queres que, nossa presidente (ou o futuro presidente), meta o bedelho no quintal dos outros?

Vou te contar viu… Pelo menos o Bono Vox é recebido pelos presidentes… Talvez porque só peça informações sobre programas sociais, e não saia por ai dizendo aos que foram votados o que fazer com os votos…

Picanha estufada com alhos.

A picanha é um corte bovino ótimo para a brasa; sua grande e regular camada de gordura dá-lhe imenso sabor à medida que derrete sob o calor de um braseiro forte e distante. Sua dificuldade principal é retirar a camada de pele encontrada na face de baixo da peça, aquela contrária à camada superior de gordura. Se essa pele não for retirada, resulta mal até no melhor braseiro.

A picanha na panela não é novidade e talvez seja perda das potencialidades dessa peça tão boa de carne bovina. Sim, porque a famosa capa de gordura, se a carne é estufada, resulta numa consistência que sabe mal e fica dura. Porém, essa godura dá sabor ao estufado e basta retirá-la depois.

Comprei um peça de um quilo de picanha, relativamente magra, de gado zebuíno, certamente. Essa raça, muito adaptada ao clima brasileiro, de origens indianas ou africanas, não sei, é magra e de carnes menos tenras que as raças de origens européias, tão bem adaptadas ao Uruguai e à Argentina. Aqui, um parêntesis: a melhor carne do mundo come-se no Uruguai.

A picanha, em termos planos, é um triângulo-retângulo. Em termos espaciais é forma que ganha altura à medida que se afasta do vértice da hipotenusa com o cateto maior. Por isso, convém fatiá-la perpendicularmente a uma linha imaginária que sai da metade desse ângulo entre a hipotenusa e o maior cateto.

Pois bem, fatiei a peça assim e a pus a descansar imersa em molho de soja. Essa, talvez seja a melhor maneira de salgar uma carne para panela, sem usar sal e com a vantagem do leve sabor ao referido molho. Uma horita será suficiente.

Entretanto, piquei em pedaços bem pequenos duas cabeças de alho. Sim, é bastante alho, mas não resultará mal, que alho demais faz parte. Cortei em fatias bem fininhas um molho de cebolinha, também. Nada de cebolas, portanto.

Na caçarola, qualquer coisa de azeite, que isso vai de olho e não de peso, ou colheres. Quente o azeite, põe-se dentro o alho e a cebolinha, baixa-se o fogo e tampa-se a panela. Melhor que abrí-la para mexer é sacudí-la fechada.

A panela fechada hidrata o refogado com seus próprios vapores, mas convém ficar atento ao momento em que os alhos e cebolinhas començam a pregar-se ao fundo da panela. Nessa altura, sobe-se o fogo e despejam-se os cortes de picanha, sem o molho. Os pedaços já entrarão suficientemente molhados em seu próprio sangue e no molho de soja.

Os primeiros minutos são de panela aberta e fogo alto, que carne tem que tomar calor e soltar seus sucos e receber a invasão do alho desfeito em azeite fervente. Principalmente, a godura da picanha tem que tomar o choque do refogado quente.

Logo ao depois, baixa-se o fogo e tampa-se a panela, depois de virar os pedaços e mexer bem, para que alhos e cebolinhas impregnem tudo.

Isto não dura vinte e cinco minutos e serve-se com arroz e abacaxi em rodelas. No caso de hoje, como o tempo estava adequado, com um tinto alentejano barato por aqui, o que significa um tinto alentejano qualquer, vulgar, mas de seus 13º. Depois a certeza de que para cada inclinação um deus e para cada sono uma só coisa: a rede.

Arroz de camarão, marisco e sururu.

Antes da receita, advertência que faz sentido nestes tempos de tanto pensamento quase-calvinista: hoje é dia feriado. Dia de todos-os-santos, dia de finados, como o celebramos por aqui. Devia ser feriado apenas para os mortos, mas o é também para os vivos; portanto, celebremos com aquilo que se leva do mundo dos vivos para o dos mortos: o que se come e se bebe.

O dia está muito quente e seco, mesmo a partir das horas mais precoces. Às seis da manhã, o céu encontra-se meio nublado, mas já se pode saber que breve ventos discretos afastarão as poucas nuvens e o sol queimará forte. Não é caso de beber-se vinho tinto no almoço, portanto.  Estamos para um branco bem fresco e o habitual chardonnay chileno cumpre o papel.

Saí de casa em direção ao mercado a pensar num arroz. Não convinha que fosse de carnes e embutidos, por conta do calor. Seria de frutos do mar, o que punha o problema de sua oferta, pois não estamos propriamente em frente ao oceano.

Garoupa e polvo seria boa mistura, a despeito dos diferentes tempos de cozimento, mas não havia um nem outro. Havia, como sempre, camarões, e havia mariscos e sururu descascados. Sururu, para quem não souber, é marisco de água salobra, delicioso, que se colhe nos mangues, nas foz de rios em que a água é meio doce, meio salgada.

Vieram do mercado arroz italiano para risoto, camarões de água salgada, mariscos e sururu descascados, alho, cebolinha, tomates e cúrcuma, que é açafrão de pobre.

Complicado de um arroz desses meio italianos é que se fazem dois cozimentos distintos: o primeiro é dos ingredientes que darão o caldo, o segundo do arroz propriamente dito, o que resulta em bastante trabalho, pois se mexe todo o tempo, à medida em que se despejam conchas do caldo.

Em panela ordinária, do tipo caçarola pequena, deitei quatro colheres de azeite. Antes, aquela parte que é terapia para mim, envolveu picar uma cabeça de alho, um molho de cebolinha e três tomates maduros, em pedacinhos pequeninos.

Azeite quente, alho, cebolinha e tomate na panela e tampa e fogo baixo. Cinco minutos e abre-se a panela e mexe-se a mistura. Entretanto, os camarões tomam cinco ou mais minutos de fogo apenas na água e sal. Essa água de camarão aplacará a fervura louca do refogado e será a base gustativa do caldo que cozerá o arroz.

Baixada a temperatura do refogado com a água de camarão, entram os mariscos e o sururu. Isso toma apenas dez minutos de fogo baixo e mais cinco a partir da entrada dos camarões já cozidos. O caldo está pronto.

Esse arroz italiano para risotos dá trabalho, mas recompensa-o. Numa caçarola de fundo grosso, pôe-se três colheres de azeite e quatro dentes de alho picadinhos. Mexe-se sempre, com fogo alto, e joga-se uma xícara de arroz, continua-se a mexer. Quando a mistura de arroz e alho insinua interesse muito grande em aderir ao fundo da panela deitam-se conchas do caldo dos marisco e camarões, aos poucos.

Todo o caldo que estava na panela dos camarões e mariscos passa à do arroz, aos poucos. É preciso não deixar de mexer o arroz e não por caldo de mais ou de menos. A certa altura, prova-se o arroz e se estiver quase ao ponto, ou seja, um pouco mais duro que o esperado, deitam-se os camarões e mariscos, o conteúdo da primeira panela, no arroz.

Pus meio copo de água e tapei o arroz. Deixei mais cinco minutos e resultou excepcional!

Meritocracia e erro voluntário na fala.

Indivíduos das classes média e alta, no Brasil, praticam com desenvoltura o erro voluntário ao falar. Não deixo de me refir às pessoas as classes mais baixas porque os queira desculpar. Não é coisa que se aborde assim moralmente. Deixo de incluí-los entre os voluntários erradores porque não tiveram educação mesmo.

Mas, aquelas pessoas de extração social privilegiada, que tiveram educação formal nos ensinos básico, médio e superior – os dois primeiros geralmente particulares e o último às vezes público – não devem arguir com informalidade, espontaneidade ou coloquialismo para desculpar-se de barbaridades como a supressão total dos plurais na fala.

É óbvio que não se fala como se escreve. Todavia, essa diferença entre falado e escrito não é razão nem desculpa para a total supressão de plurais e o uso dos pronomes pessoais do caso reto ao invés daqueles do caso oblíquo, para ficar nos dois exemplos mais frequentes.

Há quem diga que o simpático erro voluntário é o contrário do pedantismo e uma mostra de espontaneidade. Não é. Pedantismo seria o ridículo de falar-se como escreve-se. Pedantismo é o ridículo de falar a imitar outras situações e pedir desculpas pela origem e educação. Artificial é falar em desconformidade às potencialidades que se obteve por ter estudado.

A diferença própria da coloquialidade é a confusão sintática e a repetição, não as omissões nas flexões de número ou confusões com os pronomes pessoais. A fala coloquial tem estrutura diferente da escrita, tem expressões vulgares que não se costumam escrever. Ela serve-se de instrumentos de ênfase diferentes, mas não se diferenciam o falado e o escrito necessariamente por mais ou menos erros.

Acho que a preguiça está na raiz desses erros voluntários. Claro que muitos são casos de ignorância pura e simples, a provar que nossa cantada meritocracia não resiste a um exame de português… Todavia, a maior parte é simulação e preguiça mesmo.

O meritocrata brasileiro típico, o sujeito que bate no peito e diz que ganha, ou menos, ou o que merece, porque afinal é capaz, deve lembrar-se que entre várias coisas que compõem essa capacidade encontra-se o conhecimento da língua. Ele não gostaria de ganhar salário diretamente proporcional à riqueza de seu falar e da potencialidade que obteve ao estudar.

O erro voluntário pode trair duas situações desconfortáveis: ou bem o sujeito voluntariamente é menos do que pode ser, ou é exatamente o que é, mas queria esconder.

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