Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Renoir, Fellini e Kubrick disseram quem é e como é a aristocracia ocidental.

Dizer que há um grupo reduzido e interligado de aristocratas que mandam no mundo ocidental – Europa, América do Norte e seus satélites coloniais africanos e sul-americanos – é inconveniente e quase proibido, a depender de quanto explicitamente se fale.

Dos três cineastas do título, é interessante notar que Kubrick foi o mais explícito e, não se sabe se por causa disto, veio a morrer antes do filme ser lançado. Deve ter sido coincidência. Normalmente, os identificados limitam-se a dizer que o identificador é um difusor de teorias da conspiração.

A identificação faz-se a partir da mostra dos códigos que regem as relações dos aristocratas muito ricos entre eles mesmo e entre eles e o restante das pessoas. Tende a escandalizar o público porque estes códigos não se baseiam absolutamente em critérios morais, embora consagrem critérios de honra. E as finalidades destes códigos são ocultar-se e manter o poder nas suas expressões econômica e social.

No seu filme, Renoir insere subtramas e intrigas que afastam um pouco a percepção do que era possível e impossível para a personagem André. em seu romance com a esposa do aristocrata austríaco.

Fellini é discretíssimo. A personagem de Mastroianni, Marcello, percebe na festa no castelo aristocrático romano que ele estava lá apenas fisicamente. Mas, o que parece é ser um filme todo focado na pequeneza existencial de Marcello.

Esses filmes e as identificações dos modos de ser individuais e de grupo dos aristocratas e de seus códigos de condutas para relações internas e externas vieram-me à mente pois lia sobre o marquês Camillo Casati Stampa di Soncino, aristocrata de uma das famílias nobres mais antigas de Itália.

Já havia lido sobre Casati Stampa há muito. Mas, voltei a me interessar porque li que Berlusconi comprou à filha herdeira de Casati Stampa, em 1974, a Villa San Martino. E Berlusconi, farsante e impudico, abriu a Villa a uma equipe de TV para provar que nela não se faziam as festas bunga bunga e para mostrar que havia erigido um mausoléu inspirado no túmulo de Tutancámon, para acolher os amigos que morressem…

O marquês era riquíssimo e tinha muitas casas por toda a Itália. E tinha uma Villa na Ilha de Zannone, que ficou conhecida como a ilha das orgias. Em 1958, Casati Stampa conheceu Anna Fallarino, que fora aspirante a starlet da Cinecittà e findara por casar-se com um engenheiro meio endinheirado, que a inseriu nos círculos de bom gosto romanos.

O marquês conseguiu a anulação do casamento de Anna, mediante pagamento farto, e veio a casar-se com ela em 1959. Na noite do casamento, Anna banhava-se, no hotel em que estavam, e Casati Stampa fez chamar um garçom, um rapaz jovem e bonito, com quem Anna desfrutaria à vontade, enquanto o marido apenas olhava.

Este acordo deu certo. O marquês pagava para jovens, dos dois sexos biológicos, bonitos, de condição social inferior, terem sexo com Anna, enquanto ele tirava fotos. Depois, descobriu-se que havia um arquivo de aproximadamente 1500 fotos encartadas em um diário verde, que trazia também anotações feitas por Casati Stampa.

Havia, porém, um limite estabelecido no pacto: não poderia haver envolvimento emocional nem amoroso entre Anna e os inúmeros amantes pagos pelo marido. Um dia, Anna foi introduzida a um jovem chamado Minorente e envolveu-se afetivamente com ele.

Em agosto de 1970, Casati Stampa matou-os e matou-se com uma espingarda de caça, na sua Villa em Roma. Deixou escrito que havia sido traído com o coração, por Anna. No testamento, estabeleceu que a marquesa Anna seria enterrada junto a ele, no mausoléu da família Casati Stampa di Soncino.

Muitos, notadamente psicólogos, como é intuitivo, debruçaram-se sobre a psiqué do marquês e puseram-se a especular se era impotente, se era voyeur, se era homossexual e por aí vai. Nada disso parece-me importante, eis que tais especulações parecem-me muito mais guiadas por balizas moralizantes que por balizas ou interesses epistemológicos. Claro que a investigação psicológica não é inútil, mas não atinge o mais interessante.

Os móveis psicológicos que impeliam o marquês a tais condutas sexuais não têm a ver com sua origem social e com a possibilidade de fazer o que gostava de fazer. Esta possibilidade concreta de agir abertamente como agia é que é reveladora do que é a classe social a que pertencia.

Há códigos para as relações dos aristocratas muito ricos entre eles e com as restantes pessoas, de fora do grupo. Eles, de uma forma geral, visam à preservação do poder nas suas expressões econômica, social e psicológica. Casati Stampa foi ferido no seu poder pessoal sobre Anna. Foi traído com o coração quando Anna enamorou-se do amante e estabeleceu uma relação que fugia ao poder do marquês.

Este caso é mais sútil, de fato, eis que é mais comum perceber-se a função conservadora dos códigos relativos à liberdade sexual dos aristocratas muito ricos na sua face de manutenção do poder econômico. Na corte dos Aquemênidas, por exemplo, a rainha e as mulheres da alta nobreza serviam-se sexualmente dos eunucos à vontade.

Não havia a interdição sexual na corte persa; havia a interdição de procriar fora do grupo e deslegitimar a nobreza com a geração de bastardos. Os eunucos, contrariamente ao que muitos pensam, não são impotentes quando castrados depois da puberdade, são inférteis apenas.

Semelhantemente acontece com as regras que vedam o acesso dos pequenos fidalgos e do burgueses ao seio da aristocracia muito rica, senão como pequenos bufões que eventualmente divertirão num e noutro jantar, como acontece no episódio da Doce Vida, de Fellini. Mas esse convívio esporádico raramente significa uma aceitação real e um ingresso no outro mundo.

A aristocracia dos muito ricos protege-se, individual e coletivamente, por meio destes códigos desconhecidos da maioria. Assim, mantém riqueza, prestígio social e honra, por bizarro que possa parecer. Nunca se tratará de moral, contudo.

Uma aula de tristeza nas Eleições de 2018

Outro dia, vi que uma garota que estudou com os filhos então adolescentes do deputado federal Jair Bolsonaro escreveu um texto. No tal texto, ela contava que os filhos do Bolsonaro eram adolescentes normais, de classe média alta no Rio de Janeiro. Que saiam, paqueravam, eram paquerados, usavam internet, tinham ICQ, e brincavam ou, na gíria do Nordeste, carregavam, em seus círculos de amizade.

Eram adolescentes comuns, enfim. Ela começava o texto se perguntando quando fascistas se tornam fascistas e terminava dizendo que  não sabia quando isso acontecia, mas a situação se transmutava em barbárie quando eles chegavam ao poder.

Nas eleições passadas, e nas retrasadas, e em algumas outras antes dessas, eu não estava no Brasil. Não sentia o clima e, pra mim, sempre era uma grande brincadeira. Especificamente na última, o whatsapp já era um aplicativo de telefone difundido, e eu entrei em vários grupos de colégios onde estudei. O melhor deles, onde haviam mais amigos, mais engraçado, mais carrêgo, era o grupo de meus amigos de terceiro ano colegial, último ano do ensino médio, ou como quer que se chame hoje em dia.

Por estar nesses grupos, eu “senti” mais de perto as eleições, as “brigas”, as discussões acaloradas. Foi uma experiência sui generis participar desse jeito nas eleições. E, aqui novamente, o melhor grupo era o grupo de meu terceiro ano colegial, inclusive onde certa feita alguém escreveu: “-Também, nesse grupo a pessoa tem que estudar antes de fazer uma postagem!”, coisa que não se repetia nos outros grupos. Pra mim, que estava então escrevendo a tese doutoral, era uma despressurização das horas enfurnado na biblioteca, saia e ia conversar aresia no Whatsapp.

Naquele momento, as discussões eram sobre políticas públicas, corrupção, obras, e muitas piadas sobre o português ruim da então Presidenta Dilma Rousseff. Algumas discussões eram boas, outras nem tanto, mas eram interessantes. As conversas davam a tônica do posicionamento de cada um individualmente e o pensamento político era construído a partir daí como singularidades desses posicionamentos, conservadas da época em que estudamos estavam a simpatia de todos e a vontade eterna de nos reunirmos sempre que possível.

Em 2014, a maioria esmagadora do grupo votava em candidatos que eventualmente foram derrotados nas urnas. Os poucos, como eu, que naquele momento elegiam o lado “vermelho” da força pra discutir foram, pouco a pouco, saindo do grupo, até que fiquei eu lá, de Highlander. As discussões eram abundantes, ainda que as vezes pesadas, e eu gostava delas tanto quanto adoro torturar idéias, convicções e rótulos, imagino eu, que com alguma destreza.

Eis que essas eleições 2018 estavam meio… Paradas. Sentia falta de alguma coisa e… Pô, vou entrar no grupo novamente pra conversar besteira com o pessoal. E estavam lá todos, tal qual nas últimas eleições, prontos a discutir, conversar bobagens e contar piadas, como sempre. Os moderados continuavam moderados, os que não eram tão moderados assim, também continuavam não tão moderados assim, enfim… Estavam todos lá, inclusive de bom humor. Depois de algumas provocações, fica evidente o que era de se esperar: em sua maioria, os meus interlocutores votavam em Bolsonaro.

A troça perdeu a graça 5 minutos após eu perceber que Bolsonaro não tem proposta alguma, a não ser na pauta de costumes, sobre a qual não vale a pena nem conversar, ou fazer troça. Nem a minha provocação preferida, que é prometer o voto em troca de um projeto, deu retorno, porque simplesmente não há projetos.

E ai lá vem ela de novo, a pauta de costumes… Chaaaaaata, sem graça, só conservadora e ignorante. São, em sua maioria as mesmas pessoas, bons debatedores, bons humores, tolerantes, nas eleições passadas pautadas pela honestidade dos candidatos, nessa, pela pauta de costumes embalada também pela questão da honestidade.

Eu fiquei matutando hoje sobre o texto que a moça escreveu, acerca dos filhos de Bolsonaro. Também sobre um excelente filme chamado “Diários de Motocicleta” de Walter Salles. A menina se perguntava como se formam os fascistas, o filme de Salles é uma proposta do caminho percorrido pelo rapaz Che Guevara para que este se tornasse então o guerrilheiro Che Guevara, sem dúvidas um bom filme que demonstra esse processo de formação. Eu fiquei então refletindo sobre muitas coisas…

Falando só de Bolsonaro, é um perdido. Uma pena que tenha sido alçado a candidato preferido de larga parcela da população por programas televisivos de comédia com gosto duvidoso. Não representa ideologia, mais por incapacidade do que por qualquer outra coisa. Representa sim, a violência, a estupidez, enfim… Cada linha perdida ao descrever #EleNão é uma linha de tempo perdido na minha vida.

A grande tristeza das eleições desse ano, foi perceber que a pauta defendida por ele tornou-se a defendida por muitos amigos e colegas. Que a defendem tão bem quanto defendiam a pauta outrora defendida por Aécio Neves. Só que agora com mais virulência, entoando expressões como: “vai ter repressão”, “distribuir Meritocracia”, pra ficar em alguns casos. Ora, são meus companheiros de outrora quando era garoto, não acredito nem por meio segundo que algum deles seria capaz de “realizar” algumas das barbaridades.

Não obstante, sempre existe a possibilidade. E é quando eu me pego a pensar, qual será o momento em que isso acontece?! Não precisa se pautar por nenhum exemplo escrito aqui, mas em algum momento na vida desses, eles foram pegos por uma correnteza que os leva por mares que eu, e muitos outros amigos não nos arriscaríamos nem a navegar, de tão incompreensível que é. Qual será o momento em que uma pessoa normal, em que um garoto do colegial decide que deveria “reprimir” o comportamento alheio…

O exemplo das eleições 2018, com um fascista como candidato preferido no Brasil, é na data de hoje, bem vivo. Mas os exemplos são muitos, nas profissões. Por exemplo, qual a hora em que um estudante de Direito se apodera da primeira aposentadoria rural como advogado? Que um engenheiro faz a primeira obra com material imprestável, que o comerciante leva a primeira vantagem indevida, e que todos se unem em prol de matar outra pessoa… Qual a hora que uma pessoa normal, no lugar de defender o mais fraco, passa a se aproveitar das fraquezas alheias?

Argentina: terras patagônicas por dívidas?

Na semana passada, o Banco Central da Argentina elevou as taxas de juros básicos de remuneração de seus títulos para 40% ao ano. A elevação brutal veio a seguir à desvalorização acelerada do peso argentino frente ao dólar estadunidense, o que tem efeitos inflacionários consideráveis.

A inflação prevista para este ano é de 24% e um dólar estadunidense compra, hoje, vinte e três pesos argentinos. De dois anos e cinco meses para cá, a pobreza passou de 4% da população para à volta de 30%. Esta elevação drástica dos níveis de pobreza e a deterioração dos indicadores econômicos corresponde ao mandato presidencial de Maurício Macri.

Evidentemente que os neoliberais triunfantes usam a mesma narrativa de sempre. Dizem que impõem medidas contrativas e concentradoras porque isto é necessário para que, depois, abram-se as portas do nirvana econômico. Isto é mendacidade e discurso primitivo intelectualmente. Verdadeiro é que os ajustes e reformas – termos de eleição desta gente – sempre cobram dos que já tem menos. E, cobrar dos que têm menos prova que os neoliberais trabalham para os que têm mais; isto é uma evidência.

Isto só é possível porque a imprensa corporativa e os políticos neoliberais trabalham em estreita articulação, ambos a serviço dos interesses da grande finança internacional. A base narrativa enfatiza a técnica e o gerenciamento, como se mais de uma escolha política não houvesse e como se um Estado e uma família fossem as mesmas coisas em escalas diferentes. É intelectualmente primário, mas funciona a partir de bombardeamento de saturação, entremeado com técnicas comunicativas de confusão.

A Argentina está em situação crítica, com inflação e crise cambial severa. Quebrou, em resumo, como quebrou várias vezes nos últimos trinta e cinco anos, sempre a partir de crises cambiais. A elevação dos juros públicos para 40% é sintomática, pois quem se dispõe a pagar 40% anuais por dívida pública evidentemente não pagará nada além do serviço. A opção está clara e é a mais canalha possível em termos de interesses populares e soberanos: pagarão aos credores externos e darão o calote nos internos.

As gestões Kirchner foram de muito êxito no trato das situações ligadas às dívidas. Saíram dos templos bancários europeus e estadunidenses e – contrariamente aos vaticínios dos sacerdotes das agências de riscos – não se viram na encruzilhada da falta de financiamento. Num primeiro momento, a Venezuela, então sob Chavez, fez preciosos aportes; depois, a China financiou com lastro em segurança alimentar.

Dito isto, é preciso desvelar o que há por trás do discurso mediático sobre o aumento da pobreza e a deterioração das condições econômicas na vigência do governo neoliberal. A imprensa corporativa diz que algo corre errado – ou que ainda corre errado, embora seja certo que o Nirvana virá – a despeito da adoção das medidas adequadas. Eles dizem, enfim, que, ou houve erros pontuais, ou que ainda não houve tempo para a obtenção dos resultados.

Isto é a mendacidade recorrente a tentar esconder o óbvio: os efeitos produzidos são precisamente as consequências que decorrem das causas. As políticas neoliberais não podem, nem visam a produzir qualquer coisa diferente de empobrecimento e criação de condições econômicas que só beneficiam o setor financeiro. A instabilidade econômica é altamente rentável para o setor financeiro que, no caos que ele mesmo cria, ganha em todos os movimentos especulativos.

Políticas neoliberais não resultam em drástico empobrecimento dos mais pobres por algum erro qualitativo ou quantitativo. Elas levam a tal resultado porque são feitas para gerar este resultado. Não há erro, há vontade.

Rapidamente, as dívidas pública e privada em moedas estrangeiras mostram-se impagáveis. A oferta de obscenas taxas de juros prova-o. O lógico, por uma perspectiva de defesa dos interesses internos, seria pagar a dívida em moeda local e, eventualmente usar do financiamento por inflação, o que não deveria repugnar os mais ortodoxos, até porque a Argentina tem hoje alta inflação e altíssimos juros, o que é contraditório pela ótica ortodoxa.

Arrisco-me aqui a avançar uma hipótese que pode vir a materializar-se nos médio ou longo prazos. A Patagônia argentina é uma região muito vasta, na porção sul do país. São terras muito ricas, fartas em água doce que provém das montanhas andinas, são terras férteis, são banhadas pelo Atlântico Sul, são ricas em petróleo e apresentam outra coisa preciosa: tem uma densidade populacional baixíssima.

As terras férteis do centro e norte argentinos já estão empenhadas aos interesses chineses em arroz e soja. A maior parte das riquezas em hidrocarbonetos já foi alienada, depois da privatização da YPF, companhia petroleira argentina que foi praticamente doada à Repsol e outros grupos de investidores, após sistemática e proposital campanha de desvalorização de suas ações.

Com apenas a escravização do povo não será possível gerar excedentes que permitam ao governo neoliberal cumprir sua missão de transferir riquezas para o sistema financeiro internacional, mediante pagamento de juros altíssimos e câmbio depreciado. Só resta uma coisa a empenhar ou simplesmente permutar por dívida: a Patagônia.

Aqui, é pertinente notar que há e sempre houve interesses pela Patagônia, até porque lá é possível estabelecer praticamente um país soberano sem o precisar declarar formalmente. É notável que um bilionário inglês, Joe Lewis, venha comprando vastas porções de terras na Patagônia argentina, na sua parte mais austral, na Terra do Fogo. Não me inclino a considerar que o bilionário esteja a ser enganado ou que não saiba o que está a fazer.

Além disso, embora não haja evidências de algum plano de instalação de um Estado judeu na Argentina, é amplamente sabido que havia planos de estabelecimento de colônias ou autonomias judaicas na Argentina e é fato que houve para lá uma imigração massiva.

Enfim, não me surpreenderia absolutamente que os grandes credores internacionais aceitassem uma proposta ou mesmo que fizessem esta proposta de permuta de terras patagônicas por dívidas.

 

 

 

Competição por recursos escassos e senso de conservação.

Quando, em 1936, Miguel de Unamuno foi demitido do cargo de Reitor da Universidade de Salamanca, após o episódio brutal protagonizado por Millán-Astray, a Universidade não precisava mais de reitores, embora os pudesse ter.

As ações que visam à conservação – seja de situações individuais, seja de situações de grupos – requerem, para serem eficazes, que os conservadores não creiam no mito da invulnerabilidade. A primeira vontade não se concretiza na presença da segunda crença. A crença impede a eficácia da ação conservadora porque, no fundo, se há invulnerabilidade, não há necessidade de trabalhar pela conservação.

As maiores partes dos grupos intermediários que agiram ativamente para a consumação do golpe antidemocrático e antisoberania tem seus horizontes de conservação no contracheque do mês seguinte, no que emulam muito os políticos de varejo, que vivem um dia após outro na sua rapacidade, como se o mundo fosse acabar-se muito brevemente.

Alguns conservadores legalistas que não faltaram às aulas da alfabetização perceberam o encontro marcado com o paradoxo do serviço terminado e com a competição por recursos escassos e tendencialmente cada vez mais escassos. Essa escassez, inclusive, era previsível, porque o projeto que ajudaram a implantar propõe-se inequivocamente a produzi-la, no que se refere a recursos públicos.

Por um lado, para os que fazem contas e inserem-se no grupo que realmente exerce o poder, para agir à margem da constituição, há quem o faça mais barato e mais organizadamente. Na verdade, o Estado de exceção não é Estado na sua concepção consagrada no pós-guerra, embora a expressão esconda esta constatação óbvia. Logo, ele prescinde de estruturas jurídicas reais, bastando-lhe a aparência. E a aparência não precisa custar excessivamente.

Por outro lado, após o serviço ser completado não são necessárias ações excessivamente brutais e explosivas, senão como combustível para a selvageria que também vai contra o desejo de conservação dos agentes intermediários colocados no topo da burocracia estatal.

É verdade que o caos que toma o Brasil é funcional aos interesses dos grandes e futuramente únicos beneficiários da supressão ilegal da democracia. Sistema financeiro e a articulação dos saqueadores de recursos naturais ganharão sempre, mas apenas eles ganharão. O caos e a regressão econômica brutal, além da supressão dos sistemas de proteções sociais mínimas, significam perdas para todos. Claro que os eufóricos agentes operadores intermédios não o perceberam.

Muito embora o aumento das distâncias relativas entre as classes médias e as baixas traga um regozijo para as primeiras, é certo que, em termos absolutos, ambas regredirão em benefício do topo da pirâmide e em consequência da depressão econômica inevitável. O caos é funcional ao saque, mas não ao crescimento. Por isso, não deve ser grande surpresa se alguns grupos agentes internos operadores do golpe conduzam um processo de endurecimento.

 

 

 

 

Os mortos não têm sede.

A água é recurso já muito escasso e a escassear mais e mais. Nesta perspectiva, os mortos, que não têm sede, talvez breve venham a ser preferíveis aos deuses. A competição por recursos naturais escassos vem acirrando-se intensamente e tem sido arbitrada em favor dos estratos 10% superiores de formas clássicas, ou seja, por meio de repressão física e exclusão geográfica.

Não vou flertar com malthusianismo superficial, nem investigar se melhor equalização distributiva invalida as teses da insustentabilidade do crescimento demográfico em face das possibilidades do planeta. Abstraindo-se da hipótese da equalização na apropriação dos recursos, fica evidente que, para a manutenção dos níveis de consumo dos 10% superiores, a existência de um oceano de indigentes é um estorvo e obstáculo.

Os ganhos de produtividade na agropecuária tampouco retirarão o obstáculo ao bem estar dos 10% que são os restantes 90% a consumirem – por menos que seja – recursos naturais. A produção de um quilo de carne bovina, por exemplo, consome aproximadamente 15.000 litros por quilo. O arroz, por exemplo, consome aproximadamente 2.500 litros de água por quilo.

Muitos perceberam que aquela tragédia havida na eurásia no século XIV – belamente tratada no Decamerão – foi, ao depois, uma das condições de desenvolvimento da região, mesmo que as perdas humanas – força de trabalho e conhecimentos – tenham sido muitas e quase indistintas entre classes sociais.

Hoje, objetivamente, a existência de gente demais no mundo, mesmo que indigentes com níveis de consumo relativamente baixos, é um obstáculo à pretensão dos mais ricos à sua sobrevida em condições ótimas, o que inclui qualidade sanitária e segurança alimentar. Esse obstáculo sobrepõe-se à aparente vantagem que seria a potencialidade consumidora dessas massas indigentes. Elas não interessam como mercados, enfim.

Há momentos na história em que o excedente humano não serve nem interessa aos de cima nem como escravos a custo de pouca comida e alojamento precário. Ao reverso, este excedente está a ocupar e consumir recursos daquelas zonas que os 10% comumente denominam santuários, que são tanto reservas, quanto rotas de fugas para hipóteses de catástrofes de grandes dimensões.

Com a Patagônia argentina tem-se um perfeito exemplo. Há um projeto sistemático para seu esvaziamento das populações originárias locais e de preferência que os indígenas pereçam todos na retirada, porque tampouco são desejados a povoarem as periferias de Buenos Aires, Rosário ou Córdoba. Esse desejo – que é o desejo de expurgo físico dos pobres – às vezes assume contornos místicos de refundação, como na novela Kalki, de Gore Vidal. Nestas visões a purga não é propriamente dos pobres, mas de todos que não preencham os requisitos para serem os refundadores de uma nova e purificada humanidade.

A América do Sul e a África sofrerão processos de extermínio massivo dos pobres e indigentes que não se articulam aos subsistemas necessários à boa vida dos mais ricos. Há uma superpopulação de escravos inúteis, na visão do 01% e de seus minions, e o tratamento destinado à inutilidade é a purga.

O 0,1% sabe muito bem que não se mata tanta gente à bala, nem mesmo mandando os destinados à morte cuidarem da tarefa de se matarem reciprocamente, como se faz em África, acho eu que por mera diversão. Fosse isso possível, os japoneses o teriam realizado na China, convém lembrar. Tampouco se usam armas nucleares, coisa detestada pelo 0,1% pelo que têm de nada seletivas.

O que mata com mais eficácia, massivamente e com bons níveis de seletividade social, são água suja e bactérias. Não à toa o método que uma breve observação permite perceber que é o eleito para África. Somados a má nutrição, matam muito e relativamente rápido e permitem que se defendam eficazmente os que não estão marcados para a eliminação. Este projeto será aplicado na América do Sul, apenas é irresponsável prever datas…

 

 

 

 

A canção de amor de J. Alfred Prufrock.


“E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola.”

T. S. Eliot.

White Cup and Saucer, 1864, Henri Fantin-Latour oil on canvas, 19 x 28 cm.

Então no último dia de janeiro de um hoje longínquo 2015 eu publiquei no Facebook o trecho do poema de T. S. Eliot, e a pintura de Henri Fantin-Latour.
Hoje eu não consigo pensar num lugar pior para ter feito a publicação. Mas também não deixo de achar bom que ele, o Facebook, me recorde as postagens antigas.

Brasil a caminho de ser Líbia.

A regressão lenta e gradual da hegemonia estadunidense é o processo mais perigoso que já viveu a humanidade. São comuns as comparações entre os impérios romano e estadunidense, no que têm de paralelismos nas suas criações, apogeus e fases de declínio, mas o que se prefigura agora é diferente, para além das diferenças óbvias que há entre processos históricos separados por dois mil anos.

A exacerbação retórica contra os países malvados e perigosos, a russofobia que não teme o ridículo profundo, a provocação irracional e inútil à China, a multiplicação de ações de desestabilização política de países antes soberanos, tudo isso são sintomas do declínio. Não alinho entre os sintomas as múltiplas guerras, porque estas são inerciais e funcionais aos interesses do complexo industrial-militar; são, enfim, bons negócios.

As evidências são indisfarçáveis. As mais significativas delas são a histeria e o primarismo retórico, coisas de quem está com pressa e algum medo. O controle do médio oriente, que já foi absoluto, apresenta fraturas, depois que a tentativa de inviabilizar a Síria como país soberano fracassou. A rearticulação de forças por meio da aliança israelo-saudita não parece muito tendente ao sucesso.

A tentativa de sabotar as rotas comerciais clássicas entre a Europa e a China, por meio da guerra no Afeganistão, está em vias de exaurir-se e provar-se afinal inútil. O ensaio de tentativa de desestabilizar o sudeste asiático, para criar dificuldades para a China, será travado no nascedouro pela China. Afinal, esta última tem condições de reação e inicia os movimentos do que é a maior ameaça à hegemonia estadunidense: a compra de óleo por outros meios que não o dólar norte-americano.

O dólar norte-americano é meio de troca e reserva de valor universal. Enfim, uma moeda que é também um ativo, porque lastreada em petróleo e urânio enriquecido. Isso permite aos EUA criarem dinheiro muito à vontade e exportarem inflação, ao tempo em que importam bens e serviços. É a causa mais remota da situação peculiar dos EUA, que podem ser ricos mesmo quando perdem capacidade industrial e sustentam imensos défices.

Seria estúpido e irresponsável tentar prever datas, ou um cronograma definido das etapas deste processo. Contudo, é claro que a capacidade dos EUA de intervir e desestabilizar países e regiões, para instaurar o caos funcional à dominação, reduz-se muito nas áreas principais que são a Ásia, as estepes e o oriente próximo. As articulações entre China, Rússia e, em menor intensidade, destes com o Irã e pontualmente com outros países, minaram o poder de interferência na Ásia.

Que a Ásia, mais especificamente o sudeste asiático, seria esfera de influência da China, é algo trivial. Porém, que uma tentativa de destruição de um país, como na Síria, por meio de guerra por procuração financiada pela Arábia Saudita, tenha dado errado, é algo novo. O mesmo pode-se dizer da tentativa de destruição do Iraque que, ao contrário das expectativas iniciais, conseguiu reorganizar-se e alinhar-se ao Irã.

Essa modalidade de intervenção que se tem feito é, por um lado, a mais selvagem possível e, por outro, a mais rentável para os dois setores mais poderosos do império: as finanças e a indústria bélica. Para atacar um país soberano rico em recursos minerais – ou estrategicamente localizado – inicia-se por fomentar revoltas internas que, para qualquer observador atento, não fazem qualquer sentido, dada a desproporção entre a realidade e do que se reclama. Agentes infiltrados dão conta desta tarefa de alimentar com dinheiro e narrativa pronta as revoltas difusas e histéricas.

Chega-se a um ponto onde as fraturas sociais e de grupos étnicos ou de interesses são irreversíveis. É a fase da guerra civil, aberta ou fragmentada e localizada. Neste ponto, a imprensa corporativa, articulada intimamente aos interesses imperiais, começa a repercutir seletivamente episódios de violência, com mentiras se for necessário. A imprensa corporativa não tem quaisquer escrúpulos em mentir, isto deve ser repetido sempre que possível.

O conflito será alimentado com dinheiro e armas e com mercenários, se for necessário. Nesta altura, as estruturas sociais, estatais e de serviços privados estarão em ruínas, a magnificar a precariedade das vidas das pessoas. Deste ponto em diante, duas opções apresentam-se: 1 – deixar o processo degenerativo seguir adiante com os elementos originais desencadeadores, até que o antes país torne-se um nada; ou 2 – intervir militarmente com o nobre propósito de cessar a carnificina que o próprio interventor criou.

A escolha entre as duas linhas finais de atuação acima mencionadas dependerá de muitas variáveis, mas a mais importante certamente é ter ou não o país alvo grandes riquezas minerais. Caso tenha, é provável que sofra o ataque militar e depois experimente a ocupação por contingentes mercenários. Isto é muito lucrativo para o imperialismo, pois destrói um país e paga a guerra contra ele com os próprios recursos dele.

É algo esplêndido, como um produtor de bens ou serviços conseguir criar a própria demanda, como obrigar o outro a consumir o que não quis a esgotar suas economias. E, depois, ainda se empresta dinheiro a juros para o arruinado reerguer-se um pouco, para arruinar-se novamente mais à frente. Convenhamos, é um negócio muito bom.

Pois bem, o Brasil é riquíssimo em recursos minerais, nomeadamente hidrocarbonetos e minérios de ferro e bauxita, além de água doce. O declínio da influência e da capacidade de desestabilizar dos EUA, na Ásia e no oriente próximo fará com que se voltem ao quintal de sempre: a América do Sul. Aqui, ainda contam com o servilismo das classes alta e média alta colonizadas culturalmente e sofredoras de um patético complexo de inferioridade.

O processo de destruição de soberania e alienação de riquezas nacionais, que começou com o afastamento da presidenta Dilma, a partir de um compromisso entre a imprensa e as corporações estatais judiciais e com a participação relevante das classes médias, não culminará em situação estável e pacífica. Mesmo que não culmine com um contragolpe ou uma revolução popular, é certo que paz e estabilidade não são situações prováveis nos curto e médio prazos.

A degradação das condições de vida das classes média baixa, baixa e dos totalmente excluídos será muito rápida. É pueril achar-se que as insatisfações resultantes serão canalizadas de forma organizada por tal ou qual vertente político-ideológica. O controle social por meio de discurso mediático, neste estágio, será ineficaz. O controle terá de ser mediante violência física, a cargos das polícias e de serviços privados de segurança. Essa modalidade, porém, tem a desvantagem de retroalimentar a violência…

A partir de um certo de nível de conflituosidade e de instabilidade política – que provavelmente assumirá a forma de quedas sucessivas de governos e luta brutal entre as corporações públicas pelos recursos minguantes – estão dadas as condições para a intervenção do império. Convém apontar que, para o império, o caos é funcional ao saque de riquezas e este saque é mais vantajoso que um mercado consumidor mais ou menos organizado e pujante.

Após se terem apropriado das estruturas de produção de petróleo e gás, de extração de minérios, de produção de grãos e de acumulação de águas os agentes do império terão de proteger militarmente estas estruturas. Inicia-se a exceção formal e material à soberania neste ponto, com as autorizações de atividades bélicas abertas em solo nacional, ou por meio de mercenários de segurança privada.

Os três setores principais do império ganham enormemente com esta configuração. O complexo industrial militar vende seus equipamentos e seus serviços, o setor petroleiro saqueia o país parasitado sem lhe pagar nada e o setor financeiro oferece crédito a todos, bem como serviços de lavagem de dinheiros. E o pais destruído paga tudo, ou seja, paga pela própria destruição, e precipita-se no caos.

Este não é um cenário tão remoto para o Brasil, como gostam de pensar os que não anteciparam nada do que hoje vive-se…

 

 

 

 

O caos é uma face visível da superestrutura.

O processo político brasileiro atual não oferece a previsibilidade que os costumeiros analistas tentam apreender e expor. Ele só tem alguma previsibilidade no âmbito macro, se olhadas as coisas mais ao de longe, mirando-se as linhas mais gerais, nos seus aspectos geopolíticos, ou seja, nas articulações com interesses maiores e externos.

No plano micro, aquele das jogadas e movimentos cotidianos, oferece-se o caos e um nível elevado de imprevisibilidade. Isso mostra-se claramente no uso constante da expressão blindagem e na surpresa quando se verifica o levantamento desta blindagem relativamente a certas personagens, que são deixadas a arderem nas fogueiras da inquisição moralista pela imprensa e pelo subsistema judicial.

O interessante, realmente, é a surpresa tida com o efeito guerra total a que se chegou, presentemente. Esse efeito não se pode dizer resultado de um planejamento prévio meticuloso que antevia todas as fases do processo com boa definição e ordenação. Mas, ele é um efeito necessário da forma de domínio estrutural que há. Neste sentido, o caos – e pouco importa qualificá-lo aparente ou não – é produto da superestrutura e previsível sua instalação.

Que haveria caos era esperado, tanto porque os movimentos golpistas desestabilizariam um país grande e complexo, quanto porque o caos em si é um elemento estratégico. Mas, os movimentos intracaóticos, táticos e estratégicos, não tem um nível de previsibilidade que permita análises micro para além da narrativa do já acontecido.

É preciso identificar e isolar os grandes objetivos que subjazem ao movimento golpista no Brasil, para não se cair na mera narrativa do cotidiano, com a identificação de um e outro ponto tático: alienações de soberania e de riquezas naturais. Esses são os movimentos por trás de toda a dinâmica posta em marcha, em que o caos interno da guerra de todos contra todos é a face visível.

Os agentes locais da desestabilização do país – não apenas das formas democráticas – concorrem por poder e dinheiro, duas coisas que veem, ou de fora, ou do Estado brasileiro, ou das outrora grandes corporações privadas nacionais. Era previsível que esta concorrência se acirrasse a ponto de atingir a guerra ampla e, em alguns casos, a autofagia por erros táticos e estratégicos comuns nos processos demasiado vertiginosos.

Notadamente nas corporações públicas, percebe-se avidez crematística sem precedentes, exatamente no momento em que o Estado tende a reduzir-se, de forma geral, e em que reduz-se drasticamente a arrecadação, especificamente, o que é uma consequência obvia do ambiente recessivo. O nível de apropriação financeira a que chegou o subsistema judicial é insustentável e o grupo deve percebe-lo, o que talvez explique a lógica de levar ao máximo o mais rápido possível.

A obtenção de poderes formais ampliados é condição necessária do aumento da apropriação dos recursos do Estado. Para tanto, foram necessárias bodas com a imprensa corporativa, que é o cônjuge mais poderoso, embora se esforce para não o evidenciar. Desse casamento surgiu o slogan moralizante fundador: na política todos são iguais e sujos. Era necessário instalar esse moralismo esquizofrênico.

Todavia, convém lembrar que tudo isso é política e, assim, não se mata a política, nem se a refunda redimida de pecados. Apenas promove-se a troca dos ocupantes de certos postos ou se tenta a instalação do Estado corporativo, que atendia por outros nomes em tempos pretéritos. E a habilidade política dos políticos em sentido estrito tende a ser superior à dos demais agentes que se aventuram na atividade, sem antes terem pedido votos.

Fora de dúvidas neste panorama é que a dinâmica caótica seguirá como força condutora do processo por mais tempo e não parece ser pouco. E que, assim postas as coisas, os objetivos de alienação de soberania e de riquezas serão atingidos.

 

As construções do interdito e do menos ruim: Le Pen e Macron.

O financismo globalista venceu as eleições presidenciais francesas por conta da precisa atuação da imprensa corporativa, que se alinhou explicitamente ao candidato Emmanuel Macron e usou as estratégias corretas à vista do público destinatário de sua narrativa. Chamaram-no centrista e isto foi ponto central.

De certa forma, a disputa concentrada no campo direitista gerou uma necessidade de se renovar o discurso favorável ao pólo financista globalista, pois a situação é diversa da oposição com a esquerda – seja a real, seja a fictícia. Criou-se, então, um banqueiro egresso da casa Rothschild e fermentado por think tanks direitistas centrista, por mais sem sentido que isso possa parecer a quantos informem-se razoavelmente.

Mas a criação do centrista foi exitosa, por um lado, e fez sentido, por outro. Teve êxito porque delimitou a oposição formal à candidata rotulada extremista. E fez sentido porque o termo centrista referiu-se apenas à pauta de costumes, esquecendo-se totalmente qualquer significação sócio-econômica que pudesse ter.

O centrismo e o extremismo foram definidos em termos de costumes e direitos civis. A imprensa evita a todo custo aproximar-se de assuntos concernentes a distribuição de riquezas e a soberania, que são marginalizados como relíquias de tempos passados. Quando trata disso, é superficialmente e a partir do manual de lugares-comuns do liberalismo triunfante e axiomático, aquele dos termos eficácia, modernidade, reforma e tantas outras tolices semelhantes, que nada significam além de compressão social.

O extremista – de esquerda ou direita – é o banido, o interditado e maldito, em relação a que todo o resto é preferível. Muitas vezes, o interdito é construído por justaposição de adjetivos que já são anacrônicos à vista do que atualmente representa. A candidata Marine Le Pen, muito mais que fascista, no sentido adequado do termo – sentido que remete à história – é a representante da insatisfação dos pobres de direita. Ela é o nacionalismo de direita, enfim, embora em formato diferente do gaulismo.

Mas ela foi demonizada, como era previsível, e as eleições rumaram para uma situação muito fácil para o vencedor. Contra o proibido tudo é válido, mesmo que o outro perceba-se como apenas o menos ruim. Ou seja, há percepções relativas que têm um alcance pre definido, que não podem ir a fundo.

Neste caso francês, o dito acima aplica-se às eleições presidenciais, apenas. Não se aplica ao governo que será constituído depois das eleições legislativas, nem às convulsões que haverá com a aplicação das reformas liberais precarizantes das situações dos mais pobres.

A situação que criou a insatisfação por trás do amplo apoio obtido por Le Pen não será revertida pelas políticas prometidas por Macron. Antes, será amplificada, como é previsível na medida em que das causas provém as consequências. E, passadas as eleições, a narrativa usada no embate não serve de remédio para a realidade cotidiana.

 

 

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