Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Um texto (Page 2 of 10)

Talharim com molho de salmão fumado e camarões.

Quando há tempo, gosto de gastá-lo da forma mais trivial possível: no mercado, a perambular e a pegar este e aquele produto, ler de que se compõe, de onde veio. Coisas de quem tem que perambular em uma grande cidade pequena desprovida de uma livraria…

Eis que me deparei com uma embalagem bem simpática de talharim, uma caixa em papel cartão, de bom gosto e simples. Vi que é feito em Recife, o que me surpreendeu um pouco pois não sabia dessa indústria de massas relativamente caras e supostamente de qualidade.

Vi, na lateral da caixinha, que o talharim era koscher, o que me interessou porque o rabino pode ser mais eficaz que a vigilância sanitária e porque revela que visam a clientela usualmente mais exigente. Peguei da caixa e segui a andar e a observá-la. Na outra lateral, havia uma receita, coisa que geralmente pouco me interessa. Mas, essa interessou-me, não para a reproduzir, mas para fazer algo parecido.

Era de um molho com salmão fumado, natas, mostarda em grãos e pimenta do reino moída. O salmão fumado é, ao mesmo tempo, delicado e profundamente saboroso, pelo que se pode usar pouco com grandes resultados. Pensei que esta riqueza de sabor acrescida de outros também muito marcantes, como os da mostarda em grãos e da pimenta podia resultar algo muito pesado. Mesmo que estejamos, hoje, com temperaturas agradabilíssimas à volta de 21º e sejua domingo, não convém uma avalanche de gostos pesados.

Resolvi trocar as natas por creme de leite leve, suprimir a pimenta do reino, trocar a mostarda em grãos por mostarda cremosa de Dijon e colocar o sumo de meia lima da Pérsia, profundamente aromático e enaltecedor do sabor fumado do salmão. E resolvi, ainda, acrescentar um pouco de camarões médios previamente cozidos na água e pouquíssimo sal. Os camarões assim cozidos ficam delicadíssimos em termos gustativos e conseguem impor seu sabor ao molho mesmo com pouca cocção.

Tomei uma caçarola e pus um pouco de azeite e sobre ele quatro dentes de alho e um pouco de cebolinha picadinhos. Fechei a panela e deixei em fogo baixo por quase um minuto. A idéia é cozinhar o alho e a cebolinha, mais que os refogar. Depois, o conteúdo de uma lata de creme de leite magro – 300 gramas – e uma colher de chá bem cheia de mostrada de Dijon. Isso fica a tomar fogo por mais alguns minutos, até levantar fervura e sempre mechendo até engrossar.

Usei duzentos gramas de salmão fumado, que são suficientes para três pessoas, ainda bem porque eis um ingrediente caríssimo por estas plagas. Cortei as lâminas de salmão em quadradinhos pequenos, de menos de um centímetro de lado. Cortei também os camarões em três partes, cada um, já sem cabeças e rabos e descascados.

Foram para a panela os pedacinhos de salmão, de camarão e o sumo de meia lima da Pérsia. Meche-se sempre, sem parar e por pouco tempo, já que tanto peixe, quanto crustáceo já estão cozidos, um em fumaça, outro em água, e precisam de pouco tempo para contaminar tudo com seus sabores.

Tudo pronto, põe-se o talharim no prato, espalha-se o molho por cima e polvilha-se com pouco queijo parmesão ralado, que não chegará a derreter, o que somente ocorre se o quijo for muito ordinário. Por cima de tudo, pedacinhos bem pequenos de tomates secos. Acompanhamos com um chileno de uvas Merlot, pouco mais que razoável, mas resultou fantástico.

Uma conversa com Machado. Por Alcides Moreira da Gama.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

O amigo e mestre Andrei solicitou-me escrever algo sobre Machado de Assis. Nos tratamos mutuamente assim: mestre. Mas o discípulo sou eu. É um desafio e tanto. E, sinceramente, não sei se sou capaz. Mas, mesmo cônscio disso, vá lá, aceitei o desafio.

O que dizer sobre Machado? O Brasil, apesar de tudo, é um país em que, de quando em quando, surgem agradáveis surpresas. Muitos cidadãos desprovidos de condições mínimas para galgar uma vida digna conseguem vencer barreiras dificílimas para chegarem a um patamar social razoável.

Apenas para citar dois exemplos: todos conhecem a história de Lula, criança saída dos confins do agreste pernambucano, torneiro mecânico, semialfabetizado, como pejorativamente dizem, chegou a ser Presidente da República, deixando o cargo com uma popularidade excepcional; meu pai, sem a mínima condição social quando criança, sendo em algumas ocasiões rejeitado em ambientes públicos por conta de sua paupérrima indumentária, estudava em bancos de praça, pois não havia energia em casa, chegou a passar em vários concursos públicos, alguns na primeira colocação, logrando êxito também no vestibular para Letras, tendo abandonado o curso.

Por que cito esses exemplos? Machado foi desses sujeitos. Mulato, nascido em sociedade ainda escravagista, gago, epilético, fez o que fez. Verdadeiras obras primas da literatura brasileira, elegantemente bem escritas. Ele, agora do outro lado, assim com Brás Cubas, deve rir-se de nós, por tentar querer desvendar sua vida depois de morto.

Permita-me, Machado, indagar-lhe o porquê de tanta ironia nas suas obras. Parece-me que ninguém escapa de suas tintas. Percebo que é homem letrado e muito bem informado dos fatos políticos de sua época, mas não consigo captar se você – permita-me tratar-lhe assim – é republicano ou monarquista, se defende a abolição ou não.

É conhecedor das Escrituras, mas não se mostra se é ateu ou não. Talvez você me responda que são apenas obras de arte e que não retratam realmente a sua vida particular. Mas, eu na minha insignificância, insisto em dizer que os autores das obras de arte sempre querem transmitir algo. E você continuará rindo, afirmando que quis dizer sim algo. Na verdade, muitas coisas.

O nosso problema, Machado, é que nós, que não somos gênio, queremos adentrar na mente de um, ainda mais quando ele está morto. Queremos chegar aos seus pensamentos, suas ideias, por meio de suas obras. E aí alguns chegaram a várias conclusões sobre sua vida particular. E você responderia que se é particular não era para ser descoberta. Mais uma ironia de sua parte.

Por que não teve filhos, Machado? Você responderia que sua vida com Carolina foi a melhor vivida. Os críticos literários chegaram-lhe a diagnosticar infertilidade, e você continuará rindo de nós, indagando-nos se isso faria diferença. Afinal, revista de fuxico é do tempo de vocês e não da minha época.

Mas, Machado, falando nisso, se você estivesse entre nós hoje, o que faria? Você responderia que não faria nada, pois suas obras foram completas e continuam atuais.

Machado, isso não seria uma ponta de orgulho de sua parte, assim como ocorreu com Lalau? E você responderia que o orgulho de Lalau sou eu quem o afirma. De mais a mais, aqui do outro lado não existe orgulho. Aprendi isso com Brás Cubas.

A propósito, diria-me ele, curioso leitor Alcides, lembro-lhe a dedicatória de Brás: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Machado, a curiosidade que você nos aguça em Dom Casmurro é imensa. Bentinho foi traído ou não por Capitu? Responder-me-ia: todos os homens têm medo de serem traídos, mais que as mulheres. Mas não lhe responderei a pergunta, leia mais o livro.

E, por fim, arremato: Machado, por que tenho a sensação de pessimismo em suas obras? Porque na sociedade em que vivemos tudo parece tão belo e perfeito. E ele, como resposta, mostrar-me-ia trecho do último capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

 

Machado de Assis, a crítica e o fetiche biográfico.

Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.

A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.

Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.

Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.

O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.

Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.

Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.

Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.

Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.

O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.

É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.

O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade  cultivados com imensa força.

O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.

 Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.

A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.

Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.

O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.

O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.

O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.

Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.

É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.

Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.

De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.

É profudamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.

Bacalhau de forno, com batatas, alhos e cebola.

Não falo dos erros nas aventuras culinárias de finais de semana, por razões claras. Seria desonesto escrever sobre um prato que deu errado, embora não seja desonesto escrever por escrever, como se faz um exercício, sobre o que resultou saboroso.

Os dois últimos bacalhaus não chegaram ao desastre, mas resultaram ruins. Uma vez, o sal foi-se embora todo, outra ficou em demasia. Outra, ainda, resultou em batatas mal cozidas, algo realmente desagradável ao paladar.

Mas, algo simples como bacalhau com quase todos os úteis ao forno é de se acertar um dia. Hoje, resultou espetacular, o bacalhau dessalgado na medida certa, com pouco menos que 24 horas de molho em água trocada somente duas vezes, as batatas na medida correta de cocção.

Comprei bacalhau em lascas, o que significa que o peixe é um pouco mais que ordinário, porque o bom compra-se em lombos ou postas. Mas, para o propósito de cozê-lo ao forno com bastante azeite de qualidade, cebolas, alhos, cebolinhas e batatas, até que serve.

Não lembro quanto tempo deixei as batatas na água fervente, mas fiquei a provar sua maciez com uma faca e retirei-as da panela no ponto certo para fatiá-las e submetê-las a mais trinta minutos de forno a médio lume.

Deitei as lascas de bacalhau dessalgado numa piscina de azeite, pelo que saiu de um banho de água para um de olívico óleo. O azeite impregna o bacalhau mesmo que o banhe apenas por duas horas. Na assadeira em que estavam o peixe e o azeite pus alecrim e algumas folhas de louro. Surpreendente é que pus na quantidade certa, ou seja, pouco.

Alecrim não é como alho e cebolinha, que muito dificilmente são muitos em qualquer quantidade, então convém ter atenção. Os que podem abundar, abundaram: dois molhos de cebolinha cortados em rodelinhas e dez dentes de alho inteiros e uma só cebola cortada de forma caótica. Depois, as batatas cortadas em rodelas, com casca ou sem ela, na medida da vontade das cascas de se soltarem ou não.

Assadeira ao forno médio por poucos trinta minutos; arroz branco e, heresia, vinho tinto argentino.

Brasil: República que não é, democracia sem povo e estado sem direito.

A história do Brasil teve poucos momentos de poder político efetivamente escolhido democraticamente. O que se chama democracia representativa – abstraindo-se seu caráter meramente formal – vigorou de 1946 a 1964 e, depois, de 1989 até o presente.

Não incluo a república velha porque aquilo não era propriamente democracia, dadas as barreiras a impedirem a capacidade eleitoral ativa. Muito pouca gente votava, eis a questão.

Observa-se, nestes dois períodos democráticos, uma viragem muito interessante dos escolhidos para atenderem a interesses da maioria dos escolhedores. Essas eleições no sentido de se beneficiar número maior de pessoas não significaram necessariamente escolhas à esquerda. Significaram, basicamente, escolhas a rejeitarem duas coisas: o entreguismo e o rentismo.

Nenhum presidente brasileiro nos dezoito anos antes do golpe de 1964 e nestes vinte e quatro depois de 1989 foi de esquerda, no sentido próprio de fazer drástica redução da desigualdade na apropriação das riquezas produzidas. Por outro lado, nenhum, à exceção de Fernando Henrique Cardoso, foi entreguista, nem mesmo Jânio ou Collor, talvez por lhes ter faltado tempo.

Todavia, o pouco que se experimentou de democracia formal nestes dois períodos foi suficiente para revelar sistema profundamente desfuncional. A democracia, por pouco de ameaça que represente aos poderes reais numa sociedade massificada, sempre foi assumida pelo 01% como algo terrível. E, por outro lado, sempre teve significados cambiantes para os estratos médios que vivem das migalhas do 01% e têm tempo para se desinstruir cotidianamente.

Tanto a tenacidade, quanto o êxito obtido por este esforço do 01% são coisas merecedoras de estudo, no caso brasileiro. Claro que parte do êxito de termos democracia deformada advem dela ter sido desenhada com pontos de fuga sob medida para se evitarem seus aperfeiçoamentos e manutenção. O modelo jurídico do estado brasileiro é essencialmente anti-democrático mas com eleições.

Dois fenômenos, cada um capitaneado por certo grupo de interesses, anunciam a erosão que pode levar à ruína do que nasceu para viver pouco. De um lado, dentro do próprio estado, há corporações que não dão contas a ninguém, agem em benefício próprio e dos seus mandatários e detém poder formal e material. São as magistraturas judicial e do ministério público, entidades destituídas de legitimidade democrática que agem em clara exorbitância de seus poderes.

Essas corporações são representantes do conservantismo, papel que desempenham até desinteressadamente em alguns casos, por inércia mesmo, isso que de tão importante é reiteradamente negado. Existe inércia social, assim como existe acaso, imprevisão e impossibilidade de controle.

Além dos componentes destas corporações serem recrutados maioritariamente nas classes médias-altas, eles sentem-se devedores de ninguém, porque ignoram que nascer em certo estrato, numa sociedade profundamente desigual, já é dever a todos os demais, acima e abaixo. É interesaante notar que a dinâmica corporativa estatal é tão forte que um e outro egresso de classes mais baixas rapidamente torna-se mais conservador que o conservadorismo, no que ajudam muito o desejo de disfarçar-se e de mostrar-se mais realista que o rei.

Numa democracia formal, em que poderes legislativo e executivo são eleitos por sufrágio semi-universal e que proclama princípio de igualdade ante a lei, ser conservador é precisamente negar aplicação às leis, conforme caprichos mal explicados e momentâneos: precisamente o que se tem visto fazerem o judicial e o ministério público, no Brasil.

A resistência do 01% e de partes das classes médias volta-se contra o império da lei em sentidos formal e material e contra o princípio de igualdade de todos em face da lei. Obviamente, seus instrumentos para violar os dois princípios são as corporações que lidam com aplicação de leis, que se convertem em fazedores de leis caso a caso. Aparente paradoxo…

Fosse o Brasil sociedade com mais que meros quinhentos anos de história, a violação das regras por quem as deve aplicar assustaria as pessoas. Fôssemos mais honestos e menos hipócritas, defenderíamos ditadura aberta, a rejeitar os disfarces e a farsa dos poderes contidos em limites bem delimitados. Mas, somos o que somos, uma sociedade que percebeu mais que em qualquer outra parte a utilidade da mentira.

Daí que temos textos a dizerem haver poders harmônicos e com atribuições específicas, quando na verdade há sistema com pontos de escape muito bem estabelecidos para violar-se a democracia sob aparência de a exercer.

De outra banda, a erosão da democracia formal advem de manifestações que supostamente a realizam à letra. Grupos que à origem nada têm a ver com política entram no jogo político a tentar moldá-lo aos seus preconceitos morais e religiosos. Subvertem o jogo democrático porque instilam no debate público coisas que somente se relacionam com o privado.

O privado somente interessa ao público no que tange a defender liberdades fundamentais que não devem ser sacrificadas a bem de supostos interesses maiores. A entrada no jogo político de grupos cristãos organizados em torno a regras de cunho religioso subverte a essencia do estado de direito que protege o indivíduo desse tipo de prescrição a que somente se adere por vontade própria.

O estado supostamente defende as liberdades de culto, de ir e vir, de casar-se ou não e com quem se quiser, de trasladar patrimônio, de não pagar tributos para subvencionar cultos religiosos, enfim, um plexo mínimo de coisas com que a maioria pode estar de acordo. Ao entrar em cena a pressão política organizada dos cristão, o jogo sai das regras porque as opções condicionam-se por variáveis que não se podem considerar comuns a todos.

Com relação a liberdades civis, o debate tende a tornar-se o mais estúpido possível e percebe-se a insinuação da similitude do religioso ao científico. Essa similitude existe e evidencia que ambos devem ser rejeitados. Não se cuida de religião nem de ciência quando o estado garante às pessoas que se unam a partir de um contrato que prevê várias coisas, entre elas a divisão e a transmissão de patrimônio: cuida-se da liberdade de unir-se e nisso não importam religião nem ciência.

É claro que o avanço político dos grupos de pressão cristãos no Brasil é questão de poder. As religiosidades de matriz greco-judáicas são todas bem talhadas para o jogo de poder, porque são normativas e esquematizadas na lógica do código e do tribunal. Poucas coisas são mais parecidas que uma religião greco-judáica e um qualquer poder judicial. No mundo inspirado pela tragédia do encontro de semitas e gregos, o direito e a religião são faces de um mesmo plano.

Massas e retrocesso.

Não citarei Ortega y Gasset, Tarde, Debord e outros mais que me vêm à cabeça agora e a propósito dessa puerilidade que é a crença na impossibilidade de retrocessos. O que os autores disseram, evidentemente, é citado implicitamente; sempre é assim quando se escreve: citações se fazem a todo tempo.

As massas perdem-se no aprofundamento de suas massificações, o que não tem a ver, imediatamente, com suas situações financeiras, mas que terá sim, mais tarde ou cedo, implicações deste tipo. Quero fazer a advertência nunca demasiada de que massa não é sinônimo de pobre; é algo que tem com espírito de manada e com negação da história e da vida pública, basicamente.

Há também banqueiros, para recorrer ao exemplo máximo do pertencente ao máximo grupo dominante, que são massa, porque acreditam no que fazem, ou seja, no seu contributo à massificação, e não acreditam, por outro lado, que possam ser tragados nos processos enlouquecidos que sempre culminam com catarses de violência e desgregação.

O senso comum acha que o mundo é dado, que ele, como está aí, foi dado, surgido de um nada ou, no máximo, que é resultado da gestão de meia dúzia de fatores arranjados e rearranjados por alguns vistuosos que têm total controle da gestão. Acha e vive conforme acha, e grita aqui e acolá contra alguma bobagem o grito que lhe foi ensinado ou permitido.

Acreditar que tudo aí está porque assim deve ser é negar a história e, de certa forma, pensar a partir de um minúsculo sistema causal de curto alcance. Sisteminha que considera algumas combinações possíveis e serve-se de dados embaralhados e nebulosos de pouco tempo. É, diria, um quase não-pensar, pelo tanto de negativa de potencialidades que implica. Nem resulta em criatividade, por um lado, nem é uma postura mental ao menos conservadora.

O retrocesso sempre foi discutido. E, para que se o discuta, é preciso ter em mente alguma noção de avanço ou, pelo menos, aceitá-la. Porque, se avanços não existem, se é uma idéia inválida, a discussão perde todo o sentido. Paradoxalmente, a idéia de avanço é vastamente aceita e difundida ao tempo em que o retrocesso, ou é negado, ou simplesmente não cogitado.

Ora, se se aceita que a história avança nos seus aspectos sensíveis – melhora da qualidade de vida, aumento da disponibilidade de bens, aumento de paz social, redução de atritos sociais, redução de violências – é necessário admitir que o retrocesso é possível, e mais que está sempre à espreita. O avanço pressupõe qualquer base comparativa e as comparações podem evidenciar reduções qualitativas e quantitativas de algum dos termos comparados.

Admitir o avanço e o retrocesso significa reconhecer que a vida faz-se de atos sucessivos, encadeados não necessariamente segundo alguma norma de causalidade, mas encadeados e sucessivos. A vida coletiva, pelo menos, pode ser percebida assim, embora a vida pessoal, de si para si, puramente subjetiva, se essa dissociação absoluta for possível, atenda a outra lógica.

Ora, se os fatos da vida coletiva encadeiam-se e sucedem-se está claro que o processo pode andar em qualquer direção, mesmo que não ande para trás, evidentemente, no sentido de se desfazer e voltar no tempo. Não há retorno no tempo, por sedutora que a idéia possa ser, mas há retrocesso no estágio de união social dos grupos humanos, por perda de vitalidade e de referências históricas.

Hoje, especificamente, vive-se uma crise financeira na Europa que é um retrocesso evidente no processo de construção de sociedades ricas e relativamente pacíficas. Ele é percebido materialmente nos endividamentos, no aumento da criminalidade, na diminuição das liberdades, no terror de Estado, mas os sentidos captam os sintomas ao mesmo tempo em que a desrazão não percebe o fluxo do rio. A desrazão está boiando na superfície do rio, sem saber mesmo se é rio ou mar e se sopra vento…

Um dos aspectos mais evidentes da massificação é a negação do espaço público, ou seja, a negação da política. Tenho para mim que esse ponto específico foi objeto de ações deliberadas de certos grupos dominantes, que perceberam a boa acolhida que a idéia teria nas massas. Coaduna-se a negação da política com a crença no mundo dado e com a negação do retrocesso. A política tornou-se algo inútil e reservada aos mesmos profissionais de sempre porque, afinal, tudo é e será conforme tenha que ser.

Aliás, as coisas são e serão conforme uma classe de especialistas – iniciados seria possível, também – dispuser, em atenção a métodos de gestão previamente dados e condicionados. Ou seja, o pensamento massificado é dócil à noção de falta de opções, porque já aceitou a de inutilidade do âmbito político propriamente dito, aquele que age no espaço ideológico e histórico.

Assim, o retrocesso bate nas portas de a, b e c, que o sentem nitidamente mas não no percebem como coisa histórica porque foram apagados de qualquer possibilidade de pensar que há uma história. São pontos que não se relacionam senão para formar um pequeno plano. E sempre se relacionam os poucos pontos para formar vários pequenos planos, entrelaçados como em uma novela cujo enredo vai do nascer do dia ao pôs do sol.

O pensamento massificado não consegue, nem dissociar os pequenos planos superpostos do drama cotidiano, nem associar todos os pontos que sugerem um enorme plano. Fica-se pela metade, no rancor de conversa de café e no alívio de poder gritar um pouco e ver a novela à noite. O espetáculo da realidade leva o homem-massa espectador a saber-se platéia somente e a aspirar ao impossível protagonismo a partir de um grito desde a platéia.

É situação como se houvesse um consenso sobre a existência de um consenso. Uma imagem refletida em dois espelhos perfeitamente alinhados, em que qualquer desvio é impossível e um plano superpõe-se a outro. Está ruim porque está ruim… e pronto.

Penso, nesses termos, em algo do Brasil: a discussão da evidente invalidade da lei de auto-anistia passada pelo regime ditatorial, em 1979. Tecnicamente, a lei é de impossível coexistência com a constituição passada em 1988, mas os disfarces mantém-se. Historicamente e politicamente, porém, a coisa é mais dramática que juridicamente.

Nos âmbitos hitórico e político, a questão é quase totalmente obstada pelo pensamento massificado. Ele não somente levou o senso comum a perguntar-se para quê história – que ainda seria uma pergunta, embora já respondida – como o fez não pensar em história, nem mesmo sob qualquer ótica utilitarista de superfície. Ou seja, o mais comum é nem cogitar de história e o mais sofisticado que há é a cogitação a partir de superficialíssimo utilitarismo: para quê?

Aqui age a lógica do desassunto, a coisa simplesmente não se conhece. Não é que seja algo remoto e brumoso, é que não existe para a maioria. Essa mesma maioria, quando apresentada à questão e a alguns fatos, alterna surpresa e abordagem padronizada pela sua massificação. É quase totalmente impermeável o senso comum, que não se deixa seduzir por qualquer curiosidade.

Nesse caso, operam os elevados níveis de pobreza e de ignorância formal do Brasil. Quem viveu certa época, provavelmente fê-lo em luta diária para sobreviver e desprovido de quaisquer instrumentos de pensamento e de informações. Esse esquema é o do conservantismo baseado na escravidão tão profunda que nem se entrevê nalgum momento de distenção. Aqui, o mundo não passou na janela, a janela era um espelho e o mundo passou-se de dentro para dentro.

Acontece que se anuncia uma suave descompressão, que as maiorias tornam-se um pouco menos pobres e que se vive uma aparente democracia. Mas, isso vive-se com pessoas que há muito pouco eram mais insignificantes do que são hoje. Terão memória de alguma inferioridade material passada e só. Não há articulação dessa breve memória de um menos material recente com outros menos que a ela se relacionam.

O ambiente não é propício ao avanço que consiste precisamente em saber que o retrocesso é possível. E a que se vejam claramente os referenciais históricos a permitirem saber-se quando há avanço ou retrocesso. Não faz muito sentido para as massas que convenha conhecer a história e que convenha punir delitos para que eles não tornem a acontecer porque afinal vale a pena.

Belo Monte, comentário de Daniel Maia.

Por Daniel Maia

Parece que a União já demonstrou que o lago de Belo Monte não irá prejudicar, sob qualquer aspecto, as populações indígenas eventualmente interessadas na paralisação do projeto.

Segundo: tecnicamente, sabe-se que o tamanho do lago da usina, comparando-o com aquilo que se tem em território nacional, é ridículo frente aos benefícios que serão gerados. Ora, e impacto por impacto, não há como ser humano sem ser impactante!

Terceiro: é indiscutível que precisamos de mais energia. E o argumento segundo o qual poderíamos economizar daqui e dacolá, sermos mais eficientes, desperdiçarmos menos etc etc, não traz nada de novo e, acima de tudo, não significa solução alguma. Afinal, mesmo que nosso sistema de distribuição fosse perfeito, as contas bem simples demonstram que o ritmo de crescimento desejado para o Brasil supera, em MW, aquilo que hoje se produz, incluindo-se nas contas o consumo industrial e o consumo da nova e ávida classe média brasileira.

Quarto: certa vez te falei de um livro, guia politicamente incorreto sobre aquecimento global. O autor traz vários dados interessantes sobre o “modus operandi” dos ecochatos e seu autoritarismo. Na verdade, se suas idéias fossem efetivamente praticadas, o ser humano haveria de ser extinto da face da Terra. Suas idéias, aquelas que circulam neste fóruns internacionais, de tão repetidas, acabam se tornando “verdade” (aquecimento global, falta de terras para alimenta a população mundial etc etc). Você acabou de testemunhar isso com o vídeo feito com participação de atores da Globo.

A roupagem científica de suas teses é uma farsa e não tem qualquer respaldo experimental. Pra você ter uma idéia, os mesmos argumentos eram utilizados na década de 70, quando houve um relativo esfriamento da temperatura mundial. Mais uma vez, a culpa era do homem, da emissão de gases de efeito estufa etc etc. Agora, quando se tem, em tese, um aumento das temperaturas, os argumentos são os mesmos.

E, pior: se os militantes de esquerda, que hoje se vestem de verde, pensam que lutam contra o “sistema”, podem-se considerar enganados. Está muito claro que, no meio do tiroteio, o dinheiro brota daquelas mesmas fontes acima da linha do Equador, de fundações e de mega-corporações em nada associadas aos antigos ideais tradicionais de esquerda e do movimento ecologista da década de 60. Que tal perguntar a Al Gore se ela gostaria de ter usina eólica na frente de sua mansão, em um belo trecho da costa americana? Na verdade, isto tudo representa a luta pelo domínio da produção de energia. E quem domina a energia domina o modo de vida que hoje conhecemos.

Claro, sempre haverá os “idiotas úteis”, no dizer dos soviéticos, para levar adiante as idéias plantadas e repetidas à exaustão.

Desmame democrático.

Sugiro que o texto adiante leia-se com mente aberta, com mente que recorra às informações que dispõe – se delas dispuser. Que o leia a pensar, para não perder mais uma de tantas coisas claras que a limitação leva o vulgo a ver como complicação ou alegoria divertida e ociosa. Tomei a liberdade de transcrever o texto do amigo Alcino Miguel  Cardoso sem o editar. Sim, porque isso é parte de uma correspondência não destinada, a princípio, a dar-se a público. Claro que perguntei ao Miguel se podia por as palavras dele aqui e a resposta foi afirmativa. 

 

Uma criança nasce e chora! Foi retirada do mundo cómodo em que tudo lhe assistia! Daí em diante chora para obter o peito da mãe, para aliviar as dores, para obter o conforto do regaço que o acolhe. O institivo choro inicial é apreendido rapidamente para obter o prazer, o conforto ou a necessidade que se deseja. As divindades, mãe e pai, são apenas do recém-chegado e estão para o servir totalmente.

Esta é a mais profunda e instintiva aprendizagem dos humanos. Jamais nos libertamos dela e toda a construção da vida se faz em seu torno. Os que verdadeiramente a percebem e não lhe encontram quaisquer limites, tornam-se capazes de exercer o poder plenamente, e em busca da glória e da riqueza prometem a salvação de todos os seus seguidores. Esta é a construção simples do poder.

A esta construção do poder, a história do homem em sociedade acrescentou muitos outros passos e circunstâncias. De entre elas a mais relevante é a propriedade, ou seja a forma convencionada de perpetuarmos o nosso poder sobre qualquer coisa e inclusivamente sobre os outros, assim surgiu a escravatura, o casamento e, por fim, a cidadania.

Ao primeiro impulso de satisfação máxima dos desejos, sem qualquer noção do irmão que o precedeu e com ele co-existe, soma-se, logo após, a consciência da realidade dos outros e da inevitável divisão daí resultante, o ser rapidamente se lança na conquista e na defesa do já por si conquistado; assim nascem a concorrência e a propriedade.

O conservadorismo liberal e utilitário é a mais pura forma de expressão deste choro inicial.

Deixemos para lá a explicação, prova material, cientifica ou histórica destas coisas, basta sabermos o que era o “Demos” na antiga Grécia e como o voto nas modernas democracias representativas se circunscreveu a alguns. Se quisermos simplificar: um voto, um choro.

Assim, nasceu e proliferou a grande massa média, acéfala e indistinta, ciosa dos seus direitos, ditos adquiridos e inalienáveis, produto duma consciência social-democrata germânica que procurava evitar o totalitarismo politico decorrente do colectivismo económico e a convulsão revolucionária sempre gerada pelos desfavorecidos ou excluidos da riqueza; afinal a revolução bolchevique e a I e II grandes guerras tiveram lá o seu epicentro. A poderosa e instruida burguesia germânica sabia do que estava a tratar.

A burguesia capitalista alemã sem abandonar a pura lógica mercantil introduziu-lhe regras fiscais e de organização do trabalho para correção das assimetrias do mercado e melhor conformação social. Um acto inteligente! Porém, com isto deu à luz uma nova burguesia, a burguesia tecnocrata; servente d`O mercado, divindade provedora de todos os seus impulsos, desejos e necessidades.

Uma tola burguesia servente, que se proclama livre!, néscia da natureza do poder, e que infantilmente confia no seu voto como ordem ao concilio dos Deuses para a satisfação indistinta e ilimitada de todos os seus desejos. Absoluta e trágica inversão da natureza das coisas, da ordem do divino e do humano!, meu caro.

Os meninos europeus cresceram convictos do efeito choro/mamada, mas, como todas as mães sabem, um dia chega em que o leite seca nas suas tetas, um novo irmãozinho nasce, a mãezinha quer dar outro uso às suas tetas e a vida continua.

Tudo isto aconteceu, novos irmãozinhos, as tetinhas a procurarem novas glórias e o menino que não entendeu nada disto e continuou no seu choro insaciável! O choro dos bébés europeus, gordinhos e anafados, não é audível na China ou no teu Brasil e será mesmo desprezado por quem o possa ouvir. Nada mais intolerável do que uma birra histérica de uma criança mimada!!

Agradeço o teu convite para escrever, e por isso escrevi isto!

Não para ser um artigo explicativo, como pretendias, mas, para conversar um pouco contigo. Os restantes meninos que abram os olhos, que leiam!, ou então que se fodam porque por aqui não há teta para mamarem.

Seu Otávio, o Duque de Caxias e o forno de microondas.

Um texto de Sidarta.


Seu Otávio, já idoso e aposentado como coletor de impostos de Finismundi, dava sempre uma passada no bar Flor de Liz nos fins da tarde de volta da padaria onde diariamente ia comprar o pão do jantar.

No bar, passava os olhos nos jornais que já tinham chegado das grandes cidades do Nordeste, tomava uma cerveja “mais para natural do que para gelada” e comia uma ou duas empadas ou umas coxinhas de galinha feitas pela mulher do dono do bar (sempre teve a curiosidade de conhecer a cozinha do bar, mas, educado como era, sentia-se constrangido em fazer o pedido, coisa que poderia lhe ter evitado uma boa encrenca digestiva algum tempo depois).

Como um grande apreciador de livros de história, tinha recebido do seu filho mais velho, que viajara aos Estados Unidos recentemente, um livro em inglês com o resumo biográfico da história do que o autor americano considerava os 100 maiores generais ou líderes militares da história.

O seu filho tinha trazido também dos Estados Unidos a mais nova maravilha da cozinha americana nos fim dos anos 1960’s, um forno de microondas, um equipamento fabricado pela GE, grande e pesado e que exigia um potente transformador de 220V para 110V, a sua voltagem original de trabalho nos Estados Unidos, transformador esse projetado e feito por Manuel do Carburador (durante o dia), ou Tenente Manual (durante a noite – era o chefe da guarda noturna de Finismundi) e que cabia em uma caixa de madeira de garrafas grandes de cerveja e zumbia alto quando era ligado.

Leu o livro avidamente mais de uma vez e descobriu que eram citados na antiguidade 18 notáveis líderes militares, dentre outros, Alexandre, o Grande, Júlio César e Átila, o Huno.

Admirador inconteste de Napoleão Bonaparte, buscou a biografia do seu ídolo na parte dos generais da Era Napoleônica e foi aí que começaram as suas frustrações: a biografia de Napoleão Bonaparte escrita pelo autor americano só tinha míseras duas folhas descrevendo fatos menores das conquistas do grande imperador francês: só podia ser ignorância ou inveja desse escritor americano em não colocar Napoleão como o maior líder militar da história do mundo.

Para completar ainda mais o insulto aos realmente notáveis, o autor do livro louvava como líderes militares mundiais três indígenas americanos, dentre eles, Nuvem Vermelha e Cavalo Doido.

Continuou tentando entender o contexto e a idéia do escritor ao selecionar os seus generais, e se deu conta de que o livro não falava nem na Guerra do Paraguay, onde se destacou o Duque de Caxias como comandante das tropas brasileiras.

Isso era demais; há alguns anos já vinha desconfiando de que os americanos tinham minimizado a participação dos combatentes brasileiros na segunda guerra mundial e iria exigir que quando esse livro fosse eventualmente traduzido para o português fosse acrescentada uma resenha biográfica decente do Duque de Caxias e um ou dois parágrafos sobre a guerra do Paraguay.

Carregava sempre no bolso, ao lado de um monte de cédulas para pagar as suas despesas em dinheiro, uma cédula mais antiga que continha a efígie do Duque de Caxias, já fora de circulação, para mostrar de vez em quando aos amigos que o Brasil tinha herói militar.

Ao terminar de ler várias vezes o livro americano sobre os 100 maiores generais ou líderes militares da história, e de formar uma opinião sobre o critério de escolha e sobre a parcialidade evidente do autor, convidou alguns amigos mais próximos para se reunirem no Flor de Liz, na sexta-feira um pouco mais cedo para que ele, Seu Otávio, pudesse relatar sobre o que tinha lido mais recentemente e sobre como pensava que os americanos estavam distorcendo a história do Brasil.

Um evento desses puxava mais cerveja, empadas e coxinhas do que o habitual e, como Seu Otávio foi quem convidou os amigos, a bebida e a comida correram soltas por conta do conferencista.

Lá pelas 9 da noite, alguns já mais alegres do que o conveniente, saíram os primeiros protestos verbais de “isso é mesmo coisa do imperialismo americano”, tendo um ouvinte também criativo escrito em uma tira de papel higiênico a frase “Yankees GO Home !!!” e pregado a faixa na entrada do bar.

Perto das 10 da noite todos foram embora para as suas casas e Seu Otávio começou a sentir a barriga “ferver” ainda no caminho de casa.

Conseguiu segurar a barriga até sair da vista dos amigos, mas aí as empadas e as coxinhas de galinha da mulher do dono do bar mostraram o seu poder desvastador: Seu Otávio já chegou em casa com a cueca e a calça branca do terno completamente sujas e correu para o banheiro chamando a sua esposa para ajudá-lo na situação constrangedora em que estava.

Lembrou-se de avisar à esposa do dinheiro para as despesas que tinha em um dos bolsos da calça, mas se esqueceu da cédula com a efígie do Duque de Caxias em outro bolso.

A calça foi logo lavada no tanque de lavar roupas e o dinheiro das despesas cuidadosamente limpo na pia do banheiro.

Terminada a operação da vigorosa lavagem da calça de Seu Otávio no tanque de lavar roupas, a esposa dele teve a genial idéia de secar logo a calça dentro do forno de microondas: em teoria a água evaporaria logo, mas o tecido não se inflamaria.

O esperado foi mais ou menos o que aconteceu; a calça secou logo e a cédula com a efígie do Duque de Caxias, que estava em um dos bolsos, secou também… desaparecendo completamente a imagem do Duque de Caxias do papel moeda impresso há anos.

Ao se lembrar do descaso do autor americano do livro sobre os 100 maiores generais ou líderes militares da história, da completa omissão do Duque de Caxias e da Guerra do Paraguay, e olhando de soslaio para a marca GE impressa no forno de microondas, concluiu que os americanos estavam mesmo por trás da iniciativa de acabar com a memória dos heróis brasileiros e de nos vender produtos programados para destruir o patrimônio e para sabotar a cultura dos brasileiros.


E pensou: “eu devia já ter ido dar uma olhada na cozinha do bar Flor de Liz; vai ver que os americanos estão também sabotando a higiene das comidas no intuito de alguma multinacional deles comprar o bar e logo subir o preço da cerveja, das empadas, das coxinhas, cobrar para se ler os jornais e ainda botar uma bandeira americana em cima de cada mesa do bar… e dar desconto para quem souber recitar as biografias de Cavalo Doido e de Nuvem Vermelha.”


Falta de clareza e modismos. A língua escrita não tem os recursos da falada.

Um sujeito, um advogado, pediu o impedimento do ministro do supremo tribunal federal Gilmar Mendes. Fê-lo por meio de um requerimento ao Senado da República, órgão do poder legislativo competente para processar e eventualmente determinar o afastamento requerido. Um ministro do tribunal constitucional – o supremo tribunal federal – é agente político de um órgão de soberania e, por isso, é processado politicamente no Senado.

Esse processo que o advogado quer abrir não é jurisdicional, é político, deve-se apontar claramente. Dirige-se contra um agente político – porque atua em função que pode gerar obrigações para todos, equivalente à feitura de leis – e deve ser apreciado pelo órgão legislativo federal de competências mais elevadas. Ao Senado Federal compete também, por exemplo, julgar o pedido de afastamento do Presidente da República, por responsabilidade política.

Abstraindo-se da procedência do pedido – e acho que o ministro não tem mesmo condições de sê-lo – o pedido é um exemplo de falta de clareza e confusão. Defeitos que se devem, entre várias razões possíveis, à confusão entre político e jurídico e à submissão aos modismos corporativos. Defeitos, e isso é engraçado, que se encontram nos livros do ministro alvo do pedido.

Poucas pessoas escrevem tão mal, no Brasil, quanto os advogados. Por um lado, isso deve-se à quantidade deles e, por outro, às prisões da atividade. A maioria das causas judiciais gira à volta de questões já acertadas, ou seja, de coisas que não demandam boas explicações. Qualquer arrazoado, formatado no padrão dominante, citando e transcrevendo meia dúzia de decisões de tribunais e algumas linhas de leis, serve.

Além da previsibilidade do conteúdo, há os vícios de linguagem profissional. Vícios que enfeiam o texto do advogado, do juiz e do promotor e aumentam a chatice que ordinariamente espera-se de algo do gênero. As palavras e locuções que se repetem sem se saber o que são não podem ser desculpadas como se se tratasse de linguagem falada coloquial.

Elas pretendem-se coisas cultas, alinhadas segundo a norma culta. Portanto, devem ser julgadas com um rigor proporcional à pretensão que carregam. O advogado do caso deve ter toda razão contra o ministro, mas não conseguiu deixar de ser advogado. Claro que isso não importa, porque o pedido será entregado a outros advogados, assessores de Senadores, que nada verão de estranho ou feio.

Bem, aqui não se trata de jurídico, mas de clareza e modismos. O fulano inicia seu longo pedido dizendo que o faz em face de Gilmar Mendes. Não é isso que ele faz ou, melhor dizendo, ele não pede coisa alguma em face de quem se pede a condenação. Ele pede algo contra Gilmar Mendes. Não é feio dizer-se contra, mas tornou-se raro!

Em face de alguma coisa estamos como em frente a um espelho, ou a outra pessoa. Contra alguém, estamos quando pedimos sua condenação, o que é o caso dos processos, sejam judiciais, sejam políticos. As coisas que se pedem em processos, judiciais ou políticos, com autores e réus,  pedem-se contra alguém e isso é óbvio. Bem, isso é apenas um exemplo, apanhado entre tantos iguais.

O jargão domina toda a comunicação de alguma corporação. Ela especializa-se em auferir poder com o uso da terminologia própria, ainda que essa terminologia seja não-significante ou ambígua, ou imprecisa. A corporação acredita nisso como quem não vê qualquer coisa fora dela e cai na armadilha da imprecisão, quando a precisão e o uso de linguagem simples e coloquial seriam desejáveis.

Como o jogo é jogado formalmente, pelo menos até antes do vida-ou-morte, a imprecisão e o modismo serão usados para evitar-se a purga de quem merecia tê-la. Ou seja, o sujeito pede algo plausível, a quem faria igualmente, e tem o pedido negado porque na hora de resolver-se a questão entra em cena um fulano que maneja a lógica formal segundo os padrões estabelecidos e conhecidos.

Não se trata, aqui, de imputar a vício, erro de conjunção ou erro ortográfico um papel decisivo nas relações pessoais e sociais. Trata-se de apontar que são sintomas pontuais de falta de clareza e sucumbência a modismos absorvidos acriticamente. Ora, se entramos a escrever obscuramente, provavelmente será por uma de duas razões: ou pensamos também obscuramente, e assim a escrita é o reflexo da mente do escritor; ou há um divórcio entre o que pensamos e expomos, por descuido ou ignorância.

É interessante notar a possibilidade do erro voluntário, a que chamei descuido, no parágrafo acima. Essa modalidade, quando o falador ou escritor tem conhecimentos formais, é uma renúncia às potencialidades da língua. É como trazer para o campo da coloquialidade informal o que está no da formalidade. Ora, a lingua escrita submete-se a normatividade que não aprisiona tanto a falada porque a primeira tem que ter mais uniformidade, ou seja, tem que ser um código mais padronizado senão não se o entende.

A língua falada tem recursos para minimizar e até afastar as ambiguidades, imprecisões, repetições, flexões verbais erradas. O principal recurso é a presença física do interlocutor, com visão e audição. Assim, ele perceberá as variações de entonações da fala, a a expressão corporal e terá maior ou menor complacência com a informalidade e fará mais esforços para compreender, na medida de sua proximidade, de sua amizade com o falante.

A língua falada conta com importante elemento de coesão significante que a escrita não tem: a cena em que a conversa ocorre. A cena, a circunstância física em que se fala, já traz consigo grande quantidade de significação e indica aos falantes o nível de informalidade que será possível para um dado nível de compreensão. A circunstância – em seus aspectos físico e temporal – delimita bastante o que se pode dizer, pois há coisas que somente se dizem em tais ou quais circunstâncias.

Assim, uma série de lateralidades apoia a linguagem informal e dá suporte a que seja possível, mesmo em um nível de precisão relativamente baixo, se tomarmos as potencialidades. Isso não acontece com a escrita, em geral. Todavia, acontece com a escrita destinada ao círculo corporativo, hipótese em que há um pouco da circunstanciação encontrada na língua falada. Sim, porque há uma pré-definição aproximada do grupo destinatário do texto, o que já põe em marcha o recurso à muleta das pressuposições e das cumplicidades corporativas.

E aqui, como uma coisa puxa outra, percebe-se no avanço do obscurantismo, do uso do jargão, na perda de clareza, uma corporativização crescente da sociedade. Sim, porque os discursos estruturam-se como se destinados ao grupo de pertencimento do falante, apenas. Claro que muitas vezes o discurso é pura e simplesmente corporativo e fechado em torno a certo número de pressuposições e locuções do gosto da corporação.

Porém, observa-se que muitas vezes a prisão e as limitações do discurso fechado não são desejadas pelo falante que, apenas, não consegue dizer as coisas de outra forma, porque circunscrito à parcialidade da corporação, pensa e diz tudo de forma circunscrita. Tomemos o caso do advogado que pediu ao Senado o afastamento do ministro Mendes. Ele não precisava fazer um discurso de contornos jurídicos, ele não estava necessariamente aprisionado por formas pré-estabelecidas porque o pedido é político.

Claro que era necessário uma exposição de fatos e das relações entre eles, ou seja, uma narração. Era preciso demonstrar a indignidade para a função pública, o que não passava por falar como se fala a um juiz, com todos os fetichismos latinistas e locuções da moda jurídica. A ocasião do discurso aberto foi perdida, pois o falante não saiu de sua caverna discursiva, embora muito provavelmente quisesse sair, se soubesse que está dentro. Convinha ao pedidor que seu discurso fosse aberto, porque um pedido político deve ser compreendido pelo maior número possível.

 

 

« Older posts Newer posts »