Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Lógica de Cassino.

É difícil identificar aspectos realmente particulares de alguma sociedade, nação, lugar ou época. O mais frequente, quando se tenta identificar tais particularidades ou características marcantes, é serem repetidos lugares-comuns que a grande narrativa cultiva.

Como exemplo dessa repetição acrítica de lugares-comuns, diz-se muito comumente da brasilidade que é caracterizada fortemente pela preguiça, simpatia, alegria e outras qualidades folclóricas. Isso é sumamente falso. O que há em toda parte e em todas as culturas não pode ser característica particular da brasilidade.

O exemplo do parágrafo acima é de repetição de um lugar-comum moralizante e estigmatizante. As características que seriam particulares são universais, mas poucos se deterão a pensar nisto, tamanha é a propensão a repetir sem pensar.

O Brasil é terra fértil para essas coisas. A ideologia dominante é o cristianismo reformado de seitas novas. Assim sendo, tudo que for culpa pessoal, culpa coletiva, culpa étnica e cultural e moralismo raso prosperará.

Se há qualquer coisa que seja particular da brasilidade, eu diria que é o barulho e a tolerância com ele. É nossa forma de ser bárbaros. Cada cultura tem a sua, afinal.

Mas, esta época tem algo particular, no que se refere ao espaço que se pode dizer culturalmente ocidental. O que é característico deste espaço, presentemente, relativamente à forma de pensar e ver as coisas, é a lógica do cassino, da aposta, do jogo. A lógica do jogo tornou-se a régua de medir tudo. Foi elevada até a modelo analítico.

O hipercapitalismo triunfou, ainda que este triunfo deva ser uma fase breve a anteceder o colapso sistêmico. O hipercapitalismo não conhece noções de valor adicionado por trabalho. Logo, nele, tudo tem sentido e nada tem sentido.

O hipercapitalismo implicou o hiperconsumismo que, inicialmente, era funcional à reprodução do modelo. Ocorre que além de mecanismo de reprodução, o hiperconsumismo passou a ensejar uma forma de espoliação talvez mais perversa que a material.

Além de ser um fator nitidamente neurotizante, pela criação exponencial de frustrações, ele leva à espoliação cultural. O hiperconsumismo corrói as bases culturais tradicionais e cria a pobreza totalmente desenraizada, destituída de história, de tradições, condenada ao presente contínuo da aspiração a consumir o inútil ou brevemente obseleto.

O novo pobre não é apenas destituído de haveres materiais, ele é destituído de cultura. Isso o impede de perceber interesses e disputas de classes. Essa figura não tem um lugar social, não comunga de um patrimônio cultural com outros na mesma situação.

O pobre atemporal é aquele impedido de qualquer consciência de classe. Toda sua percepção é presente e estática. O modelo pequeno-burguês foi assimilado e o novo pobre não se percebe pobre exceto por lhe faltarem coisas por alguma razão mágica ou por falta de esforço seu.

Ele perdeu a dimensão trágica da pobreza. Isso, convém dizê-lo, foi muito bem percebido pelo maldito Pier Paolo Pasolini.

Na fase hipercapitalista, o que antes se chamava jogar ou apostar chama-se investir. Essa perversão semântica deveria ser reveladora, caso houvesse muita gente a pensar com suas próprias cabeças. Essa perversão não é apenas semântica; ela é uma perversão que guia as ações concretas das pessoas.

O mundo passa a ser percebido a partir da lógica de cassino misturada com moralismo de seita reformista recente. É algo monstruoso e a contradição evidente não é a maior das monstruosidades.

A maior monstruosidade é a hipocrisia do monstro.

O monstro hipercapitalista precisará do Estado para conter ou eliminar as massas famélicas que ele produziu, mas falará mal do Estado. O monstro hipercapitalista precisará eliminar todas as liberdades que algumas lutas produziram, mas falará em direitos humanos.

O monstro hipercapitalista precisará de emergências sucessivas. Ele testou a disposição para obediência das massas e percebeu que é seguro oprimi-las a bem de um suposto bem coletivo pintado com fina camada de pseudo-ciência.

A chantagem coletiva é seu meio de tentar o controle por narrativa. A oferta de pseudo vantagens é o convite para a servidão voluntária que se entrega ao controle tecnológico de espectro total.

Neste ambiente, em que impera o diversionismo de falsas pautas ou de pautas irrelevantes, todos jogam como se assim se fossem salvar. O jogo é a sedução da produção de moeda sem produção de valor. Isto deveria bastar para evidenciar que não é possível ser a lógica de base de alguma sociedade.

E, de maneira até bastante coerente, a lógica do cassino tornou-se base teórica para as mais diversas análises. Ou seja, o nada é o suporte intelectual de várias análises.

O Pesadelo de Kissinger.

Este texto foi inicialmente publicado em novembro de 2018. Hoje, está acontecendo o que se disse então há três anos e alguns meses. O consórcio anglo-saxão descumpriu os acordos feitos após o colapso da União Soviética e avançou a OTAN para as fronteiras da Rússia. Aniquilou a Ucrânia como Estado e patrocinou grupos neonazistas que realizaram um massacre no leste, tendo como alvos populações etnicamente russas.

A Rússia reagiu de maneira previsível, para defender seus interesses e sua segurança. A esta reação correspondeu a imposição de sanções econômicas à Rússia, bem como o furto de reservas russas mantidas em bancos ocidentais. Isto também foi previsível.

Previsível também será a acelerada desdolarização em escala mundial, bem como o colapso econômico da Europa, que depende da Rússia nos campos energético e alimentar.

Como tudo isto era, realmente, previsível, é o caso de se pensar numa implosão programada do sistema até então vigente e numa guerra a devastar novamente a Europa. A elite anglo-saxã é arrogante a ponto de crer-se invulnerável e conduzirá à liquidação de sua própria hegemonia. O mundo será dividido.

A conformação geopolítica mundial ainda vigente – embora em vias de esgotamento – deve-se muito às idéias e ações de Henry Kissinger, um judeu bávaro inteligente. Richard Nixon percebeu esta inteligência e o teve sempre ao seu lado. Outros presidentes estadunidenses posteriores contaram com seus conselhos.

Kissinger percebeu algo que não é tão simples, sobretudo considerando-se os níveis intelectuais médios e a propensão a pensar ideologicamente enviesado ou fazer puro wishful thinking.

Ele percebeu que a China, inevitavelmente, seria grande novamente e que isto era apenas questão de tempo. As potências com mais de dois mil anos de história podem sofrer declínios ou serem brutalmente exploradas por alguns períodos, mas reerguem-se.

O domínio global dos EUA ampara-se no dólar como moeda de reserva e de troca internacional e na sua capacidade bélica. Este modelo emergiu do pós segunda grande guerra e foi renovado no início da década de 1970, sob inspiração de Kissinger.

Quase todas as transações comerciais internacionais são fechadas em dólares norte-americanos e mediante o sistema SWIFT de clearance interbancário. Isso significa que todos os que transacionam precisam comprar dólares para fechar suas operações e assim o dólar tem demanda garantida, o que permite aos EUA simplesmente fabricá-los.

O petrodólar faz parte da renovação que se fez no início da década de 1970. Acordos celebrados em 1973 determinaram que todas as transações a envolverem petróleo seriam necessariamente liquidadas em dólares norte-americanos. A moeda, que perdera conversibilidade em ouro, passou a ter outro lastro forte e garantia de demanda constante.

Acontece que a aristocracia estadunidense aspira ao domínio mundial hegemônico e não disfarça este desejo. Não importa aqui que o faça amparada em discurso religioso meio primário, não cuido das justificativas para o destino manifesto, de tão tolo que isto é.

Para o domínio total, nos princípios da década de 1970, era necessário evitar a aproximação entre China e Rússia. E isto Kissinger conseguiu e ainda conseguiu mais. Fez a China comprar notas promissórias dos EUA em troca de manufaturados que permitiram conter pressões inflacionárias.

Isto funcionaria bem até certo ponto, se outros posteriores ajustes fossem feitos. Todavia, parece ter havido escassez de Kissingeres recentemente. A fúria hegemônica, cada vez mais religiosa, impeliu os EUA a uma beligerância típica, que anuncia as fases de declínio.

E finalmente, depois de aberta uma guerra comercial insana, eis que a China percebeu a necessidade de abandonar o dólar como meio de troca em todas as suas transações e como moeda de reserva. Claro que não é algo simples, nem que se faça do dia para a noite, mas está em curso.

Contudo, o mais extraordinário foi ter conduzido a que se formasse uma aliança estratégica entre China e Rússia, o que, a toda evidência, é o ponto de travagem da aspiração hegemônica dos EUA.

Quando todos são palhaços, ninguém é ridículo.

Depois da guerra de 1939 a 1945, as classes medianas europeias experimentaram uma rápida prosperidade, que foi até meados da década de 1970. Neste período, Deus morreu sua mais recente morte, no ocidente. Esta percepção, colhi-a de um amigo inteligente, a quem devo os créditos, embora não o deva identificar.

Não é extravagante dizer que o niilismo esteve forte a partir dos anos de 1950 e que isto foi bem mostrado no cinema italiano, um cinema que deveria ser mencionado até sem o adjetivo que indica origem. E não apenas no chamado neo-realismo, mas também nas deliciosas comédias.

Há vinte e tantos anos tive um problema que me impediu praticamente de caminhar por quase um mês. Havia, onde vivia, uma boa locadora de filmes e devo ter visto todos os italianos que havia nela. Hoje, vez por outra, vejo-os novamente e percebo algo interessante.

Em muitos realizadores há um efeito que decorre de uma direção política. Não se trata de algo que implique filmes bons ou ruins, por si só. Trata-se de formas de pintar os personagens.

É notável que em realizadores engajados politicamente, como Monicelli, Rossellini, Ponti, De Sica, as personagens dos ricos são ridículas. São ridículas porque são palhaços enquanto as personagens dos pobres não são. O contraste as torna ridículas.

Aprecio muito Fellini e Antonioni e percebo um efeito comum a ambos, que decorre de formas de pintura das personagens diferentes. Nestes dois realizadores, as personagens dos pobres e as dos ricos não são ridículas.

Em Fellini, todos são palhaços, tanto as pobres, quanto as ricas. Se todos são palhaços, ninguém é ridículo. Em Antonioni, ninguém é palhaço e, assim, ninguém é ridículo por efeito de contraste.

Marcello, o jornalista da Doce Vida, é tão palhaço quanto os ricos da festa na suntuosa e antiga Villa. Os fotógrafos de celebridades são palhaços, Emma, esposa de Marcello, é palhaça, assim como Madalena. São todos palhaços e por isso não são ridículos, tanto a plebe, quanto a aristocracia. Fellini produz a imagem dramática, mas não necessariamente ridícula.

Antonioni não usa personagens palhaças e não gera o efeito do ridículo por contraste. Os ricos de Antonioni são tal e qual os ricos são e os pobres idem e os que ascenderam são pessoas que ascenderam e pronto. Suas posições e extrações sociais estão muito claras, mas não sofrem a investida do ridículo.

Fellini é um poeta triste, acho eu. Falo da obra, não da personalidade do realizador, de que não tenho quaisquer condições de falar. A última cena da Doce Vida, com o sorriso cândido da menina a mirar Marcello, é muito dramática.

Antonioni é um cronista, se for válida analogia com literatura. Se há muito do que se chamou psicologismo nos seus filmes dos anos de 1960, é porque havia muito isso na época. Ou seja, havia o mergulho das classes médias e dos ascendentes no niilismo, na incomunicabilidade. Se há muito jazz nos seus filmes desta época, é porque havia muito jazz por toda parte naqueles anos.

Misticismo refundador.

Os grupos de pessoas que comandam o mundo têm uma racionalidade que deve ser percebida a partir de um conceito ampliado, que não exclua, como se fossem coisas antagônicas e incompatíveis, inclinações místicas e religiosas.

Os misticismos e as religiosidades são formas de racionalidade, eis que se exprimem mediante linguagem, ainda que nem sempre verbalizada. Tudo aquilo que se exprima mediante linguagem ou constitua uma linguagem provem de alguma racionalização, como é óbvio.

O que pode haver é modelos lógicos diferentes por trás de cada forma de racionalização, o que não infirma o que foi dito precedentemente. E, na medida em que discursos baseados em modelos lógicos diferentes podem interagir e construir um novo discurso, percebe-se que nem mesmo um paradoxo resultará necessariamente.

Pois bem, alguns misticismos estão entre os móveis das pessoas que comandam o mundo. Estas são, basicamente, os detentores dos capitais financeiro e dos setores de tecnologia e de comunicações e seus intermediários agentes nas corporações estatais militares e de inteligência e segurança.

Os que comandam o mundo herdeiro da tradição judaico cristã romana são imbuídos do misticismo do destino manifesto e da cruzada para converter ou exterminar os infiéis. Aspiram ao domínio absoluto de todo o mundo, economicamente e culturalmente. Há uma vertente deles que aspira ao controle de espectro total do mundo mediante o extermínio físico dos infiéis, mais que da sua escravização. Estes últimos cultivam o misticismo ecológico neomalthusiano.

Pode-se dizer que outras grandes civilizações têm misticismos entre seus grandes motivos e isto é verdadeiro. Todavia, estas outras nunca manifestaram o desejo, nem afirmaram terem a missão de controlar todo o resto, além de os converter culturalmente às suas formas.

A China tem o misticismo do Império do Meio, mas nunca visou a ser mais que o espaço geográfico chinês – exceto por algumas querelas territoriais que envolvem, de qualquer forma, o grande espaço chinês tradicional. A China, mesmo agora que é a maior economia do mundo, por PPP, não quer converter ninguém nem fazer de ninguém culturalmente chinês.

Não quererá achinesar ninguém, não quererá impor seus valores como os melhores que há. Talvez a enorme história que têm os leve a não querer isso por mero desprezo, talvez sejam gente superior mesmo e respeitem as diferenças e queiram somente fazer negócios.

A Rússia e alguns países cristãos ortodoxos que usam alfabetos grego ou cirílico inspiram-se muito em certo misticismo do pan-eslavismo. Mas, isto funciona num âmbito mais ou menos delimitado e muito bem contido geograficamente por outros países que recusam essa matriz cultural. O pan-eslavismo nunca se propôs a derramar-se para qualquer outro espaço que não fosse já eslavizado.

Estes misticismos – se assim se lhes podemos chamar propriamente – chinês e pan-eslavo não têm características imperiais no sentido de expandirem geograficamente um espaço pre-existente, nem de mudarem os padrões culturais e religiosos de outros povos. Mesmo quando a China teve poder de o fazer, não o fez. E agora que volta a ter, não dá sinais de querer tornar o mundo uma grande e única China.

A classe dominante da civilização de matriz judaica cristã romana aspira ao domínio de amplo espectro, com a imposição irrestrita de seus valores e padrões culturais como superiores, além do domínio econômico de todo o restante.

A divisão interna neste grupo dominante ocidental – ainda é a melhor palavra – limita-se a que um dos subgrupos cultiva um misticismo refundador e aspira à quase extinção da população mundial.

Hoje, a China e parte do Sudeste Asiático vivem quatro epidemias virais. A pneumonia humana por Coronavírus, a gripe suína africana, a gripe suína de H1N1 e a gripe aviária de H5N1. Estas epidemias causam imensos danos e podem causar danos ainda muito mais graves, eis que o contágio cresce geometricamente.

O despovoamento e a perda de segurança alimentar – nomeadamente de proteína animal – são fatores de destruição para o espaço asiático, a despeito de quanto creiam em contrário os neomalthusianos sonhadores com mortes em massa. A economia entraria em colapso, na medida em que as pessoas enterradas são as que antes produziam e consumiam e que os custos dos enterros não cessariam de aumentar.

Isso interessaria à elite ocidental e, por isso, é plausível que isto seja uma guerra biológica, embora eu ache improvável. Improvável porque nem todos os componentes da elite ocidental são absolutamente estúpidos a ponto de crerem na possibilidade de escaparem do contágio mediante barreiras sanitárias ou medicamentos.

A China saberá, cedo ou tarde, se isto deve-se a acidente ou se foi um ato de guerra biológica. Faz um esforço hercúleo de contenção do contágio, a um custo altíssimo, o que é coerente com estarem a pensar que não foi um ato de guerra e, sim, um acidente.

Todavia, se chegarem à conclusão de que foi um ato de guerra biológica, para os destruir economicamente, reagirão. E a reação mais simples e eficaz seria simplesmente suspender as ações de contenções e deixar o contágio espalhar-se pelo mundo, permitindo que os geniais agressores experimentassem as benesses da sua idéia.

Mas, como disse acima, acho mais provável que tenha sido um acidente a desencadear esta epidemia.

Todavia, a hipótese da guerra biológica é plausível, porque entre os que mandam no mundo há os inspirados pelo misticismo refundador e esta gente está mais ou menos discretamente infiltrada em muitos órgãos estatais militares e de inteligência, bem como em entidades não governamentais com os mais belos propósitos declarados.

É interessante notar a existência, entre os hiper ricos, nomeadamente os ligados ao setor de tecnologia da informação e ao setor financeiro, daquela gente chamada preppers. Não me refiro aos de classe média que vivem a seguir modismos e seriam melhor definidos como campistas com aptidões para agricultura sustentável e reciclagem de água.

Refiro-me a pessoas que andam a comprar antigos abrigos anti nucleares ou a construírem espaços supostamente autossustentáveis na Patagônia argentina ou na Nova Zelândia. Essa gente acredita na hipótese de guerra nuclear controlada ou parcial, acredita em pandemias de que se escapa.

Na verdade, a crença na possibilidade de escapar de coisas que matariam 99% da população da terra não consegue disfarçar que esta crença está lado a lado com o desejo que isto aconteça. Estes místicos, assim, teriam a oportunidade de refundar a humanidade e atuarem como novos deuses.

A hiperconcentração imporá a hiperviolência.

Segundo o Global Wealth Databook 2018, do banco Credit Suisse, o 01% mais rico detém 45% do total da riqueza no mundo.

As dez pessoas mais ricas do mundo detém patrimônios superiores aos produtos internos brutos de alguns países, dentre eles, os seguintes: Suíça, Argentina, Polônia. Taiwan, Suécia, Bélgica, Tailândia, Áustria e Noruega.

De acordo com o World Inequality Lab, no World Inequality Report 2018, os rendimentos dos 10% mais ricos correspondem às seguintes percentagens da renda nacional total: no Oriente Médio a 60,86%, na Índia a 55,46%, no Brasil a 55,33%, na África a 54,45%, noa Estados Unidos e Canadá a 46,96%, na Rússia a 45,51%, na China a 41,42% e na Europa a 37,07%. Estes dados referem-se ao ano de 2016.

Nos Estados Unidos verifica-se a maior concentração, entre países da OECD, da riqueza nas mãos do 01% mais rico, eis que detém 42,48% de toda a riqueza do país. Por outro lado, a riqueza média detida por pessoa adulta é muito menor nos EUA que em outros países da OECD como Austrália, Bélgica, Holanda, France, Canadá, Japão e Reino Unido.

A hiperconcentração de riquezas é um projeto, não uma resultante natural de diferenças naturais. Basta observar as mudanças nos níveis de concentração, no tempo e no espaço, para perceber que não se trata de tendência natural, fortuita ou a depender da superioridade intelectual ou moral deste ou daquele grupo nacional ou étnico.

Em alguns lugares, os padrões materiais já atingidos e a existência, ou persistência, de alguns mecanismos de assistência social atenuam um pouco os efeitos da hiperconcentração nas vidas de uma enorme massa de pobres.

Em outros, a brutalidade da hiperconcentração a par com a inexistência de mecanismos de assistência, tais como rendas mínimas e sistemas de saúde pública, permitem antever graves perturbações a serem enfrentadas.

Os primeiros grandes problemas que a hiperconcentração acarreta são a pobreza e a miséria em si mesmas, pelo sofrimento imediato que elas implicam para vastos contingentes. Ou seja, muita gente a sofrer com falta de alimentos, de higiene, de saúde, de moradia, de educação o que, numa simples perspectiva de solidariedade humana, não é desejável.

Por isso, um dos assuntos mais interessantes para a classe dominantes mundial é a contenção social, seus meios táticos e estratégicos. Mas, mesmo preocupando-se em dominar as técnicas de contenção social, as classes dominantes não escapam à inércia da hiperconcentração, mesmo que a racionalidade recomende prestar mais atenção à provável ineficácia futura dos meios de contenção baseados no discurso mediático.

Como dito acima, em muitos países os níveis de bem estar material chegaram a pontos elevados, o que significou pobres aparentemente ricos, às vezes à custa de aparências mantidas por crédito barato. Mas a aceleração na concentração, que se viu marcadamente a partir da década de 1980, tornou frágeis as aparências mesmo na Europa e nos Estados Unidos.

Na Europa e nos Estados Unidos é evidente um processo aparentemente lento de desaparecimento da classe média tradicional e o surgimento de um afastamento contínuo entre os extremos alto e baixo das classes médias. Este é um ambiente particularmente fértil para o ressurgimento de fascismos mais ou menos explícitos, eis que o ressentimento das pessoas é enorme e sempre identificaram-se socialmente com os de cima.

Essa face do problema tem sido muito comentada, porque não são poucas as pessoas que perceberam estarmos em situação semelhante à dos anos iniciais da década de 1930. Contudo, a ressurgência dos fascismos, alojados nas classes médias como em seu habitat preferencial, pode não ser, isoladamente, o maior dos problemas ou implicações que a hiperconcentração pode trazer.

O potencial caótico dos fascismos tem de ser compreendido levando-se em conta outros fatores. Embora seja uma forma de estar e ver o mundo caracterizada pelo primarismo intelectual, pelo moralismo hipócrita e pela raiva, ele ainda se cria, se reproduz e se expressa por linguagem.

Ocorre que em muitas partes do mundo há vastos contingentes de pessoas que não se situam na pobreza intermediária, mas na pobreza aguda ou mesmo na indigência. As emergências e necessidades cotidianas são tamanhas que estas pessoas não poderão ser contidas por meio de novelas de TV ou movimentos cuidadosamente erráticos de políticos, ou escândalos que falam ao moralismo primário ou a qualquer coisa que implique linguagem.

É muito claro que o passo seguinte – opção não seria exatamente o termo adequado – é a violência física e as classes dominantes não têm quaisquer escrúpulos de recorrer a ela, sistematicamente. A questão é: diante da situação que se afigura provável, a violência resolverá? Quanto dela será necessária, caso admita-se que seja eficaz?

Ela só seria eficaz, na hipótese de deflagração de caos generalizado, caso se destinasse à total eliminação da pobreza e da indigência. Uma coisa deve ser lembrada, contudo, pelos entusiastas da idéia nas classes médias: a eliminação física da indigência não gera qualquer excedente a ser apropriado, eis que a indigência nada tem.

Mas, tudo indica que a hiperconcentração levará à hiperviolência e consumirá muita energia e recursos que serão apropriados de forma concentrada, o que traz em si a reprodução do modelo.

O interesse fetichista por detalhes biográficos dos autores.

Este texto foi publicado originalmente em maio de 2013 e refere-se especificamente a Machado de Assis porque, na época, chamou-me atenção a insistência de um crítico em ver aspectos biográficos ocultos nas obras do autor. Como se as obras fossem peças de um código para se decifrar a psique enigmática do autor.

Esse fetichismo vem aumentando desde então e espraiando-se para subcelebridades como jogadores de futebol. Por isso, achei interessante a republicação.

Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.

A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.

Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.

Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.

O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.

Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.

Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.

Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.

Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.

O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.

É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.

O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade cultivados com imensa força.

O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.

Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.

A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.

Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.

O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.

O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.

O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.

Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.

É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.

Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.

De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.

É profundamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.

Vendedores que acreditam em si mesmos.

Os EUA pretendem estancar o processo de integração euro asiática. Todas as pessoas que possuem conhecimentos históricos suficientes e que pensam a partir de condicionantes e estímulos que não venham da imprensa corporativa sabem que o intuito de travar este processo é vão.

Bem, é possível estancar este processo de integração, mas isto implicaria estancar a vida humana na terra, o que não seria um problema em si, mas não me parece que seja o desejado pela maioria.

Subjaz ao desejo, como sua razão básica, o apego tenaz à idéia imperial da unipolaridade. Ou seja, a pretensão dos EUA ao poder mundial absoluto e inquestionável. Claro que esta razão de poder não é ou é muito raramente invocada abertamente.

Abertamente fala-se de coisas sem sentido real algum, tais como disseminação da democracia, da liberdade, dos valores ocidentais e outros lugares comuns que só servem para escancarar os níveis obscenos de hipocrisia a que chegaram os filhos da tradição greco judaica.

Embora seja óbvio, convém dizê-lo: se alguém em posição de exercer poder, nos EUA e na Europa, estivesse preocupado com democracia, os Estados da península arábica e do golfo pérsico não existiriam, simplesmente.

Para levar adiante a tentativa de atrapalhar e retardar o processo de integração euro asiática usam-se os meios de combates híbridos, hoje já bem teorizados, principalmente depois do livro de Andrew Korybko. É o manejo do caos administrado para derrubar governos que não servem aos interesses imperiais.

Isso vem sendo feito em países que se situam geograficamente vizinhos à China e à Rússia, bem como em países situados ao longo da Nova Rota da Seda – Belt and Road Initiative. Acontece que, se eu posso perceber isso, é claro que os chineses já o perceberam há muito e dispõe das tecnologias para resistir.

O assustador é perceber o nível intelectual e civilizacional rasteiro das pessoas que movem o aparelho estatal dos EUA. Lastimavelmente, são ignorantes, principalmente de história, não desconfiam que sejam ignorantes, são seguros de si e, o mais grave sinal, estão menos hipócritas que as pessoas que desempenhavam as mesmas funções há sessenta ou cinquenta anos.

Essa redução na hipocrisia dos altos funcionários é algo a temer, por contraditório que possa parecer. Porque a hipocrisia dos que estão nos grandes jogos decorre de um esforço intelectual que fizeram para criar um suporte narrativo e disfarçar, na medida do possível, as contradições entre ações e motivos alegados.

Quando se supera este estágio, há uma regressão à sinceridade e a adoção de modelos de ação primários. O Secretário de Estado dos EUA acredita no que diz e isto é preocupante.

É claro que ele é um negociante que sempre estará na porta giratória e, breve, será executivo da Boeing, da Lockheed Martin ou da Raytheon. Mas, além de um negociante, ele é um cruzado, um pregador religioso, um destinado por Deus a uma missão de não deixar os EUA perderem o que já perderam.

Sendo esta gente assim, trata-se de quem não admite insucessos. Ora, o ungido, investido em missão divina, não é passível de insucessos, porque o representado por ele, por definição, nunca perde. Resulta que ele agirá desesperadamente e fora de qualquer racionalidade.

É o que acontece hoje. Para sabotar um processo de integração com sólidas e antigas bases, que gera ganhos para todos os envolvidos, os EUA estão dispostos a coisas que, se não desencadearem a guerra nuclear, apressarão sua própria decadência. E isto os levará a despejar sua raiva no quintal da América do Sul, como playboys vândalos enfurecidos.

Is that all your luggage?

A definição de identidades nacionais chega ao ponto de fetiche nos países mais jovens e, sobretudo, naquelas que foram colônias. Há casos interessantes, como o dos EUA, onde a definição faz-se pela aparente indefinição que é o melting pot.

Com o Brasil não poderia ser diferentemente e a busca da identidade nacional segue os rumos convencionais, ou seja, é de raiz aristotélica, à procura da singularidade, da diferença específica. É claro que é presunçoso buscar singularidades culturais nacionais, quando se sabe que a maior parte das apontadas encontra-se em todas as partes. Todavia, as ciências sociais não temem serem presunçosas.

Gilberto Freyre é o grande definidor da identidade nacional e de suas singularidades. Agrupou tudo sob o guarda-chuva do luso-tropicalismo. Independentemente disto ser ou não correto, o fato é que as bases foram definidas por ele.

Cuida-se de uma narrativa que ampara muitas nuances das percepções que os brasileiros têm de si próprios. Convém a muitos propósitos, inclusive a incutir um sentimento difuso de inferioridade, algo que ex-colônias tendem a apresentar, até para manterem-se colônias pós descolonização.

Assim, o imaginário brasileiro acredita que há uma série de condutas e inclinações que nos seriam próprias, singularmente nossas. Todas, ou quase todas, como é previsível, são negativas ou, na melhor das hipóteses, têm valores neutros.

Logo que se começa a pensar neste assunto, é comum assustar-se com a absurdidade que é acreditar nestas singularidades, pois beira o óbvio que elas são características que estão por todas as partes e, assim, não são absolutamente singularidades.

Os gênios do controle social mediante narrativa fizeram, por exemplo, que ingressasse no imaginário coletivo brasileiro que a desonestidade e a preguiça são singularidades culturais nossas. Isto é tão estúpido quanto nocivo, pois reage com o moralismo de raiz reformada e tem os efeitos previsíveis de desagregação e histeria coletiva que cega.

Pode ser que existam estas tais singularidades culturais nacionais, definidoras de alguma personalidade coletiva, mas nunca me dediquei a procura-las. Aquelas de que se fala são tão pueris que a empresa não parece atraente. Mas, eis que uma experiência pessoal pode ter me revelado uma!

Infelizmente, porque é uma chatice e não algo glamuroso, passo muito tempo em aeroportos. Um dia, dirigi-me ao balcão de check-in de uma companhia estrangeira, em um aeroporto brasileiro.

Diante da moça do check-in, entreguei-lhe meu passaporte brasileiro e ela cumprimentou-me, muito profissionalmente, com um good evening. Desconcertado – embora ainda pouco, nesta altura – respondi-lhe com um boa noite, em português brasileiro evidente. Não falei como algum gringo que se esforça para falar português brasileiro.

A moça prosseguiu e perguntou-me: are you going to Lisbon or to Oporto? Respondi-lhe: Vou para Lisboa, já um bocado desconcertado com o nível de ridículo em que se entrava.

A moça baixou os olhos e teclou umas coisas lá no computador do check-in e, afinal, olhou-me, com meu passaporte brasileiro numa mão, e apontou para a minha mochila e perguntou: is that all your luggage?

Respondi-lhe que a mochila era toda a bagagem que eu levava e, neste momento, eu percebi o que nos singulariza. Neste episódio tão banal quanto patético eu tive um alumbramento e percebi o traço fundamental da nossa identidade brasileira. Para finalizar, a moça devolveu-me o passaporte, entregou-me o cartão de embarque e disse: boarding time is ten o´clock, have a nice trip. Disse-lhe: muito obrigado! Na verdade, acho que já grato pela revelação.

A nossa singularidade são as malas imensas, obscenamente grandes, daquelas em que se traz o país a ser visitado inteiro, daquelas que podem servir para uma mudança definitiva, que ensejam pagamentos por excessos de bagagens, daquelas que podem aumentar o consumo de combustível do avião.

Eu, com apenas uma mochila nas costas, só podia ser gringo, mesmo com um passaporte brasileiro e falando português de um brasileiro legítimo!

O pesadelo de Kissinger.

Este texto foi inicialmente publicado em novembro de 2018. Hoje, está acontecendo o que se disse então há três anos e alguns meses. O consórcio anglo-saxão descumpriu os acordos feitos após o colapso da União Soviética e avançou a OTAN para as fronteiras da Rússia. Aniquilou a Ucrânia como Estado e patrocinou grupos neonazistas que realizaram um massacre no leste, tendo como alvos populações etnicamente russas.

A Rússia reagiu de maneira previsível, para defender seus interesses e sua segurança. A esta reação correspondeu a imposição de sanções econômicas à Rússia, bem como o furto de reservas russas mantidas em bancos ocidentais. Isto também foi previsível.

Previsível também será a acelerada desdolarização em escala mundial, bem como o colapso econômico da Europa, que depende da Rússia nos campos energético e alimentar.

Como tudo isto era, realmente, previsível, é o caso de se pensar numa implosão programada do sistema até então vigente e numa guerra a devastar novamente a Europa.

A conformação geopolítica mundial ainda vigente – embora em vias de esgotamento – deve-se muito às idéias e ações de Henry Kissinger, um judeu bávaro inteligente. Richard Nixon percebeu esta inteligência e o teve sempre ao seu lado. Outros presidentes estadunidenses posteriores contaram com seus conselhos.

Kissinger percebeu algo que não é tão simples, sobretudo considerando-se os níveis intelectuais médios e a propensão a pensar ideologicamente enviesado ou fazer puro wishful thinking.

Ele percebeu que a China, inevitavelmente, seria grande novamente e que isto era apenas questão de tempo. As potências com mais de dois mil anos de história podem sofrer declínios ou serem brutalmente exploradas por alguns períodos, mas reerguem-se.

O domínio global dos EUA ampara-se no dólar como moeda de reserva e de troca internacional e na sua capacidade bélica. Este modelo emergiu do pós segunda grande guerra e foi renovado no início da década de 1970, sob inspiração de Kissinger.

Quase todas as transações comerciais internacionais são fechadas em dólares norte-americanos e mediante o sistema SWIFT de clearance interbancário. Isso significa que todos os que transacionam precisam comprar dólares para fechar suas operações e assim o dólar tem demanda garantida, o que permite aos EUA simplesmente fabricá-los.

O petrodólar faz parte da renovação que se fez no início da década de 1970. Acordos celebrados em 1973 determinaram que todas as transações a envolverem petróleo seriam necessariamente liquidadas em dólares norte-americanos. A moeda, que perdera conversibilidade em ouro, passou a ter outro lastro forte e garantia de demanda constante.

Acontece que a aristocracia estadunidense aspira ao domínio mundial hegemônico e não disfarça este desejo. Não importa aqui que o faça amparada em discurso religioso meio primário, não cuido das justificativas para o destino manifesto, de tão tolo que isto é.

Para o domínio total, nos princípios da década de 1970, era necessário evitar a aproximação entre China e Rússia. E isto Kissinger conseguiu e ainda conseguiu mais. Fez a China comprar notas promissórias dos EUA em troca de manufaturados que permitiram conter pressões inflacionárias.

Isto funcionaria bem até certo ponto, se outros posteriores ajustes fossem feitos. Todavia, parece ter havido escassez de Kissingeres recentemente. A fúria hegemônica, cada vez mais religiosa, impeliu os EUA a uma beligerância típica, que anuncia as fases de declínio.

E finalmente, depois de aberta uma guerra comercial insana, eis que a China percebeu a necessidade de abandonar o dólar como meio de troca em todas as suas transações e como moeda de reserva. Claro que não é algo simples, nem que se faça do dia para a noite, mas está em curso.

Contudo, o mais extraordinário foi ter conduzido a que se formasse uma aliança estratégica entre China e Rússia, o que, a toda evidência, é o ponto de travagem da aspiração hegemônica dos EUA.

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