Lentamente, surgem aqui e acolá pessoas encantadas com a inteligência de Piketty, que se põem a escrever sobre desigualdades. Uns piquetizam a mencionar-lhe o nome, outros, como é comum, principalmente na igreja acadêmica, fazem da omissão nos créditos sua originalidade. De qualquer forma que seja, é bom que se fale do que escreve Piketty e que se o reproduza com outras palavras, porque o homem é inteligente.

Piketty vaticina um momento de provável ruptura social , de eclosão de revoluções: seria quando os 10% mais ricos estivessem a apropriar-se de 90% das riquezas. E vaticina que para se evitarem as revoluções, neste ponto, o controle não poderia limitar-se à repressão física, pois seriam necessários novos meios de controle por narrativa de justificação.

Ou seja, um dos dois meios clássicos de controle social, a narrativa via imprensa corporativa, teria de se aprimorar, para juntamente à tradicional repressão física conterem as revoltas dos milhões de esmagados pelo nível obsceno de concentração de riquezas e rendimentos. Alguém precisa dizer isso claramente, com sólido embasamento teórico.

Todavia, a questão dos meios de contenção que serão usados e de suas eficácias traz alguns problemas. E eles passam pela projeção do que será o caos – e mesmo se será o caos – quando se atingirem os níveis máximos de concentração que antecedem à ruptura social.

A hipótese de eficácia dos controles sociais segmentados, ou seja, repressão física e narrativa de justificação, superpostos e precisamente localizados conforme os grupos destinatários, pressupõe algo que não se mostra tão evidente que haja: linguagem.

No que toca ao controle por meio de narrativas de justificação, ou seja, de discursos que naturalizam as desigualdades, é muito claro que demandam dos receptores que mantenham um grau mínimo de articulação de linguagem, para que percebam o que se lhes diz. E para que alguns grupos possam manter um domínio ainda que precário da linguagem, precisarão reter algum conforto material, o que está na fronteira da contradição com a situação material que haverá quando os 10% de cima detiverem 90% de todas as riquezas.

Para enganar é preciso que as vítimas continuem enganáveis, ou seja, que possam perceber o discurso a elas destinado. A primeira coisa necessária para que esta condição seja atendida é que esses grupos disponham de tempo. Ora, no caos, na vida como luta cotidiana e imediata, o tempo torna-se algo muito fugidio.

Tende-se a achar que o controle por meio de repressão física seja algo mais primário, a demandar menos dos destinatários. Mas, ele também, para ser eficaz como controle – e não apenas como eliminação – implica que os controlados retenham algum nível de linguagem, porque a repressão física é também um discurso moral.

Embora o controlado não precise necessariamente sentir-se merecedor do castigo físico, ele precisa sentir-se castigado. A pancada tem de ser percebida como castigo, pouco importando que o receptor tenha-na como justa ou injusta. Ora, sem linguagem, não se percebe a pancada como castigo, senão como ações e reações naturais, que são riscos comuns ao dia-a-dia da caça ou da coleta.

A cerca eletrificada que separa a horda de miseráveis famélicos não terá para eles qualquer conteúdo moral: será uma cerca eletrificada e só, que eles tentarão transpor, mesmo que morram ou se machuquem severamente.

E aqui chega-se ao ponto: a concentração em níveis absurdamente altos produzirá hordas famélicas que terão regredido na posse da linguagem e,  para contê-las, mais que aprimorar-se o controle via narrativa, será necessário excluí-las como na natureza, ou liquidá-las. Neste ponto, não se convence nem se é convencido…