Os poderes do Estado são diversos e não se limitam à antiga e histórica tricotomia proposta por Montesquieu. Essa abordagem, na verdade, supõe um Estado democrático, contratual e constitucional. E, na origem, supunha situações bastante específicas e particulares, historicamente e geograficamente definidas.

A suposição deve quase tudo à teoria da representação, em que se atribui a soberania ao povo, que a exerce por meio de representantes. Essa entidade imaterial chamada Estado nada mais seria portanto que a organização da vontade popular em uma entidade detentora do monopólio da violência e da feitura de regras válidas para todos. Eis o poder do Estado: fazer regras gerais.

Para fazer regras gerais e impo-las coercitivamente o Estado dispõe de tantos poderes quantos forem necessários e previstos no seu pacto fundamental, o que atende pelo nome de constituição. E, para que esses poderes funcionem, o Estado dispõe de tantos órgãos quantos a constituição preveja.

As pessoas que atuam nestes órgãos são todas servidoras públicas, em sentido amplo. Àquelas que detém a capacidade de inovação na geração de regras – o que somente possuem com legitimação popular – costuma-se chamar mais especificamente agentes políticos.

No Brasil, são agentes políticos todos os governantes e parlamentares eleitos popularmente e os ministros integrantes do tribunal constitucional, que retiram sua legitimidade política-institucional da nomeação pelo presidente da república – Chefe de Estado – e da aprovação pelo Senado da República.

Agente político é o sujeito que se encontra investido por vontade popular – ou por essa vontade derivada naquela de algum representante – em algum cargo que lhe confere atuação na formação de regras gerais, impostas a todos os cidadãos. O político que qualifica o agente significa estar em posição de escolher entre várias opções, de escolher como representante da soberania popular.

Magistrados – que não os ministro do tribunal constitucional – não são agentes políticos, senão servidores públicos. Têm um dever específico de cuidar pela aplicação das leis em conflitos específicos entre pessoas, naturais e coletivas. São servidores cuja tarefa é resolver conflitos e cuja margem de atuação é a verificação da adequação de uma posição ao molde legal.

A prová-lo está a circunstância de que ao magistrado não é permitido deixar de aplicar a lei, exceto se a considerar inconstitucional, declarando precisamente porque a lei contraria a constituição. Fora disso, embora os desvios sejam comuns, não está na sua vontade aplicar ou não uma lei, por critérios que não sejam os de constitucionalidade. Não há na sua atuação, portanto, qualquer conteúdo político. Ou, melhor dizendo, não deveria haver.

Pretensões de importância desmedida e descasada do que se encontra na constituição abundam no sistema judiciário brasileiro, que confunde legitimidade política com atribuição legal de órgão constitucionalmente previsto. Privilégios outorgados àlgumas classes de servidores, como aos magistrados, servem para aumentar a presunção e a deformação institucional.

Garantias dadas aos magistrados, apenas porque se julgaram necessárias para um melhor desempenho da função, são confundidas com privilégios de cunho social e remuneratório e entram na lista das causas da deformação judicial reinante. Garantias que são invocadas como direitos divinos, como algo que não podia ser diferentemente estabelecido, embora seja evidente que tudo quanto é jurídico podia ser diversamente estatuído, bastando que o parlamento assim o queira, ou as baionetas, por exemplo.

O poder judicial brasileiro é cariíssimo e a este enorme preço não corresponde um serviço proporcionalmente bom. Ao aumento do seu custo, verificado de vinte e poucos anos para cá, não correspondeu aumento de sua utilidade pública, porque a ampliação das possibilidades de pedir-se algo judicialmente decorreu do aumento do catálogo dos direitos, não de um melhor funcionamento real do órgão.

Não tem a suficiente fiscalização social de seus custos e de suas utilidades e por isso fecha-se na conformação de uma burocracia kafquiana, com ares de congregação de semi-deuses a quem não se podem pedir contas. É verdade que tenta mostrar-se como um órgão republicano, ou seja, aberto à verificação do público pagante. Todavia, essas iniciativas são basicamente diversionismo, na medida em que os supostos controles são meramente internos.

Quando se fala em controles, reagem virulentamente, incitando a confusão. Sim, porque não se propuseram quaisquer controles da atividade funcional do órgão, apenas da sua estruturação administrativa e orçamental que, evidentemente, nada tem com o desempenho da função de julgar. Nisso, na função principal, não se quer meter a mão, embora seja conveniente que se metam os olhos, até porque as coisas públicas devem ter publicidade.

Se alguém goza de liberdade para desempenhar sua função de aplicar leis, pouco importa que esteja impresso, no seu contracheque, como entidade pagadora, o poder judiciário ou o ministério do planejamento. Afinal, o tesouro nacional é um só! Aqui surge uma das maiores empulhações institucionais que se conhecem no Brasil: a autonomia administrativa de alguns órgãos constitucionais.

Essa autonomia foi elevada, acriticamente, a mito, a garantia fundamental para a função, o que não é. Convém lembrar que em muitos países europeus, por exemplo, a autonomia da função judicial está consagrada e resulta bem, sem que haja uma estrutura administrativa própria. Os juízes, enfim, são servidores do Estado e as instalações, os funcionários, os contratos, são geridos por um qualquer ministério do Estado, geralmente o da justiça, que paga as contas e pronto.

Não causa qualquer espanto isso, ademais bastante trivial. Espanto deveria causar um órgão constitucional quase totalmente autônomo dentro do Estado, como se uma e outra função fossem compartimentos estanques e separados, a não precisarem de adequação ao interesse público maior. Nisso resultou a propalada autonomia orçamental dos órgãos constitucionais, ou seja, na sua quase total liberdade de gastar o que lhe aprouver dos dinheiros públicos sem dar satisfações aos pagadores.

Todo agente público, seja ele servidor, seja ele agente político, deve satisfações do que faz no desempenho das funções públicas. Tanto é assim que as decisões deles submetem-se ao princípio da publicidade, ou seja, devem dar-se a conhecer amplamente. Isso é verdade para atuações relacionadas à função específica dos órgãos, assim como para aquelas meramente de gestão interna. Por isso mesmo é que se publicam sentenças judiciais e se deviam publicar amplamente todos os outros atos de gestão.

Aos agentes políticos eleitos podem-se dirigir inúmeras críticas, mas algo é certo: dão sua cara às tapas quase que diariamente, na imprensa. Expõe-se por suas decisões ao julgamento público, embora fosse desejável que essa exposição passasse por uma divulgação mais ampla e menos seletiva.

Dos servidores públicos dos órgãos do sistema judicial já não se pode dizer o mesmo. Além da vasta maioria da população não ter a mínima idéia do que são, do que devem ser e de quanto custam, contam com uma forte cumplicidade corporativa e mediática. Dão ao luxo de se porem na posição de impassíveis de críticas ou de publicidade e violam assim o princípio republicano.

Lê-se, aqui e ali, discretamente, que o presidente do tribunal constitucional reclama um aumento salarial para os funcionários dos órgãos judiciais de 56%. É uma aberração obscena um homem postular isso com total naturalidade e, ademais, postula-la com o desejo de que seja coisa não discutida, quer dizer, que seja destinada a aprovação porque reputam devido e pronto.

Seria necessária uma reunião de hóspedes de manicômio para que se declarassem os funcionários do judiciário mal pagos, no Brasil. E seria necessária a mesma reunião de selenitas para reputar que as atuais remunerações não estão em flagrante desproporção com a utilidade do serviço e com as demais remunerações que o setor público paga. Nada obstante, querem um aumento de 56% e provavelmente ficarão com raiva e ameaçarão com chantagens quem no governo e no parlamento se atrever a propor uma discussão pública ampla do assunto.