Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Fernando Pessoa e a liberdade.

Gosto muito dos livros em edições de bolso. Encontrei o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, neste formato, da editora Companhia de Bolso, na livraria Saraiva em Recife. Desde então, ando lendo-o. Hoje, deparei-me com este belíssimo texto, cuja lucidez não se encontra muito comumente:

“A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.”

Olívia Gomes

4 Comments

  1. Pedro

    Bonito mesmo. Nietzsche, com menos beleza, disse algo semelhante no Assim falava Zaratustra: “O vosso amor ao próximo é o vosso mau amor por vós mesmos. Fugis para junto do próximo a fim de fugir de vós mesmos e desejaríeis fazer disto uma virtude; mas eu vejo claro em vosso ‘altruísmo’. Não vos suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro. O vosso mau amor por vós mesmos transforma, para vós, a solidão em cárcere.”

  2. Monte Alverne Sampaio

    Que sublime estado de espirito!!!
    Que mirvana!!!

    Que beleza de viver!!!, que esta sociedade consumista não nos deixa nem chegar perto, talvez somente, em pensamento

  3. Olívia Gomes

    É bonito mesmo. Nós remete ao que verdadeiramente somos.

    • Olívia Gomes

      É bonito mesmo. Nos remete ao que verdadeiramente somos.

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