É notável como alguns prefácios ou notas introdutórias podem ter a mesma qualidade que as obras que eles anunciam. Não se trata de serem o mesmo gênero, é claro, mas de serem memoráveis, de merecerem lembrança tanto quanto a obra.

O que me faz dizer isso é a introdução à Farsa da Boa Preguiça. Ela e a peça de teatro são de Ariano Suassuna. A peça teatral faz-me ter os cuidados que tenho com a poesia, porque é preciso ve-la e não apenas le-la. Por isso, a introdução deixa-me mais à vontade, ela que é um texto contado e corrido, simplesmente.

Ariano, em estilo direto e clariíssimo, diz de onde veio a obra, quais as condicionantes dele, quais as objeções que recebeu, como respondeu às objeções, porque escreveu a peça, o que quis dizer nela.

Desses ditos, impressionaram-me dois: a exposição das condicionantes do autor e a apresentação das objeções que recebeu e das refutações a elas. Ele não pára a descrever sua vida, mas fala dela e conta uma e outra estória. Ele não faz pesar sobre os objetantes a lógica que conhece muito bem.

Não omite o alcance das contrariedades à sua peça. Tampouco as detalha. Exemplifica com uma frase de alguém que tentou, na época da estréia em 1960, atingir a obra com a frase de efeito. Alguém disse que o português era a língua viva mais morta que havia.

Era uma forma de chamar de anacrônico o autor de iberismo declarado. Uma forma superficial, de superficialidade que se devia perceber bem naquele tempo e que se percebe evidentemente hoje.

O gôsto de alguma coisa, desde modos, falares e obras artísticas, passa pela identificação, que é um canal de percepção da realidade e da criação. É mais fácil gostar ou desgostar de alguma coisa que se perceba, que se possa apreender conforme modelos que já tenhamos. Assim, por exemplo, qualquer original em português será mais autêntico para o leitor lusófono que alguma tradução ou obra em outra língua, por mais que este leitor seja fluente na outra língua.

A identidade, estabelecida primeiramente pela língua, é o que certos universalismos e cosmopolitismos sempre quiseram negar, com insistência invulgar. A negativa, todavia, não passa de tentativa de imposição de outra identidade particular, alçada por mágica à condição de denominador comum.

Por isso falei em Max Weber; pelo fetichismo que nele se encontra da unidade em torno aos valores anglo-saxões e protestantes. Weber conseguiu obrigar gerações a aceitarem uma particularidade como se fosse o modelo ideal do universal triunfante. E o que nele era uma idéia – idéia voltada a convencer e criar poder, portanto – nos imitadores de outras latitudes tornou-se caricatura, porque nunca se despiram inteiramente de suas ibericidades.

Ariano diz que tem preconceitos com os povos nórdicos e que se identifica com ibéricos, andinos, árabes, judeus, gregos… É óbvio que um cavalheiro inteligente tem preconceitos, assim como é óbvio que os afirmando não está a dizer que mataria por eles.

Pois diz Ariano que nós, povos castanhos do mundo sabemos, ao contrário, que o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criador, livre e gratuito.

Ariano, de certa forma, é a antítese do pedantismo e, talvez, síntese de uma elegância aristocrática que está na ausência de travestimento. Uma coisa que é possível quando o sujeito percebe-se, não como puro, mas originado de algo muito bem definido.