O fato de termos consciência de nós mesmos e de termos subjugado as demais espécies na terra, levou-nos à busca tão frenética quanto justificável da diferença específica a permitir a definição do humano. Neste processo, todavia, elementos místicos adentraram e a confusão instalou-se.

Não havia porque, racionalmente, confundir diferença específica com natureza. Isso é derivar para o axiomático e isto ocorreu com quase todos quantos tiveram bons êxitos no isolamento da diferença específica. O sujeito que encontrava – ou cria tê-la encontrado – apressava-se a dizer natureza humana. Muito fetichista, evidentemente; o fetiche do dedo de Deus encontrado sorrateiramente…

Houve um debate interessante, na Alemanha, entre Michel Foucault e Noam Chomsky, dois intelectuais valorosos e rigorosos. Não sei a data do encontro, mas a julgar pelos trajes, deve ter ocorrido em 1969 ou 1970, por aí.

Chomsky, mansamente, constrói um discurso que culmina na postulação da potencialidade criadora da linguagem como a definidora da natureza humana. Ele poderia ter-se ficado pela diferença específica e muito provavelmente ainda estaria entre o axioma e a petição de princípios, mas foi além: natureza humana!

A linguagem, qualquer um lembra-se, não é nossa exclusividade. Daí ser necessário acrescentar-lhe a potencialidade criadora. Porém, esta potencialidade é a própria linguagem, meio combinatório, a par com código e instrumento de comunicações. Vários mamíferos permitem observá-lo, na medida em que se deixaram domesticar ou perceberam as vantagens de viver perto dos humanos – alguma vantagem deve haver.

Estranho também é definir por potência, pois aproxima-se de nada. Um carro não se define por seu motor ser capaz de, a certas regimes de rotações, desenvolver cem cavalos vapor. Ele pode, sim, definir-se por mover-se e chegar, em dadas condições, a tantos ou quantos quilómetros por hora de velocidade. Ou seja, ele define-se por ato.

E aí percebe-se que o humano, no que tem de natural, é profundamente inespecífico. Por natural ele precisa alimentar-se, excretar, fornicar, dormir. A história, essa a marca humana, nada tem de natural nem é potência, sim uma sucessão de atos, construídos uns sobre outros e muitas vezes drasticamente dissociados.

 A localização da diferença específica na potencialidade linguística e sua caracterização como elemento natural é de inspiração curiosamente religiosa. Curiosa, porque a criação divina não fica maculada pela não naturalidade do humano. São coisas que não interferem reciprocamente. Mas as prisões da alma são fortíssimas…