Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Jorge Rafael Videla abre o jogo.

O ex-general e ex-ditador da Argentina entre 1976 e 1981 deu entrevista à revista Cambio 16, espanhola. Ele encontra-se preso, atualmente, a cumprir sentença perpétua por inúmeros homicídios cometidos no exercício do poder.

Li a entrevista no blog do Emir Sader, que propõe uma citação de Shakespeare, como prévia à suas considerações e à transcrição da entrevista propriamente dita. A citação é de uma frase de Hamlet: Há lógica na loucura.

De minha parte – sem discordar de Shakespeare – digo que a loucura é a lógica levada às últimas consequências. Assim, há mesmo lógica na loucura, há demasiada. Discordo, todavia, de Emir Sader quanto a ser questão de loucura a capacidade de Videla articular o pensamento e dizer as coisas claramente.

Diz as coisas claramente, o que não afasta o dizer as coisas parcialmente e segundo um ponto de vista e um conjunto de interesses. Ele defende-se na situação do homem que aparentemente está perdido totalmente, mas é o homem que não se acredita ainda irremediavelmente perdido. Sim, porque ele defende-se na forma clássica, ele acusa quem buscou sua punição; ele age no âmbito político, que afinal é o único das ações.

Videla diz que sua situação perdeu-se com a ascensão dos Kirchner, o que é verdade e é honroso para estes. Diz que os Kirchner buscaram puni-lo – fazê-lo cumprir a sentença a prisão perpétua em um cárcere e não em casa – por revanchismo, o que é um sem-sentido.

É sem-sentido porque toda punição é um revanchismo.  Videla é desonesto ou ignorante nessas suas considerações, porque finge ou desconhece um dos caracteres sempre presentes em todas as penas: a retribuição. Ele gira em torno ao princípio de identidade e, ao dizer que A=A, diz nada.

É profundamente desonesto ao reivindicar princípios e conceitos jurídicos que a ditadura argentina não prezou minimamente. Ora, o revanchismo que move o Estado argentino contra ele é o mesmo que moveu a ditadura contra milhares de cidadãos argentinos e estrangeiros, com duas diferenças nada sutis:  1 – ele não será executado por revanchismo, ao contrário do que fez; e 2 – os punidos são uma pequeníssima fração dos assassinados pela ditadura.

Videla não é louco; é patife sem controle. Em alguns momentos da entrevista é precioso, porque está em situação desfavorável e já perdeu a ocasião de dar-se a mentiras muito evidentes. Esses momentos levam a comparações com os ditadores brasileiros, que sempre mantiveram um nível de hipocrisia muito mais elevado que o argentino.

Videla diz que eles deram um Golpe de Estado na Argentina, sem meias palavras. Que eles obtiveram do Presidente Luder – interino após a queda de Eva Perón – decretos que eram mais do que pediam e eram verdadeiras licenças para matar.

 Obtiveram as licenças e mataram, está claro. Mataram muitos. E, diz mais que chegaram a tal situação com forte apoio do empresariado argentino e da Igreja. Ou seja, instados a matarem mataram por vontade, dever e autorização dos que mandavam: os empresários e a Igreja.

No Brasil, os remanescentes da ditadura não dizem que deram um Golpe de Estado em 1964, não dizem que contaram com apoio da classe empresarial e da Igreja e, principalmente, não dizem que receberam dessa gente licença para matar e a utilizaram.

No tribunal, quando seu caso foi reaberto, Videla teve ocasião de dizer que todos os seus subordinados agiram por ordens suas, ou seja, assumiu pessoalmente milhares de homicídios… Claro que ele sabia-se já perdido, mas é uma honradez na perfídia que devia por a pensar muitos coronéis e delegados de polícia brasileiros.

Aqui, cultiva-se a confusão, a culpa difusa, a mentira, a falta de coragem. Assassinos e torturadores contumazes fazem papéis de covardes, a ponto de negarem os fatos.

1 Comment

  1. Sidarta

    Muito boa postagem!

    É preciso que essas questões não sejam esquecidas alhures e, muito menos, aqui…. mesmo depois da morte dos Videla, dos Astiz e de muitos outros.

    Arrisco-me a fazer um “antiparalelo”, talvez impertinente, não uma descomparação, entre o conceito de punição do espiritismo e o da justiça brasileira.

    Para mim, entendo que o espiritismo imagina que se a justiça não consegue “justiçar” o bandido aqui na terra (há muitos casos novos e velhos para citar… o que não há é espaço aqui), que ele seja forçado a reencarnar e venha para cumprir outra temporada de sofrimento na terra (algumas linhas do budismo divergente vão também por esse modelo).

    O antiparalelo é: já que a justiça brasileira não recebe autorização do congresso para pegar os revanchistas e colocá-los na cadeia, dá-me vontade, pela primeira vez na vida, de ser argentino e poder ter a satisfação de não ficar no delírio de que “em outra reencarnação” o pessoal daqui que fez as mesmas coisas que os militares argentinos que estão presos voltará reencarnado como suínos ou cães de rua.

    Para os budistas divergentes (as massas para quem os dirigentes acenam com uma boa ou má reencarnação para mantê-los em linha e sem se revoltarem contra as classes dominantes), apesar de serem sensientes, esses animais são considerados como reencarnações de pessoas com “almas cebosas” destinadas a pagar penitência de volta na terra.

    O primeiro koan de um treinamento em budismo, o KOAN MU, refere-se a esse tema sobre respeitar um cachorro de rua por ser um ser sensiente ou maltratá-lo por ser um animal inferior. Entender esse koan é atravessar o “gateless gate”.

    Como as duas causas do sofrimento são a impermanência e a frustração, pelo menos, se fosse argentino estaria menos frustrado e não dependente de que modelo espírita de justiça aos fugitivos funcionasse no Brasil.

    Por aqui, desconfio de que nenhum modelo de justiça séria funciona como esperado e, sou capaz de apostar, que muita “alma cebosa” conseguiu subornar o chefe do departamento de reencarnação no céu e baixar aqui de volta no Brasil como “cachorro de madame”.

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