Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O Bispo, o padroeiro da cidade e os índios, na procissão em Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi não tinha bispo, mas havia alguns padres de várias tendências políticas e sociais, e até de diferentes opções sexuais.

O padre Almiro, por exemplo, andava de lambreta e quase sempre com uma paroquiana ajudante de secretária do tributo à garupa. Disse certa vez o cronista Leo de Picos, que o referido padre também aparecia de vez em quando, devidamente disfarçado de representante de laboratório farmacêutico, no bordel de Alaíde Macarrão.

Outro reverendo, muito piedoso, adorava as criancinhas.

No dia da festa do santo padroeiro da cidade, invariavelmente, o senhor bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi deslocava-se de carro pela estrada de terra desde a sede da diocese, descia do carro perto da entrada da cidade, lavava o rosto e as mãos em uma bacia dentro de um armazém de secos e molhados, trocava toda a roupa de cima empoeirada e colocava as vestes completas e o chapéu imponente de bispo, tudo isso ao som de cânticos religiosos ensaiados pelas beatas (“ma non troppo”), para iniciar o cortejo solene até a igreja matriz, de onde dirigiria a procissão.

Ao longo do percurso do cortejo do bispo, ao som da banda da Sociedade Musical 20 de Janeiro, a gente, para ver melhor, subia até em postes de luz e nos bustos de concreto de dois notáveis anusmundenses entronados na praça anterior à da igreja matriz.

O evento era tão solene que algumas pessoas tentavam e conseguiam furar a proteção policial do bispo, quebrar o protocolo e tocar as suas vestes.

Era barato subornar um guarda municipal para chegar mais perto do bispo, que era um sujeito alto e magro, elegante mesmo, quase uma reprodução do seu chefe e ídolo em Roma, o papa Pio XII, a quem conseguia imitar nos gestos de concessão de benção, com os três dedos da mão direita em movimento de cruz e com a cabeça voltando-se continuamente da esquerda para a direita, de modo a que o campo magnético divino emitido por seus olhos e suas mãos tivesse uma amplitude de 180 graus e não deixasse ninguém fora do seu alcance.

Como o seu mentor em Roma, tinha sido treinado para olhar para o nariz das pessoas, e não para os olhos, como uma forma de evitar um contato mais revelador das fraquezas de também ser mortal; por conta disso tinha um olhar natural já meio estrábico.

Mentes mais sensíveis alegavam que conseguiam sentir um “arrepio” quando eram atingidas pelo tal campo magnético divino emitido pelos olhos e mãos do bispo, e muitas delas chegaram a ser entrevistadas pelo locutor da estação de rádio da cidade próxima de São Raimundo Nonato, o Grande, também no Piauí, descrevendo sensações parecidas.

A única dissonância nos relatos foi a de Biu de Serafim, ajudante no bordel de Alaíde Macarrão, que tinha tomado umas cervejas antes da chegada do bispo e disse que o impacto do campo magnético divino da benção episcopal lhe pegou da cintura para baixo e provocou uma súbita crise de incontinência urinária, depoimento que foi transmitido pela rádio, pois a transmissão era “ao vivo” e não deu tempo de cortar.

Os padres ficavam de olho nessas pessoas que davam entrevistas à rádio e depois as procuravam para saber se tinha ocorrido mesmo algum milagre digno de divulgação.

O sonho da comunidade e da igreja em Anus Mundi era o de ter um santo local, coisa muito comum em qualquer cidadezinha mais pequena do interior da Itália.

A história dos milagres do desejado santo não precisaria ser escrita e ser um dogma de fé acreditá-la, bastava conversar com alguma testemunha ocular ainda viva e a credibilidade seria total. Se o milagre com o toque no manto do bispo acontecesse perto da fonte de água na praça, aí a fonte se tornaria também milagrosa e o negócio da água benta engarrafada ia ser monumental para a igreja e para a prefeitura.

Lá pelas cinco da tarde, finalmente, o cortejo do bispo chegava à igreja matriz.

Na hora da procissão com a imagem do padroeiro da cidade, São Sebastião, um santo importado do estrangeiro, a comoção era geral, com pessoas pagando promessas por graças conseguidas “in totum” ou “em parte”; se alguém estivesse caminhando com um pé descalço e o outro com uma sandália é que a graça pedida não tinha sido totalmente alcançada. Esse acordo, e o “in tutum” ou “em parte”, tinha sido feito com o pároco de Anus Mundi.

Na saída da igreja matriz, todos se esticavam para ver a imagem do santo sendo martirizado, amarrado a um tronco, com o peito nu e todo crivado de flechas.

Um belo dia, nesse momento dramático da saída da imagem do santo da igreja matriz, o futuro Dr. T, um grande médico anusmundense da atualidade, (… e não aquele ginecologista meio “boiola” do filme “Dr. T e as Mulheres”, o ator americano Richard Gere), que era ainda criança pequena, mas já muito curioso sobre ferimentos e como tratá-los, perguntou a um tio que o tinha levantado nos braços para melhor ver a passagem do andor do santo: “tio, por que ele está todo flechado?”

E o tio respondeu: “veio da Itália para ser santo no Brasil e foi se meter a besta com os índios…”.

3 Comments

  1. L'éleve

    Andrei,

    Através dessa série de episódios da já curiosa cidade de Anus Mundi, você está conseguindo relatar uma parte divertida da história comum das pequenas cidades do Nordeste do Brasil – será que não tem também uma Anus Mundi no interior da Paraíba?

    Não aquela que vai para os textos ensinados nas escolas primárias, mas a que corre de pessoa a pessoa que conviveu ou teve alguma ligação com alguém que conheceu um Biu de Serafim da vida, o qual deve ter testemunhado e até intermediado a tramitação de muitos negócios lícitos e ilícitos , de acertos de detenções e de solturas, de acertos de perdão de pecados, e até de negociação de preços de serviços “privados” das meninas de Alaíde Macarrão.

    Deve também ter acompanhado cenas da infância e do crescimento do precoce Dr. T anusmundense, e do seu sutil tio que almejava um santo local para Anus Mundi, e não um santo importado da Itália, e tumultuou a cabeça de uma criança, que se tornou depois um médico de verdade mas que, penso, naquela ocasião ainda não conhecia o “samba do crioulo doido”.

    Daqui do mosteiro desejamos um ótimo Natal e aguardamos mais estórias; e peça aos seus colaboradores que se inteirem e que contem também coisas do interior da Paraíba.

    Com um abraço de,

    L’éleve

  2. Maria José

    Sidarta você está se revelando .Parabéns e continue com suas estórias.

  3. Sidarta

    Cara comentarista Maria José,

    As “estórias” não são minhas, eu as escuto de amigos e as relato para Andrei tentando manter o máximo de fidelidade ao que ouvi.

    A descrição de eventos pitorescos ocorridos em outras “Anus Mundi” é bem-vinda e você também poderia ajudar na divulgação da história real contemporânea do Nordeste do Brasil com fatos que estão na sua memória.

    Sidarta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *