A opção do 01% brasileiro para o golpe de estado que visa a impedir a reeleição da Presidente Dilma ou a eleição do ex-Presidente Lula, em 2014, não foi pelas baionetas. O momento permite alternativa mais simples e barata e, ademais, com vantagem de manter aparências democráticas: é o golpe judiciário, dado no mais alto tribunal de justiça do país.

O julgamento da ação penal 470, ainda não encerrado totalmente, foi o ensaio geral do modelo. Inaugurou-se solenemente a condenação criminal sem provas, o processamento no stf de réus que deveriam responder em primeira instância, a supressão do direito de defesa ampla, a tentativa de encarcerar réus antes do trânsito em julgado da sentença e mesmo que não haja ameaça de fuga e, o mais significativo, a tentativa de emascular o Congresso Nacional e decretar a cassação de mandatos parlamentares sem a intervenção do próprio Congresso.

A facilidade com que esse enredo foi posto em cena deveria servir de alerta para quantos ainda crêem não estar em curso o golpe de estado. Aberrações jurídicas evidentes foram praticadas sob os aplausos da imprensa ávida pelo linchamento dos réus. E este apoio mediático incutiu em grandes parcelas do público a impressão de que se estava a fazer grande campanha de limpeza moral. O público, de resto, é muito inclinado ao linchamento e para ele sabe bem o gosto a sangue.

É interessantíssimo notar a facilidade de se cooptarem juízes da corte suprema para esta empreitada de estupro da constituição e da democracia. Não se trata de suborná-los ou de prometer-lhes vantagens, basta que seus egos sejam acariciados na imprensa, para que assumam a tarefa espontaneamente, em busca de nacos do poder estatal.

As pessoas que conseguem auto-limitar-se e passar imunes pelos fotógrafos e repórteres contam-se em número bastante reduzido. Tão ou mais reduzido é o número dos que prezam o jogo democrático para além do discurso nitidamente hipócrita. Assim, estão sempre presentes as condições para a judiciocracia, desde que as personagens erradas sejam escolhidas para os postos mais altos.

O erro quanto à personagem do juiz do supremo tribunal e do acusador-geral da república dá-se com relação ao caráter e não prioritariamente com relação à capacidade técnica. Este último aspecto é parte de uma farsa mitológica, porque os elegíveis todos têm condições de manejar as técnicas jurídicas, sejam no campo mais rasteiro, sejam na parte mais complicada da teoria do Estado.

O indicado, independentemente da coloração política que tenha intimamente, deveria ser o mais discreto e quiçá com o maior complexo de superioridade posssível. Claro que alguém poderá objetar que incorro em contradição, porque complexo de superioridade seria campo fértil para a sedução mediática. Mas, não é nada disso, antes o contrário.

A abertura para a sedução ególatra vem antes do recalque e do íntimo conhecimento das insuficiências. Ou seja, o oportunista que se entrega por promoção pessoal extrai-se muito mais frequentemente do campo dos aparentemente mansos e sensatos que dos realmente auto-suficientes. Os seres menores, a maioria estrondosa naturalmente, dão rasteiras e pontapés por baixo da mesa e, pior, depois revelam as práticas. Com esses dá-se o golpe.

Por outro lado, é ilusório acreditar em reações populares eficazes, por maior que seja a capacidade de mobilização de líder extraordinário como o Lula, por exemplo. O caso é que as pessoas inclinam-se facilmente ao imobilismo, reféns de uma crença quase inabalável em que as coisas tendem a não piorarem para elas.

Por isso, as tais reações populares tendem a ser muito localizadas em corporações específicas como sindicatos, o que facilita sua classificação como defesas pontuais e perigosas, que devem ser vistas como ameaças à vida cotidiana do prototípico ser de classe média, aquele cuja maior característica social é o medo. Esse grupo tem medo de tudo que possa parecer ameaçador da aparente estabilidade e por isso não vê com bons olhos manifestações populares, nem se elas destinam-se a defender coisas vantajosas para a própria classe média.

Outra ilusão – auto-ilusão, talvez – que aponta a ineficácia das reações populares é da impossibilidade de retrocesso. Ora, para seguir o mesmo caminho tem-se o grupo que já aí está. O golpe é precisamente para mudar os rumos e retroceder a pouca melhora na distribuição de rendas obtida nos últimos dez anos. Por o não poder negar, o golpe não fala de economia sob tal perspectiva, fala apenas em moralidade.

A maior contradição interna ao golpe, quando ele adquirir mais inércia, será o ser apoiado por grupos que perderão com ele. Isso, se se tratasse de golpe militar e sucessiva instalação de ditadura mais ou menos abertamente seria problemático, pois os grupos insatisfeitos externariam sua insatisfação e teriam que ser reprimidos à força, o que sempre é complicado.

Todavia, no modelo novo de golpe, a necessidade de repressão violenta é afastada e a insatisfação quando emergir será conduzida a um beco-sem-saída. Ele operará por meio da interdição seletiva, no início, e em bloco, ao depois, de opções políticas, razão porque poderá manter eleições diretas. Tudo quanto for possibilidade real de escolha será banido judicialmente e os eventuais insatisfeitos ficarão sem possibilidades reais de escolhas e, pior, profundamente confusos.

Este cenário só poderá ser evitado se o Congresso Nacional o perceber e quiser regir a ele. Claro que parcela dos congressistas sentir-se-á à vontade para acomodar-se ao novo modelo, em que terão pouquíssimo poder efetivo, reféns de interdição judiciária seletiva e casuística, a partir da acusação mais pueril. Se não quiserem ser parlamentares emasculados, terão que reagir e fazer valer os poderes que só os eleitos têm, legitimamente.

O mais importante a ocorrer nos próximos meses será a reação do Congresso à cassação de mandatos de deputados condenados na ação penal 470. Ela não é automática, como quer o stf, mas depende de processo autônomo no Congresso. A constituição brasileira de 1988 não abriga a cassação judicial de mandato parlamentar, ainda que abrigue a posterior cassação de diploma do eleito, por faltas prévias ao processo eleitoral.

Um parlamentar legitimamente eleito simplesmente não pode ser cassado pelo judiciário, embora o stf insista nisso e conte com a enorme ajuda da imprensa na divulgação dessa aberração.