Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O mundo sou eu.

A uniformização de pensamentos anda tão avassaladora que a forma de estar na vida enunciada no título é cada vez mais segura. Acho que essa é a regra da atitude psíquica e social mais adotada presentemente. Ou seja, a regra que leva o sujeito a medir a tudo e a todos por si, certo de estar a utilizar a régua correta.

E, de fato, erra-se pouco, já que as padronizações implicam pequenos e marginais desvios. No básico, as maiorias estão a pensar, a temer e a desejar praticamente as mesmas coisas, o que permite a cada indivíduo sentir-se seguro com seu critério auto-refente de julgamentos. Indecente é o diferente, como já se dizia há muito na América do Norte.

Uma e outra vez, contudo, o indivíduo que assim se põe diante das atitudes dos outros surpreende-se. Surpresa, creio, profundamente tola e que somente poderia resultar de um hermetismo levado muito adiante. Ou seja, surpresa que poderia atender pelo nome de ignorância, sem mais atenuadores.

A descrição dessa postura é relativamente simples, porque ela consiste na redução das possibilidades aceitas, em decorrência da redução objetiva e subjetiva do conhecimento da realidade. Por outro lado a busca das motivações de sua extensa e vitoriosa difusão é tarefa a recomendar estudo mais cuidadoso. Eu arrisco-me a supor que a conveniência de se terem populações acríticas e utilizadoras de reduzido repertório de idéias tem um papel importante como motivação.

Essa atitude mental leva a situações desagradáveis, embora com pouca frequência. São os momentos em que o mundo não é o eu do julgador e ele e seu interlocutor ficam em suspenso, um na imensa surpresa de ver algo diferente, outro sentido-se quase ofendido pela arrogância de certas suposições.

Não sou propriamente um modelo acabado de desvio das uniformizações, mas não sou tampouco a confluência dos padrões dominantes de gostos. E acontece algo frequentemente de surpreender as pessoas sem querer, apenas porque elas sentem-se tão seguras de serem o feixe definitivo de padrões de julgamentos que me vêm perguntar coisas, podendo ficar simplesmente caladas.

Um dia desses, um sujeito, sem mais nem menos, fora de qualquer propósito de uma conversação já iniciada, perguntou-me por que eu não comprava uma TV de 50 polegadas, daquelas bem fininhas e extremamente caras. Primeiramente devo dizê-lo sem arrodeios – isso é um gesto de profunda arrogância. Sim, porque supõe que sua esfera pessoal possa ser diretamente invadida por alguém que parece conduzir os destinos da sua vida.

Eu fiquei profundamente desconcertado e desconfortável com a pergunta, por mais que ela pareça inofensiva e boba. Pode parecer inofensiva e boba quanto a uma TV, mas para passar de uma televisão a outros assuntos é apenas um passo. Fiquei mesmo com raiva do meu interlocutor e, depois da primeira suspensão do pensamento, cogitei de uma imediata resposta agressiva. Pensei em perguntar ao meu interlocutor porque ele não tinha uma biblioteca, assim mesmo, direta, simplesmente e arrogantemente.

Cogitei também fazer o mais comum, ou seja, dar alguma desculpa daquelas que se aceitam comumente, porque no fundo são alegações de fatos alheios que não excluem uma suposta comunhão de vontades. Diria que falta tempo para escolher a TV, que pesquiso os preços, que acho caro e todo um rol de evasivas que agradariam o interlocutor, porque no fundo eu desejaria a TV como ele e não a tinha por mero acidente.

Acontece que viver a dissimular cansa. Ora, eu não tenho uma TV de 50 polegadas porque não quero, pura e simplesmente. Se quisesse, tinha. E acontece também que as respostas mais sinceras podem ser as mais agressivas, embora a isso não se destinem. Teria sido melhor devolver a pergunta da biblioteca, que as pessoas, de tão brutalizadas, preferem as agressões pensadas àquelas involuntárias.

Disse então que não tinha a merda da televisão enorme porque não queria e foi pior. Meu interlocutor não apenas tomou-se de uma surpresa imensa como seguiu adiante na sua lógica de medir o mundo por si mesmo e sentir-se à vontade para os comportamentos mais invasivos possíveis. Ele perguntou-me então por que eu não o dava meu dinheiro!

Quer dizer, não podem ter algum dinheiro as pessoas que não queiram ter aquilo que todas querem. É terrível imaginar a que uma forma tal de pensar pode levar, quando as coisas vão a extremos. A invasão é justificada pelo gosto vulgar, médio. Todas as violências e proscrições são justificadas por algum desvio da vulgaridade que habita a cabeça do selvagem médio.

E assim segue seu curso a revolução das massas.

13 Comments

  1. Julinho da Adelaide

    Tive um professor de família muito rica de empresários que vivia tendo que responder por que era professor se podia administrar a empresa que era dele. Era um cara muito simples, andava com roupas simples, sandália de couro e de carro popular e por isso tambem era criticado. Uma vez chegou dirigindo um carrão, provavelmente de um irmão emprestado e ouviu de um aluno: Tomou vergonha, heim professor! Ou seja, tem que agir conforme o rebanho.

  2. andrei barros correia

    É isso, Julinho, agir conforme o rebanho.

  3. Julinho da Adelaide

    Se o professor dissesse que uma das vantagens de ser rico era fazer o que gosta seria tomado como um boçal e grosseirão. Mas às vezes as pessoas não dão outra opção.

  4. Davi

    É muito curioso como ofende os outros se você não se pauta ou deseja como eles. Muito pouco cristão…tem que ser gado mesmo.

  5. andrei barros correia

    Julinho,

    A tragédia da uniformização de gostos, pensares e expectativas revela-se muito nisso que apontaste: não há saída.

    Se você se cala, é um estranho. Se você é sincero, agride e parece arrogante. Se mente, é violento consigo próprio.

  6. andrei barros correia

    Davi,

    É assombroso como as expectativas são reduzidas. Geralmente, as pessoas fazem perguntas que só admitem uma respostas. Ou seja, no fundo não fazem perguntas, projetam as verdades em que creem.

  7. Julinho da Adelaide

    Andrei. Se me permite sair do tema, dá uma olhada neste vídeo bastante didático sobre as diferenças entre este governo e o passado.

    http://www.youtube.com/watch?v=Ig9pE6qwzxw

  8. Gustavo França

    Nesses dias ouvi a história de um analista federal em João Pessoa que passou pra juiz do Pará, exerceu a magistratura durante um ano, pediu exoneração e voltou a ser analista. Eu defini a atitude como sendo genial, pq tenho por doutrina o fato de que não valem apenas o dinheiro e o status na vida, mas a tranquilidade da consciência.Provavelmente teria tomado a mesma atitude!! Porém, como era de se esperar, muitos chamaram o cara de “louco”.
    A humanidade é uma onda!hehehehehe

  9. andrei barros correia

    Gustavo,

    Deve ter sido um escândalo esse caso. Como tu disseste, uma das saídas que as pessoas encontram para a surpresa, ou seja, para formatar a surpresa nas mentes é considerar o outro louco.

    Assim, escapa-se da possibilidade de pensar um pouco e perceber que as atitudes estranhas ou surpreendentes têm razões próprias, que bastaria ser um pouco aberto para compreendê-las.

    Mas, a uniformização é isso. Qualquer mínimo desvio do que se consideram as coisas desejáveis é uma surpresa ou uma loucura.

  10. Julinho da Adelaide

    Andrei. Lembra do caso Muricy. Recentemente Muricy Ramalho rejeitou uma proposta milionária da cbf para dirigir a seleção. Sempre sonhou com a seleção. Mas o fluminense não o liberou. Para ir teria que descumprir o contrato assinado. A cbf pagaria a multa rescisória. Ele não aceitou. Não ia descumprir o contrato que assinou. Levantaram mil teoria mirabolantes. Só não consideraram a mais singela. O homem tem palavra. Tem gente que tem palavra. Isso o rebanho não admite. Todo mundo precisa ter preço para que eu me sinta melhor sendo tão barato. No fundo, mesmo os desprezíveis têm suas vaidades. Nada satisfaz mais um canalha que se ver no outro. Reduzido a um denominador comum. O dinheiro.

  11. Andrei Barros Correia

    Preciosa lembrança, Julinho. Preciosa mesmo.

    A última coisa que se admitia era que Muricy falava a verdade, ou seja, que queria cumprir o contrato.

    Para quase todos, tinha que haver uma conspiração por trás, a envolver dinheiro, porque não se admite outra motivação.

    O cachimbo realmente entorta a boca.

  12. Gustavo França

    Recentemente, em algum site, li a justificativa de Muricy. Ele simplesmente disse: “eu não consigo conviver com o sentimento de culpa”. O cara tinha um projeto com Fluminense, sentiu-se lisonjeado pelo convite da CBF, mas não quis trair sua consciência e ponto final. As pessoas precisam entender que o dinheiro, embora seja importantíssimo, não é um valor supremo.

  13. Julinho da Adelaide

    Convivi um pouco com Muricy quando treinou o Náutico. É um homem simples. Rude até. Mas trata-se de um homem de carater e profissional responsável e competente. Conhece profundamente sua profissão. Surpreende ter sucesso em ambiente altamente corrupto e viciado como futebol. E tem muito sucesso. Três titulos e a caminho do quarto.

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