Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O papagaio de Jeremias. Episódio da vida anusmundense.

Por Leo de Picos.


Jeremias nasceu e criou-se em Anus Mundi. Era filho do sacristão da matriz de São Sebastião, chamado José Teobaldo, conhecido pela alcunha de Zé Catolé. Zé Catolé foi pai de onze filhos, sendo quatro mulheres e sete homens. Jeremias foi o sexto dessa linha de produção.

Todos podem imaginar a dificuldade de se criar tanta gente com o salário de sacristão, mas cada filho que ficava taludinho ia procurando ou inventando uma viração para ajudar nas despesas. Jeremias desde menino despontava como o mais esperto, inteligente e criativo.

Era afilhado do Padre Almiro, que foi quem lhe deu esse nome. Chegou à igreja para o batismo alguns dias após ter nascido e seus pais não sabiam que nome lhe atribuir. Geralmente os batizados celebrados pelo Padre Almiro eram feitos no atacado. O vigário só atendia individualmente casos especiais, como crianças que estivessem doentes e prestes a morrer ou então aquelas filhas de pessoas influentes da cidade e de bom poder aquisitivo.  Até porque a igreja vive das doações de seus bons e generosos fieis.

Na hora da cerimônia, Padre Almiro vira-se prá Zé Catolé e D. Prazeres, sua mulher, e pergunta o nome da criança e quem são os padrinhos. A resposta veio na bucha: nem tem nome nem padrinho! O senhor, padre, é quem vai dar o nome e ser o padrinho. Padre Almiro não estranhava porque essa era uma prática comum nos dias de batizado. Vira-se prá dona Paixão, sua ajudante, e manda olhar na relação se ainda tem algum nome disponível. A resposta foi negativa. Todos já estavam riscados. Vira-se mais uma vez prá Zé Catolé e pergunta: que dia nasceu?  O pai teve dúvidas mas dona Prazeres respondeu de pronto:  primeiro de maio! A ajudante, dona Paixão recorre à folhinha do santo do dia e diz ao padre que primeiro de maio é dia de São Jeremias. Pronto, é Jeremias!

Jeremias criou-se dentro dos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Foi coroinha de Padre Almiro, aprendeu o ofício de sineiro.

Era um menino batalhador.  Adorava ganhar dinheiro. Apesar de conviver dentro da igreja era temperamental ao extremo. Não guardava desaforo, era portador de uma pequena gagueira e saía na tapa com quem fizesse qualquer tipo de gozação. Não sei se coincidência ou coisas de Deus, mas dizem que São Jeremias também era gago.

Na adolescência, fugiu num circo que havia armado na cidade. Passou vários anos desaparecido. Um belo dia volta prá cidade aquele sujeito forte de tamanho avantajado, casado com uma cabocla baiana chamada Jurema, que ele conheceu nas suas andanças. Vem com uma atividade que não tem nada a ver com suas raízes religiosas: PAI DE SANTO!

De início, muita gente estranhou, mas logo foram se acostumando.

Jeremias, com seu espírito empreendedor e pensando se dar bem na vida,  montou seu terreiro numa localidade chamada Caldeirão do Periquito, que ficava próxima à entrada da cidade.

O tempo foi passando, o negócio foi dando certo e sua fama de grande Xangozeiro foi se espalhando; vinha gente de toda a região e de lugares distantes, até de outros estados, na busca de cura para os seus males e soluções para os seus problemas.

No altar de seus orixás, existiam Caboclos, Pretos-Velhos, Exus, Pombas-Gira, Zé Pilintra e outros.

Em seu templo, Jeremias criava um papagaio, muito falador, que era seu grande companheiro. O animal assistia aquelas manifestações e se mantinha calado, numa postura eticamente correta para um animal, o que agradava ainda mais ao seu dono. De vez em quando o papagaio, mesmo calado, apresentava alguns sintomas de que estava recebendo alguma entidade do além e era preciso uma ação imediata de Jeremias, que fazia uma pequena sessão de desobsessão e depois  colocava um pequeno galho de arruda em baixo de sua asa esquerda… e a coisa se acalmava.

Heleno Fogueteiro gostava de tomar umas cachaças e fazer arruaças quando tava com o “quengo cheio da maldita”. Um belo dia, depois de passar o tempo todo enchendo a cara, juntou-se com mais dois iguais e resolveu alugar um carro na praça e ir até o terreiro de Jeremias acabar com o xangô.

O salão lotado, chega Heleno, vai até o altar puxa a toalha, derruba todas as imagens e as oferendas ali  colocadas. A mais danificada foi a de Zé Pilintra, que teve a cabeça decepada na queda.

Jeremias, imediatamente, agarra-se com Heleno e seus companheiros e  começa uma briga. Os amigos???  Quando notaram que a barra era pesada pegaram o beco e deixaram Heleno sozinho nas garras do xangozeiro. Nessas alturas o salão fica vazio. Corre todo mundo. O quebra-quebra era grande. Depois de muito tempo, após escutar o barulho de um tiro, Euzébio, o motorista que levou Heleno, toma coragem e consegue entrar no salão e tirá-lo das garras de Jeremias.

O tiro tinha sido disparado pelo Pai de Santo mas pegou de raspão. Heleno levou uma surra tão grande que ficou desacordado por algum tempo, até Euzébio pegá-lo pelo ombro e levá-lo até o carro. Na saída passaram defronte ao papagaio, que foi a única testemunha a assistir toda aquela cena. Nessa hora, o papagaio vendo Heleno todo arrebentado, o sangue escorrendo pela cara, como que querendo enaltecer a vitória do seu amo, diz em bom português:

“Fu…fu…fudeu-se, na volta de Je…Je…Jeremias e de Zé Pi…Pi…Pilintra não tem moleza!!!”

3 Comments

  1. Leodegario

    Santo Gago, pai de santo gago e papagaio gago só mesmo em AnusMundi, Piauí. Muito bom !

  2. Andrei Barros Correia

    Pois é, Leodegario. Mas os personagens anusmundenses são bastante verossímeis!

  3. Maria José

    Papagaio sabido, só falou na hora certa.

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