Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa.

É tolice dizer que não há escritores sobre que o comentador tem receio de falar. É complicado falar-se do muito bem-feito, porque quase tudo que se fale fica abaixo do falado e pode soar demasiado óbvio, ainda. Claro que se trata aqui de uma sugestão de leitura, apenas, mas ainda assim Mario Vargas Llosa recomenda cautela e contenção.

O primeiro que li foi A cidade e os cachorros, um livro muito bem escrito, que me levou ao prazer imenso da releitura, mais de dez anos depois da primeira. As releituras são especialíssimas, porque poucos livros merecem-nas e outros, que as merecem, ensejam o temor do reencontro, pois trarão percepções diversas das primeiras, que se lhes somam, como novas camadas de tinta.

Li Pantaleão e as visitadoras, um retrato sem retoques da realidade a impor-se de par com a hipocrisia, como é na vida. E sem ares de acusação, sem um milímetro de inverossimilhança. Irônico, mordaz, uma daquelas obras em que não se poria nem mais uma vírgula, nem se retiraria um só artigo.

Em seguida, um monumento literário: A guerra do fim do mundo. Canudos, aquele episódio de religiosidade popular mística, esfomeada, milenarista, acontecido nos sertões brasileiros, na segunda metade do século XIX, reprimido brutalmente pelo governo central até a total aniquilação, é romanceado por Llosa com erudição e precisão formal extraordinários. Ele percebeu completamente o que contava, sem meter-se na história, para que certamente ajudou o não ser brasileiro.

Eis que Olívia me presenteia com o livro mais recente de Llosa: O sonho do celta. Mais um livro a compor a obra literária do escritor que quase não varia o bom nível. As obras dele permitem dizer, como elogio, que se parece bastante consigo mesmo. Vargas Llosa cuida, sempre, das únicas coisas importantes que há: o tempo e as pessoas metidas nele. O estilo é fácil, não há acrobacias formais, a língua é direta, sem ser seca.

O celta do título é Roger Casement, irlandês nascido no Ulster e no aparente protestantismo. Servidor da coroa britânica, como diplomata, teve duas atuações destacadas no relato das brutalidades que se cometiam na extração de borracha, primeiro no Congo, depois no Putumayo. Seus relatórios sobre essas situações tornaram-no famoso, alçaram-no à nobreza. Claro, seus relatórios ajudaram os interesses da coroa, que investia na borracha, no sudeste asiático!

A personagem de Casement é repleta de ambiguidades, o que a torna interessantíssima. Claro a personagem humana é feita por boas doses de ambiguidades, sempre, mas há casos de contrastes mais vincados e de grandes divórcios dentro da mesma pessoa. Casement acredita-se protestante, mas é, ou melhor se diz, torna-se católico. Torna-se pouco a pouco, sem saber que sua mãe o batizara às escondidas, quando muito pequeno, pois o pai era protestante e não podia sabê-lo.

Serve à coroa britânica, que faz dele Sir Roger, e torna-se, aos poucos, um ferrenho independentista irlandês. Essa viragem segue uma trajetória de conversão, leva-o de uma visão e trabalho burocráticos para a ação religiosa, fanática e revolucionária. Tenta, é verdade, guardar alguma coerência e desliga-se do serviço consular, alegando motivos de saúde, o que era sumamente verdadeiro.

Integra febrilmente os movimentos nacionais irlandeses; viaja aos EUA para entrevistar-se com irlandeses radicados lá e coletar ajuda para a causa. Julga que a oportunidade apresentada pela primeira grande guerra não pode ser desperdiçada. Procura os alemães, forte na premissa de que os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos. Não ignora as consequências possíveis desse ato que, para os britânicos, não seria qualquer coisa além de alta traição.

Sensatamente, defende que o Levante de 1916, na semana santa, somente teria êxito se ocorresse ao mesmo tempo que um ataque da Alemanha à inglaterra, porque isso enfraqueceria as forças britânicas. Do ponto de vista estritamente lógico e estratégico, estava coberto de razão. Insta os alemães a fazerem o ataque, até ser levado a perceber, pelas evasivas, primeiro, e direta e secamente, depois, que a Irlanda, para a Alemanha em guerra, significava nada.

Na aventura da tentativa de desembarque de vinte mil fuzis alemães na irlanda, é capturado, preso, julgado e sentenciado à morte na forca, por traição. Lamente profundamente que tenham insistido no Levante, que resultou um massacre dos irlandeses e lamenta ainda mais não ter tido a ocasião de estar lá e morrer em combate. Pede clemência ao conselho de ministro e aguarda o desfecho na prisão.

Estrevista-se regularmente com o Capelão da prisão, o padre Carrey, que sabe de seu batismo e afirma que seu retorno não é mais que o descobrimento de um pertencimento de sempre.  Casement é afinal enforcado – esse método que sempre me pareceu a janela aberta à observação da vileza dos ingleses – por um carrasco que escreve memórias, já velho, antes de suicidar-se. Este carrasco anota que nunca vira homem ir para a morte com tanta dignidade.

Casement, de certa forma, além das ambiguidades, é um poço de ingenuidade. Daquela ingenuidade feita de razão que ainda não se tornou poesia ou mística. Nos finais, ele percebe que seus colegas irlandeses de movimento tinham uma visão de martírio, que sabiam, afinal, que não se lutava para ganhar, porque não era possível. Místicos fervorosos, eles eram talvez mais racionais que o racional a flertar com o místico.

Ingenuidade também na incapacidade de perceber que era monitorado pela inteligência inglesa e que era difamado escandalosamente nos media. Casement era homossexual. É ocioso dizer, por evidente, que essa homossexualidade vinha carregada de culpa e de sombras, em uma figura religiosa, inicialmente protestante e depois católico. E que a revelação dos seus diários íntimos causou imenso escândalo.

O caso dos diários – os black diaries – é controverso ainda hoje. O governo britânico manteve-os sigilosos até há pouco e há quem defenda sua inautenticidade e outros o contrário. A inautenticidade é bastante plausível, pois falsificar diários seria o mínimo a esperar-se da inteligência britância. Eles relatam encontros carnais, furtivos e mediante pagamentos, relatados de forma crua e direta, como que por alguém que se comprazesse com a própria eroticidade de um relato escandaloso.

Vargas Llosa lida genialmente com o material dos diários, que analisou. Em um pequeno posfácio, muito útil e curto, explica que acredita na autenticidade dos diários, mas que acha-lhes mais uma coleção de aventuras fantasiadas que propriamente vividas. Mais o relato ficcional do que gostava de ter feito, que do realizado, um jogo de autoerotismo escrito de si para si.

O livro estrutura-se em três partes: Congo; Putumayo e Irlanda. A narrativa vai e vem no tempo, mas sem qualquer confusão, sem as sombras que resultam das idas e vindas de alguns escritores. Não há um mar de psicologismo em que vagueiem à deriva datas variadas e desconexas. Há uma narrativa bem explicada, em que vários períodos da vida de Casement são contados, exatamente no ritmo necessário à compreensão da evolução da ação.

Fica evidente que os pretos foram explorados selvagemmente pelos belgas e outros europeus de Leopoldo II; que os índios da amazonia peruana foram brutalmente torturados e dizimados pela Peruvian Amazonian Company, de Júlio Arana e seus sócios ingleses; que nada obstante, nem os pretos, nem os índios eram santos, eram explorados, torturados, escravizados e exterminados.

Fica evidente que Casement dedicou-se integralmente à confecção desses relatórios e ficou escandalizado com as brutalidade que viu por vinte e tantos anos. Que essa visão direta da colonização, do domínio, levou-o a perceber a Irlanda em posição de colonizada pela inglaterra, algo de que somente se escaparia com resistência tenaz, antes que os esforços ingleses de matar todos os trações culturais próprios da Irlanda tivesse sucesso. E fica evidente que ele tornou-se um fanático e viveu coerentemente com isso e aceitou o resultado disso.

O livro – e aqui sinto-me a dizer uma platitude – não faz a história romanceada da vida e tempo de um herói, nem de um santo, nem de um desviado, nem de um bandido. Isso é para irlandeses e ingleses, conforme seus lados e partes fazerem.

Vinte e um anos depois do Levante massacrado pelos ingleses, a Irlanda tornou-se independente. O martírio teria sido precisamente o que previram os seus líderes, uma ferida sempre aberta, a sangrar nos órfão e viúvas e a reforçar a identidade irlandesa, o que permitiu que não arrefecesse a vontade de independência. Casement teve seus restos transladados para a Irlanda, décadas depois da execução, depois de passar longos anos em sepultura sem lápide, na prisão. Claro, para a Inglaterra foi um traidor e foi mesmo.

Sugiro a todos os apreciadores de literatura a leitura desse livro. E de quantos Vargas Llosa lhes chegarem às mãos.

 

2 Comments

  1. Sidarta

    Excelente resenha literária !!!!!!!!!!!!

  2. Andrei Barros Correia

    É um muito bom livro.

    Interessante como o Llosa dos artigos de jornal e o dos livros são diferentes.

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