Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O vento no canavial, de João Cabral de Melo Neto.

Não se vê no canavial

nenhuma planta com nome;

nenhuma planta maria,

planta com nome de homem.

É anônimo o canavial,

sem feições, como a campina;

é como um mar sem navios,

papel em branco de escrita.

É como um grande lençol

sem dobras e sem bainha;

penugem de moça ao sol,

roupa lavada estendida.

Contudo há no canavial

oculta fisionomia:

como em pulso de relógio

há possível melodia,

ou como de um avião,

a paisagem se organiza,

ou há finos desenhos nas

pedras da praça vazia.

Se venta no canavial

estendido sob o sol

seu tecido inanimado

faz-se sensível lençol,

se muda em bandeira viva,

de cor verde sobre verde,

com estrelas verdes que

no verde nascem, se perdem.

Não lembra o canavial

então, as praças vazias:

não tem, como têm as pedras,

disciplina de milícias.

É solta sua simetria:

como a das ondas na areia

ou as ondas da multidão

lutando na praça cheia.

Então, é da praça cheia

que o canavial é a imagem:

vêem-se as mesmas correntes

que se fazem e desfazem,

voragens que se desatam,

redemoinhos iguais,

estrelas iguais àquelas

que o povo na praça faz.

3 Comments

  1. Olívia Gomes

    “Se venta no canavial
    estendido sob o sol
    seu tecido inanimado
    faz-se sensível lençol,
    se muda em bandeira viva,
    de cor verde sobre verde,
    com estrelas verdes que
    no verde nascem, se perdem.”

    Lindo!

  2. Andrei Barros Correia

    Parece-me perfeito. A imagem física não seria melhor dita que assim. E não é por isso que me parece perfeito, porque não me apego à idéia da arte como representação do real. Antes é o contrário.

    A arte não tem como objeto apenas o real porque ele não existe assim como se entende. O verde é o quê? Um comprimento de onda. Mas é verde.

    É bonito como um gato deitado, que é bonito porque é. O gato deitado é forma e matéria.

    A poesia de João Cabral de Melo é forma e matéria quase perfeitamente disposta. Só não é bonita como o gato deitado porque esse não se fez.

  3. Olívia Gomes

    É bonito precisamente porque não é só descrição. É poesia.

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